“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Poética de Chris Marker

           Foi um desses gigantes do cinema francês que se revelaram no cinema no pós-guerra e com os quais verdadeiramente começou uma modernidade no cinema, que veio a ser absorvida e integrada pela "nouvelle vague" francesa. Apesar de o seu nome ser fundamentalmente ligado ao documentário, Chris Marker (1921-2012), também fotógrafo e escritor, soube integrar nos seus filmes um nível narrativo e ficcional muito importante em que as questões do espaço e do tempo se tornam indissociáveis, se implicam uma à outra. Além disso, na parte documental dos seus filmes esteve implícita uma aguda visão antropológica, enquanto que na construção fílmica a montagem, da imagem e do som, foi absolutamente fulcral.
           Antigo membro da Resistência francesa durante a II Guerra Mundial, estreou-se no cinema com "Olympia 52" (1952), a que se seguiu o mítico "Les statues meurent aussi" (1953), co-realizado com Alain Resnais, mas talvez continue a ser ainda hoje mais conhecido por "La Jetée" (1962), um filme de ficção-científica visionário sobre a viagem no tempo de um prisioneiro durante a III Guerra Mundial, filme genial apresentado como foto-romance e construído sobre imagens fixas, portanto sem movimento, em que a continuidade nasce da montagem e das palavras que constroem um espaço de memória em que ao protagonista, depois de outras imagens e da recordação de uma mulher, é dado encontrar numa imagem da sua infância o instante da sua morte. Para isso ele fora enviado pelos seus carcereiros e torturadores para o futuro, a partir do qual viu tudo e viu mais claro, do princípio até ao fim.
                                        
            "Sans Soleil" (1982) é um filme prodigioso construído sobre as mensagens e as imagens enviadas por um correspondente imaginário de vários pontos do mundo, em especial do Japão, Tóquio e Okinawa, da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, de São Francisco e da Islândia. Assim construído sobre imagens dispersas, o filme encontra a sua unidade através da montagem e das palavras, que como sempre no cineasta não são redundantes, dado acrescentarem sempre ao que está na imagem. Já presentes em "La Jetée", além dos comentários aqui se acrescentam em tom poético as reflexões fulgurantes (por exemplo, a distância no espaço que compensa a proximidade no tempo, a chaga sem corpo que sobrevive à morte dos amantes, o sonho individual como parte de um sonho colectivo, a fina divisória entre a vida e a morte, perder o esquecimento em vez da memória). Neste filme Chris Marker utiliza a imagem digital e a digitalização da imagem e do som.
           No Japão surpreendem os contrastes entre a velocidade e a imobilidade, a modernidade e a tradição, entre homens e mulheres. Na Guiné-Bissau e em Cabo Verde estão presentes imagens do presente e imagens do passado, da luta contra o colonizador português, com uma reflexão fundamental sobre a Revolução de Abril baseada em Miguel Torga dada de passagem. Aí releva, contudo, o encontro decisivo do olhar da câmara do cineasta com os olhares das mulheres dos mercados da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Da Islândia ficam imagens e ideias para um filme futuro.
                      Chris Marker
            Estes dois filmes, mas sobretudo o segundo, mostram claramente que o cinema de Chris Marker se baseou fundamentalmente na montagem, a um nível de tal modo estruturante e de uma forma de tal modo criativa que leva a que deva ser considerado o grande continuador de Dziga Vertov no cinema. De facto, em "Sans Soleil" está presente não apenas a montagem visual mas também a montagem sonora (audiovisual neste sentido), em que se integram as reflexões fulgurantes que se estendem ao próprio cinema - "A Mulher Que Viveu Duas Vezes"/"Vertigo", de Alfred Hitchcock (1958), encontra aqui uma das suas reflexões mais originais e convincentes. Aliás, este filme estava já presente em "La Jetée", com a ideia de olhar o tempo de fora do tempo. Por isso mesmo, pelo seu decisivo lado reflexivo em que imagens e sons construíam um pensamento pessoal elaborado, os seus filmes foram classificados como filme-ensaio. Por sua vez, os animais fétiche do cineasta, a coruja e sobretudo o gato, assumem lugar de pleno relevo.
          Antes, ele tinha consolidado a sua fama como um documentarista muito especial com filmes como "Lettre de Sibérie" (1957), "¡Cuba Sí!" (1961), "Le joli mai" (1963), "Loin du Vietnam" (1967) - supervisão -,"La solitude du chanteur de fond" (1974), "Le fond de l'air est rouge" (1977), todos eles muito importantes na época em que foram feitos, de que constituem ainda hoje um testemunho irrecusável e insubstituível. Mas quero recordar aqui brevemente mais dois filmes de Chris Marker, para mostrar que ele foi não só uma testumunha qualificada do século XX, de que mostrou e documentou a realidade de forma empenhada, mas também uma testemunha especialmente qualificada do próprio cinema.
                      
          Em "Level 5" (1997) o cineasta volta a trabalhar sobre a memória japonesa da II Guerra Mundial, desta feita sobre a batalha de Okinawa, para proceder a uma reflexão fundamental sobre a história, sobre a vida e sobre o próprio cinema. Para tanto coloca Laura/Catherine Belkhodja, encarregada de criar um jogo de computador baseado naquela batalha, a falar para a câmara e a fazer a despesa fundamental das palavras, a que se juntam, contudo, as de depoimentos japoneses. Então há lugar para recordar coisas pequenas mas fundamentais: que Deus está sempre do lado dos perseguidos, que por trás de uma mulher (ou de um homem) visível há uma outra mulher (ou um outro homem) invisível, que é fina a separação entre memória e esquecimento. Mostrando mais uma vez não querer ter nada a ver com a banalidade do pensamento comum, Chris Marker faz explicar como foi possível matar os entes queridos mais próximos por amor, lembra as mentiras da guerra e as mentiras do cinema em diálogo com "Laura" de Preminger, Hiroshima e Marienbad de Resnais, "Let There Be Light" de John Huston, de novo "Vertigo" de Hitchcock, mas sobretudo em diálogo com as imagens em falta que seriam as imagens indispensáveis no documentário, ao qual não pode, por isso, ser aplicado sem mais o princípio subtractivo de que fala Gilles Deleuze a propósito do cinema.
           Para a série "Cinéma, de notre temps", de André S. Labarthe e Janine Bazin, fez "Une journée d'Andrei Arsenevitch" (2000), dedicado a Andrei Tarkovski, sobre cuja obra, temática e estilo é um verdadeiro ensaio, com o apoio de excertos dos seus filmes e algumas imagens dos seus últimos tempos de vida. Esse filme é tanto mais importante quanto em 1985 Marker dedicara já um outro filme, "A. K.", a Akira Kurosawa, e em 1993 concluíra "Le Tombeau d'Alexandre", sobre Alexandr Medvedkine (1900-1989), relevante cineasta soviético do final do mudo e do início do sonoro cujo nome fora dado a um grupo de cinema militante criado em 1967 sob o impulso do próprio Chris Marker, de quem é retido um depoimento sobre Tarkovski no filme que ele a este dedica.
                       chats_perches_4 
          Não sei, pois, de outro cineasta (salvo Godard e Scorsese) que como Chris Marker se tenha ocupado tão sistematicamente da sua arte e de alguns dos seus melhores artistas e problemas, a que dedicou o melhor do seu talento e da sua atenção como oficial do mesmo ofício inteirado de tudo o que lhe dizia respeito. Aliás, pela utilização que faziam da linguagem cinematográfica os seus outros filmes eram também reflexões sobre o próprio cinema, cujas fronteiras alargavam. Mas mesmo estes dois últimos filmes, em que o cineasta se move ao seu melhor nível para fazer justiça aos assuntos de que trata, são em medida fundamental filmes de montagem e de reflexão mediada pela palavra, continuando a caber no conceito de filme-ensaio. Poderei, por isso, definir a poética de Chris Marker como uma poética filosófica do tempo e da montagem no documentário e no cinema
         Quando já tinha iniciado uma criação multimédia própria, realiza ainda "Chats perchés" (2004), a sua última longa-metragem, feita em vídeo para a televisão, que é um filme irónico, divertido e cruel sobre a actualidade política, em que se insinuam referências cinéfilas e gatos proliferam em Paris, sorridentes e subversivos, o que poderá ficar como uma assinatura do esquivo cineasta, lúcido e desassombrado, que ele sempre foi.

1 comentário:

  1. Bom dia! Entrei em contato com você faz um mês sobre uma campanha de publicidade. Gostaria de saber se tería interesse em participar neste mês de Agosto: tamin@ibooster.es

    Aguardo resposta

    Abraços,
    Taty

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