“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Em nome do cinema


        As três curtas-metragens de João Salaviza agora lançadas em DVD dão a ideia muito clara de que estamos perante um novo cineasta de enormes qualidades, com um talento raro para o cinema, acerca do qual revela aí ter uma noção muito precisa em termos visuais e humanos.
        Em "Arena" (2009) ele trabalha, com uma intuição visual não ingénua mas cultivada, sobre um conflito mínimo, elementar (o dinheiro, o guito), entre um jovem mais velho, Mauro/Carloto Cotta, e alguns miúdos. No início, em interior a proximidade da câmara prende-nos ao protagonista. A seguir, os exteriores utilizam o quadro arquitectónico para situar com precisão o cenário, para tal aumentando a distância a partir da qual assistimos à evolução do conflito em termos elementares. As personagens recortam-se então num cenário vasto que faz sobressair a sua solidão, o seu isolamento, o que o domínio do plano geral e do plano médio permite que seja feito em termos cinematograficamente muito precisos e claros, consistentes e sem a menor redundância, tudo seco, compreensível e de uma grande beleza, que não oculta, porém, o conflito, antes o situa na sua exacta dimensão.
                                     
           Em "Cerro Negro" (2011), partimos de um interior, mas com uma passagem muito boa pela varanda, com uma mãe, Anajara, e um filho, Igor, e a ausência do pai, Allison, para passarmos ao encontro do casal na prisão, com a ausência do filho, e na prisão ficamos com o pai que vai sentir a ausência da mulher mas sobretudo do filho. Aqui há uma maior proximidade, de acordo com os espaços tratados - a casa, a prisão, a cela -, o que nos leva a experimentar em proximidade humana o calor e a ternura, mas também o isolamento e a solidão das personagens. Mesmo assim, no trajecto de Anajara para a prisão o quadro da arquitectura urbana é muito bem aproveitado, e os espaços da casa e sobretudo da prisão são superiormente tratados em termos de iluminação, o que permite transmitir toda a carga humana das personagens, isoladas, separadas mas com momentos de encontro - um conseguido, entre o casal (um plano de iluminação perfeita, que o torna pictórico), o outro falhado, aquele que o pai tenta estabelecer telefonicamente com o filho. O final, com Allison no interior da cela agarrado às barras da janela e olhando para o exterior, rima muito apropriadamente com a passagem inicial de Anajara pela varanda da casa. De novo tudo simples, elementar, sem retórica nem redundância, de forma a transmitir de maneira precisa a exacta solidão das personagens.  
        "Rafa" (2012) é a mais longa das três curtas de João Salaviza, decididamente impressionante por, depois de um início em interior, na casa onde o protagonista/Rodrigo Perdigão está com a irmã, Sónia/Joana de Verona, e o sobrinho, com o plano pictórico de mãe e filho, acompanhar Rafael desde que sai de casa para não mais o largar na procura da mãe que não regressara a casa na noite anterior. E assim o filme se constrói sobre um pequeno Rafa que atravessa o Tejo para vaguear por Lisboa na sua busca de uma mãe que, porque ausente, se torna, em ausência, personagem central. Mas a solidão e o desconcerto de Rafa invadem, porque ele é omnipresente, o filme, fazendo-o transbordar em abandono e solidão, nas ruas, na esquadra da polícia, de novo nas ruas, até ao prodigioso final, com a chegada da irmã com o sobrinho ao colo (espantosa panorâmica para a direita, seguida de plano fixo em que ela avança para a câmara), que deixa nos braços do tio num último plano de novo pictórico na noite de Lisboa.
                    
           Mais trabalhado do lado dos ruídos, muito seguro e acertado no plano fixo do protagonista a responder às perguntas na esquadra, em que a voz do polícia vem sempre do fora de campo, preciso na definição do quadro, do plano e da montagem, e contando com um actor notável, de uma expressividade contida mas imensa, "Rafa" revela-se como um superior ponto de chegada desta série de três curtas, todas elas muito boas. Os momentos em que o tempo pára, em que o plano fica vazio, em que o silêncio ou os ruídos se fazem sentir, mostram em cada um destes filmes que estamos perante grande cinema de um novo cineasta que sabe exactamente o que quer, por isso procura onde dói e constrói sem hesitações, circunlóquios nem derivas pequenas pérolas, de que é autor do argumento e da realização e em que está presente também na montagem, que são pensadas e realizadas para a sua duração específica.
           Venham mais cinco, João Salaviza, venham mais cinco que consigo, em nome do cinema eu pago já. O mundo não pára e consigo o futuro do cinema está em muito boas mãos.                  

quinta-feira, 24 de maio de 2012

A tempestade


            Uma pequena cidade do interior (Elyria, Ohio), um homem casado e com uma filha surda-muda, que trabalha e leva uma vida normal que, contudo, de um momento para o outro começa a ser sobressaltada por sonhos estranhos, pesadelos inexplicáveis que inexplicavelmente lhe deixam marcas físicas. Teme o pior sobre si próprio, pede conselho médico, lembra a mãe, esquizofrénica paranóide desde os 30 anos, começa a temer o pior sobre o mundo em que vive.
            Tudo isto nos é dado em imagens simples, directas, elementares, mesmo os sonhos, com um espantoso Michael Shannon que no seu rosto, no seu corpo cria o progressivo resvalar de Curtis para a loucura. É um homem só face a si mesmo e à sua transformação no meio familiar e de trabalho em que continua a mover-se. Pressente uma ameaça, contra a qual constrói com um amigo um abrigo no quintal da sua casa. Quando a tempestade se anuncia aí se abriga com a mulher e a filha, num momento crucial, superiormente trabalhado do lado da luz e das sombras, em que Samantha/Jessica Chastain o obriga a ser ele a abrir a porta de saída para ascender de novo até á luz.
                        
              Tinha sido despedido por utilização de material da empresa para a construção do abrigo, e a sua entrada em casa para comunicar à família que está desempregado, dada em plano afastado único, é assombrosa. O amigo que o ajudara, e se sentira traído e abandonado, desafia-o durante uma festa e ele tenta afastar o conflito para outro momento. Terá o futuro que conseguir construir com a ajuda da mulher.
            De Jeff Nichols, de quem nos chegara já “Histórias de Caçadeira”/”Shotgun Stories” (2007), um excepcional filme de estreia, chega-nos agora este “Procurem Abrigo”/”Take Shelter” (2011), prodigioso filme de contensão e pudor que se desdobra numa tensão crescente mas que não explode em espectáculo, antes se oferece como drama comum de um homem comum atingido pelo inominável. Jeff Nichols é provavelmente o nome mais importante de um novo cinema independente que está a estabelecer novos e inesperados rumos para o cinema americano, fora do contexto da grande produção massificada mas com um enorme peso e uma extraordinária qualidade estética, que nasce de uma exigência que não tem que fazer concessões de qualquer espécie, estribada como está na sua própria independência, observação e criação. Deste novo cinema independente vimos há pouco “O Atalho”/”Meek’s Cutoff” (2010), de Kelly Reichardt, surpreendente e excelente também.
                         
         Recorde-se que o cinema independente tem uma história muito importante na América, onde nasceu em New York com John Cassavetes, Jonas e Adolfas Mekas e o New American Cinema, prosseguiu com  Jim Jarmush, Gus Van Sant, Hal Hartley, e renasce agora numa outra geração e num outro contexto, o de um país que atravessa uma crise, diversas crises profundas. “Procurem Abrigo” tem sido visto como um sinal dessa crise, desde logo a que resultou do crash bolsista de 2008 e arrastou o país e o mundo para a maior crise desde a Grande Depressão dos anos 30. É muito possível que seja essa crise que neste filme Jeff Nichols encena no microcosmos de uma cidade do interior e no interior de uma família americana.
          O que a mim me impressiona é o espantoso trabalho de mise en scène do cineasta, o trabalho sobre o plano, a direcção de actores, o trabalho sobre os ruídos tratados como música, da música levíssima tratada com extrema propriedade, os planos das personagens tirados contra o céu em fundo, as transições que se fazem com rapidez e fazendo sempre o filme avançar para os sucessivos impasses do protagonista, uma vida posta em transe por razões que o próprio desconhece. Uma América em crise simbolizada por um homem em transe, uma transição que se faz da normalidade para a loucura, uma proximidade que tenta salvar. Não se podia exigir mais, não se devia esperar tanto, mas os independentes americanos têm essa característica da imprevisibilidade, de nos surpreenderem com o que menos estaríamos preparados para esperar. O drama humano em pleno coração do interior americano, sem enfeites, sem arrebiques, sem procurar desculpas nem descobrir culpados, tudo a seco, sem edulcorar personagens, sem elaborar géneros ou melodramas, indo direito ao coração do drama, como já em “Histórias de Caçadeira” de forma superior acontecia.
                         Take Shelter
            É muito importante que filmes como este sejam feitos com um rigor e uma qualidade notáveis, de coração pesado mas olhos secos, fechando espaços abertos, abrindo para outros espaços sem saída, com a noção de que aconteça o que acontecer é preciso continuar, pois nada nem ninguém nos pode ajudar na nossa aflição, na nossa solidão, que atinge indiscriminadamente cada um, o que é mais um motivo para devermos ajudar-nos uns aos outros. Há também o espectáculo, que continua sempre, claro, mas esse é outra coisa, é outra história, mesmo quando reflecte sobre a mesma crise. Aqui nem a escapatória do espectáculo e dos seus truques existe, tudo é trivial e terrível no seu ser quotidiano - as próprias interpretações vão nesse sentido.
          É preciso ver “Procurem Abrigo” para perceber como é, em plena crise, o cinema americano no seu melhor de qualidade e exigência.

Um artista americano


        “Sombras da Escuridão”/”Dark Shadows” (2012) é o mais recente filme de um dos mais conhecidos e destacados realizadores do cinema americano contemporâneo, Tim Burton, que tem deixado de filme para filme a sua marca em histórias estranhas e personagens bizarras e fantásticas, definidas por uma diferença que lhes confere um lugar à parte em cada narrativa fílmica, que desse modo determinam e condicionam.
         Partindo de uma série televisiva dos anos 70, a figura que “Sombras da Escuridão” desenha na obra deste artista americano é a do vampiro, Barnabas Collins/Johnny Depp, que, em tal transformado há dois séculos, regressa inesperadamente em 1972 para o convívio dos descendentes da sua família, semeando a morte em sua volta e o espanto e o terror entre os seus. Sendo uma personagem tipicamente burtoniana, este Barnabas além de lançar a confusão vai ser confundido, ao descobrir no presente as mulheres que conhecera no passado, Angelique/Eva Green, a bruxa que o tornara vampiro, sob a forma de Angie, Josette, que por ele morrera, sob a figura de Victoria/Bella Heathcote.
        A arte superior de Tim Burton passa então por humanizar o temível vampiro contra uma desumanizada sociedade actual que ele seduz mas o rejeita, mesmo nos seus esforços de refazer o prestígio e a fortuna da família. E se, depois de regressado do túmulo onde jazera durante dois séculos, Barnabas se torna um assassino impiedoso de acordo com a sua vampiresca condição, ele quer apesar disso impor-se como ser mais humanizado do que aqueles que vai encontrar, cujos problemas procura resolver – ou agravar, no caso de Angie, a adversária, perversa concorrente. E quando descobre que quem pretensamente lhe queria substituir o sangue maligno afinal o sugava, a Dra. Júlia Hoffman/Helen Bonham Carter, mata-a impiedosamente.  
                     Dark Shadows          
            O filme move-se desde o início num universo gótico, de que parte e que transpõe para a actualidade, do que resulta um curioso contraste que a antiguidade da mansão em que vivem os descendentes da família vai tornar maior. Mas percebe-se também rapidamente que o ponto de partida narrativo limita os objectivos do cineasta, que noutros filmes terá conseguido contrastar mais e melhor as suas personagens em diferentes épocas e contextos. Mesmo assim, “Sombras da Escuridão” surge como um filme à altura do seu criador, que muito apropriadamente faz com que a cena pretérita do penhasco se repita de forma a que a fusão dos amantes se consume, dois séculos depois, com a vampirização de Victoria, enquanto a bruxa morre entregando ao vampiro, que rejeitara no passado e eroticamente seduzira no presente, um coração intacto retirado de um corpo que a partir do rosto se desfaz.
            Não creio que este “Sombras de Escuridão” seja, como se tem dito, um Tim Burton menor, já que com menoridades destas, como artista americano o seu realizador pode bem, pois lhes confere sempre não um mas vários toques pessoais, desde o tratamento das cores, pictórico e livre, contra o negrume a preto e branco do vampiro, como convém, se compreende mas não deixa de surpreender, mesmo se o filme em vários momentos se aproxima de uma figuração de banda desenhada, obviamente procurada e conseguida em termos fílmicos. É que o universo de Burton é sempre, como aqui volta a ser, um universo de fantasia com sabor de inventiva ilimitada, que leva a que se desfaçam em filme as sugestões feitas em termos narrativos, que são duplamente confirmadas e negadas por uma subversiva linha de humor. 
                      sexy Eva Green in a new character poster from Tim Burton's Dark Shadows              
         Cenograficamente o filme aguenta-se muito bem no gótico moderno, depois de a introdução do passado ter sido rapidamente arrumada, e as transições de planos dão-se sempre em termos espacialmente consistentes e conseguidos, que deixam espaço e tempo a que cada cena se cumpra até se esgotar. As personagens secundárias não passam disso mesmo, já que estão ali, como noutros filmes do cineasta, para preencher uma simples função narrativa e figurativa, o que cumprem como lhes compete e os actores obrigam. Mas o regresso final da vítima do vampiro lançada para as águas, voltada para a câmara e a piscar o olho, restabelece o tom de sátira a si próprio do último filme de Tim Burton.
        Não acrescenta nada de muito significativo à obra dele? Talvez não muito, mas alguma coisa em todo o caso, em termos de erotização, de inventiva das cores e de auto-paródia, embora talvez continuemos à espera do melhor de Burton que estava em “A Noiva Cadáver”/”Corpse Bride” (2005) e “Sweeney Todd – O Terrível Barbeiro de Fleet Street”/”Sweeney Todd” (2007). Não hesito, contudo, no caso deste artista americano em considerar que o pior filme dele, que nem sequer me parece ser o caso deste “Sombras da Escuridão”, será sempre preferível ao melhor filme da maioria dos realizadores que são responsáveis pela maioria da produção cinematográfica hollywoodiana da actualidade. Mesmo quando ele brinca e se parodia a si próprio, como aqui acontece, deixa atrás de si o rasto do seu génio pessoal, que lhe é próprio e toca tudo aquilo que ele faz.

Nota importante
Uma completa exposição "Tim Burton", que mostra a verdadeira dimensão do artista por ir muito para além do cinema, esteve em 2009 no MoMA, em New York, e está neste momento na Cinémathéque Française, em Paris (até 5 de Agosto). Será que coisas como esta, em vez de nos chegarem com a naturalidade que se impõe, vão continuar a funcionar como mais um estímulo para termos o gosto de atravessar fronteiras se quisermos assistir a elas?

domingo, 20 de maio de 2012

A poética da cor


             Cores que desenham formas, mas cores que contíguas criam as formas no deslizar de uma para outra dos dois lados do contorno. São cores calmas, regradas, de transições graduais entre um e outro lado do que as separa e confere contorno num espaço liso, sem outros elementos que os da bidimensionalidade da superfície lisa. O contorno é por regra geométrico, mas pode relevar do estabelecimento de diferentes quadros, resultantes das linhas divisórias que separam as cores. A forma preferencial é o quadrado, sobre o qual se estabelecem os limiares de cores. Mas um quadrado que admite outro, outros no seu interior, que, descentrados, vêm introduzir inesperados recortes, porém dados com formas geométricas simples, abstractas. Um quadrado por vezes alongado num rectângulo, no interior do qual outros rectângulos na horizontal ou na vertical se recortam a partir das cores.
           As séries ordenam-se em volta de amarelos, verdes e azuis, laranjas e vermelhos, e cada um dos quadros elabora-se segundo a mesma ideia de variação de cores contíguas, que reelaboram o desenho das formas geométricas repetidas, embora com ocasionais estabelecimentos de contraste nos rectângulos, algumas manchas sem contornos definidos com precisão, um largo vazio central branco. Descentrados, os quadrados resvalam de uma ideia de proporção dominada para uma ideia de liberdade, de livre jogo no desenho  das formas, porém sempre controladas, portanto capazes de se comporem em cada quadro e decomporem para se recomporem de um para outro. Mas a continuidade persiste, numa insistência e persistência na perseguição do ideal do quadrado através da criação das cores, da sua variação – melódica.
           As cores valem por si próprias, significam-se a si mesmas, ao ponto de se tornarem o próprio objecto do quadro. Não brilhantes, nem reverberantes, mas cores que são cores e nada mais que aquilo que cada uma é por si mesma ao escorregar para a que se lhe segue, a continua em variação, por vezes quase imperceptível. Uma cor do princípio ao fim a significar-se a si mesma na sua totalidade, na totalidade da sua essência de cor. Cores puras, em si mesmas e por si mesmas.
          A música das cores, a musicalidade das formas que elas criam, abstractas e contudo muito concretas no seu desfiar contínuo em cada contiguidade, em cada experiência sobre o modelo de uma cor que se procura e se percebe encontra ao criá-la. Expressividade da cor, pois, de cores que falam por si próprias na variação e na delimitação das formas, mas que existem e significam fora dos esquemas coloridos habituais e contra eles, fora dos contrastes e combinações a que a pintura e outros meios nos habituaram. São, por isso, cores únicas, que não existem como tal em lado nenhum, mas criadas a partir da experiência da cor na natureza, no mundo, na arte.
           A cor e a sua ideia fora de um objecto ou ser concreto torna-se ela própria a coisa em causa. A cor é a própria cor e a sua causa, a própria cor e o seu efeito, cor com cor, cor ao lado, em volta de outra tonalidade da mesma cor. Uma cor concreta e abstracta, permanentemente em vias de ser outra, de passar a ser outra sem deixar de permanecer o que é, do outro lado da linha que delimita.
          As formas assim desenhadas convergem para diferentes, descentrados centros, que se multiplicam dentro do mesmo espaço que dividem e subdividem e a que conferem uma concretude que escapa às convenções, para inventar novas formas que a si próprias se engendram a partir do interior daquela de que nascem e em que se vão inscrever. Puramente abstractas, as formas desenham a sua própria multiplicidade a partir de encontros de linhas que separam cores e vão originar uma proliferação de desenhos, de desígnios pictóricos que na insistência persistem em desafiar os cânones que aparentam respeitar. Contudo, ao excedê-los na sua própria reinvenção, criam novos desígnios de sugerida profundidade sobre si própria, sobre o nada, sobre o vazio que no entanto negam. Mas não são novos cânones que se inventam, são novas propostas que se fazem para o futuro, para um tempo fora do tempo e que nos é, contudo, próprio – o nosso.
            Não há contrastes, nem choques, nem manipulações pesadas, pois tudo parece fluir com uma espontânea naturalidade, com suavidade que cria e define os seus próprios contrastes criativos através das formas geradas. A impressão de continuidade não é quebrada, tudo se constrói na celebração da cor, das cores tratadas como essências plásticas que se impõem por si próprias, sem outro recurso que elas próprias. Cores que, contudo, desenham em formas geométricas um nascimento da forma a partir de si próprias, em formas que por vezes proliferam em mera continuidade, mas sem sobreposição. Assim, com a cor saímos de nós próprios, saímos delas próprias para passarmos à gradação, à gradual mutação do semelhante para o semelhante na proximidade maior da contiguidade segundo os contornos, geometricamente definidos, com excepções mais elaboradas.    
            Um quadrado, o quadrado pré-definido, desfaz-se e ao desfazer-se recompõe-se ao fazer-se a si próprio o mesmo noutro, com uma outra cor, uma mesma tendência de contorno que contudo não se repete mas reinventa – como a cor. De cada cor nasce uma nova cor, que contudo permanece na essência a mesma no mesmo quadro - também aqui com excepções. Figuras geométricas assim se formam livremente, sem outro propósito que não seja a cor e o desenho que na continuidade ela gera. Não se pode comparar com nada porque nada como aquilo existe. Aquelas cores, reconhecíveis, não existiram antes e só ganham existência ali, daquela maneira, por si mesmas e para aquele desenho de contorno, abstracto.
              Cores expressivas, nascidas de um expressionismo prévio que, pressupondo embora, não prolongam a não ser na busca da expressão, da expressividade procurada, perseguida e encontrada em cada quadro, que o seguinte varia e comenta ao valer por si próprio. Fora do tempo, criam o seu próprio espaço na pura necessidade de dar existência a cada quadro, em cada superfície plana em que a própria superfície, pelas formas, pelo desenho, cria portas sobre o vazio, vazio sobre o vazio em perspectiva, abstracta.
              Variações, ínfimas por vezes, fazem as cores falarem por si próprias a linguagem de uma poética nova, a poética da cor de que só a cor é capaz e que em nós convoca memórias primitivas, esquecidas e primordiais, do mesmo modo que nos acorda para cores futuras que a partir das suas sugestões saberemos descobrir, inventar, criar. Cores que se reinventam nas formas que em contorno, que as delimita, desenham.
                Ali encontrei o “beau séjour” dos meus primeiros anos, no sentido do poeta Manuel de Freitas (1), há tanto tempo já, com as suas cores, os seus móveis, os seus habitantes. Com aquelas cores e naqueles desenhados contornos rememorei a braseira, os sofás, a mesa com os comensais sentados, no dia a dia e nos dias festivos. Como tudo se torna presente na ausência de quase todos, na inultrapassável ausência do próprio lugar, tudo guardado na memória, agora desperta, que essa permanece. Reavivam-se as cores do papel da parede, que se iam delindo progressivamente até ficarem reduzidas… a uma memória agora reavivada. A luz ao entardecer, o ambiente, os habitantes, as cores. O som das vozes, os ruídos da casa e da rua, os silêncios, os cheiros.
           Poder ver à distância as cores dos poentes de Setembro, quando íamos acompanhar a casa os amigos que nos visitavam, que depois faziam questão de nos acompanhar por sua vez no regresso, a partir das cores que aqui valem por si próprias, criam e recriam a partir de si próprias outras cores que as continuam num espaço que apenas finas linhas de contorno, quase invisíveis separam. Todo o mundo, talvez o melhor de uma vida a partir do que nada representa figurativamente mas se limita a construir-se como nada sobre nada, ou ínfimo sobre ínfimo, cor sobre cor que se degrada e aperfeiçoa ao mesmo tempo no deslizar em contiguidade, em transições quase imperceptíveis. (“Eram os vivos, não os mortos, que Quirke achava esquisitos.” -  Benjamin Black)
          Não é só a perspectiva do quadro dentro do quadro, do quadrado dentro do quadrado, descentrados, assim impondo novos centros, que convoca a memória, mas a poética da cor que lhe subjaz que reanima e faz reviver o passado, há tanto tempo já – tão longe e contudo tão perto, tão perto e contudo tão distante. A flor da memória na superfície barrada de cores do quadro, dos quadrados que citam formas anteriores, que estudam e reinventam, nos rectângulos dentro de rectângulos, noutras formas. Os lábios afloram, suavissimamente, esse momento mágico da formação e do crescimento do cristal do tempo, de que fala Gilles Deleuze no “cristal do tempo” captado em relação com os «germes» que o compõem nos filmes de Federico Fellini (2) – o momento que passa sem darmos bem por ele, pelo tempo, pelos outros, por nós próprios, como se tudo fosse permanecer assim, intacto, para sempre.
        Como eu percebo que ética e estética fossem a mesma coisa para Josef Albers (1888-1976), cujas pinturas sobre papel estão em exposição no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. Num extremo da exposição, quadros de artistas modernos portugueses dialogam com os de Albers – em especial uma série de que pequenos quadros de Amadeo de Souza-Cardozo. No extremo oposto, outras pinturas de Albers desenham outras formas, mais estruturadas e definidas como formas embora apenas desenhadas a partir das anteriores e sempre abstractas, com encaixes que as articulam e multiplicam num espaço próprio, o de cada quadro, fora do espaço e do tempo comuns e também por isso intemporais. Alguns quadros esboçam figuras em movimento, meros traços que se cruzam e deslizam ao multiplicarem-se.
Estas coisas fazem sentido e é preciso estarmos atentos para não as deixarmos passar por nós sem dar por elas, até para não permanecermos restringidos ao "Quadrado Negro" de Kazimir Malevich (e às suas variações brancas e negras), que todos conhecem e comentam, de que estes quadrados de Albers partem. "Ainda aqui estou, vivo e descontente." (Manuel de Freitas)

Notas 
(1) Cf. "Beau Séjour", de Manuel de Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2003.
(2) Cf. Gilles Deleuze, in "L'image-temps", Les Éditions de Minuit, Paris, 1985, Capítulo IV (edição portuguesa "A Imagem-Tempo", Assírio & Alvim, Lisboa, 2006).

A grande fronteira


         “Era uma vez na Anatólia”/”Bir zamanlar Anadolu’da” (2011), o mais recente filme do turco Nuri Bilge Ceylan, é um filme extraordinário e perturbador de um cineasta que conhecíamos e estimávamos já desde as suas excepcionais primeiras longas-metragens, "A Pequena Cidade"/"Kasaba" (1997) e "Nuvens de Maio"/"Mayis sikintisi" (1999), ambas inéditas comercialmente em Portugal. 
        Abandonando a comodidade da cidade, por mais bela e atraente que ela seja, o cineasta embrenha-se na paisagem desértica da Anatólia em que um grupo de homens se arrisca a entrar em busca da sepultura de um homem que terá sido assassinado e aí enterrado. Esse grupo de homens vai confrontar-se entre si enquanto prossegue a sua busca e vai ser num cenário desértico mas majestoso que entre algumas personagens, o comissário, os seus homens, o procurador, o médico e o presumido assassino, se vai estabelecer uma teia de diálogos sobre o quotidiano, aquele caso e uma outra história passada trazida pelo procurador, que a vai discutir com o médico. Diálogos quase banais, quotidianos, provocados por circunstâncias concretas presentes e passadas, que vão contudo enveredar por um debate filosófico sobre os elementos mais importantes da própria vida humana. Uma noite e uma manhã na Anatólia vão tornar-se assim, primeiro no deserto, depois numa pequena aldeia, mais tarde na cidade, o cenário de diversas discussões que põem em causa a vida e a morte, o homem e a mulher, as gerações – portanto, o tempo – num espaço reduzido ao essencial mas com ressonância universal. Estamos ali como poderíamos, quiçá, estar na Grécia Antiga, ou numa época futura, ou hoje, a questionar-nos sobre o sentido que tudo isto faz a pretexto de encontrar um morto e saber como morreu. E quanto mais a morte, na sua presença física se torna presente, mais longe vamos avançando na discussão de questões corriqueiras e de questões centrais da nossa vida comezinha, questões insignificantes mas a que atribuímos a maior importância. Porque se vive? Porque se morre? Porque se mata? 
                       
          Como não é um cineasta dado a facilidades de qualquer espécie, Nuri Bilge Ceylan constrói o seu filme com base em longos planos fixos que não evitam os planos aproximados de rosto, concentrando-o nas personagens e nas palavras, nos diálogos que travam a partir de uma situação de acção rarefeita, em especial na primeira parte. Essa estratégia formal, que se vai prolongar até ao fim do filme, faz com que as personagens e os diálogos se imponham por si próprios a partir de elementos muito banais, e damos por nós próprios a estabelecer o contraste entre essas palavras e o cenário primitivo, primordial e desértico, como um início ou fim do mundo. E é no seu todo havido como trajecto em busca de um cadáver que "Era uma vez na Anatólia" faz lembrar a missão que é confiada a Bennie/Warren Oates em "Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia"/"Bring Me the Head of Alfredo Garcia", de Sam Peckinpah (1974), exemplar filme negro que constitui um dos cumes da obra do cineasta. Mas a semelhança, se é flagrante, acaba aí, pois o projecto de Nuri Bilge Ceylan prende-se menos com a acção do que com a reflexão, e uma pesquisa física transforma-se numa indagação sobre o ser humano, a natureza humana, cada uma das personagens e cada um de nós.
                            
           Sem pretender dar lições, antes partindo do muito concreto do caso e das vidas das suas personagens, mas também sem facilitar em nada a vida ao espectador, o cineasta deixa-nos abismados no abismar das suas personagens perante as suas próprias vidas, circunstâncias e interrogações. Alguém matou? Se sim, quem, como e porquê? (E todas as dúvidas ficam, apesar de tudo, a pairar sobre isto.) E no passado, alguém morreu de morte natural ou se matou? E porquê? E repare-se que tudo isto é discutido por personagens comuns no contexto de uma situação quotidiana embora especial, sem chamar em seu apoio o grande pensamento da grande filosofia do presente ou do passado, mas tornando-se pelo próprio cenário e contexto alguma coisa de universal e que nos interessa a todos em todo o lado, em qualquer época. Como na grande literatura, no grande cinema, debatemo-nos uns com os outros, com o nosso presente, a nossa memória – uma mulher presente, mulheres passadas, que os homens tendem a culpabilizar pelo que acontece, mulheres que raramente e em circunstâncias muito diferentes aparecem, o que faz com que o ausente se torne central e permite ao cineasta construir um filme imensamente audacioso e moderno que se abre para o mistério da vida, da morte, do mundo: o medo, a culpa, a solidão, a esperança, o vazio.
                           Era uma vez na Anatólia
             As lágrimas do procurador e do médico, que lhes deixam marcas negras na cara, não nos atingem, de tal maneira a construção do filme nos coloca como observadores não participantes, embora interessados dado o carácter extremo das circuntâncias. Dessa forma, aquele grupo (selvagem) torna-se o cadinho em que se consomem e transformam as vidas e as mortes, o presente, o passado e o futuro, tanto mais quanto alguém morreu sem se saber no final ao certo como (embora se suspeite), que alguém matou sem se saber ao certo no final quem e porquê (embora no filme sejam deixadas pistas) - sobre a morte passada atingem-se conclusões especulativas, tranquilizadoras. A culpa? A morte? A vida? Que cada um encontre para si próprio a sua própria resposta, como cada personagem do filme faz – como em Albert Camus, Ingmar Bergman, Alain Resnais, Julien Gracq. De resto, estamos e permanecemos todos tão sós e dependentes de circunstâncias tão fortuitas, que no filme poderemos rever-nos em qualquer personagem, incluindo o morto - embora essa não seja uma questão aqui central. E depois do fim não há mais nada que nos conforme, olhos secos e sem amargura ou mesmo melancolia que nos console, salvo a própria beleza deste filme, ela própria uma certeza redentora que nos cabe descobrir e construir, i. e., merecer.
            “Era uma vez na Anatólia” é um grande filme de um cineasta de enorme saber fílmico e humano, que serenamente nos faz pensar sem nos prometer certezas ou recompensas. Honra lhe seja! Este um filme que desafia o espectador emancipado de que fala Jacques Rancière (1), e que deve ser hoje em dia cada um de nós.
           Mas se Nuri Bilge Ceylan é o meu cineasta turco de eleição, como se deduz do que antecede, aproveito para lembrar a propósito dele o grande escritor turco contemporâneo Orhan Pamuk, Prémio Nobel da Literatura em 2006, um autor fascinante e largamente traduzido em português.

Nota
(1) Cf. “Le spectateur émancipé”, de Jacques Rancière, la fabrique éditions, Paris, 2008 (edição portuguesa “O espactador emancipado”, Orfeu Negro, Lisboa, 2010).

domingo, 13 de maio de 2012

A cidade e o cinema - 2


(continuação)

                                                   As cidades dos cineastas
             Sem dúvida que certos cineastas associaram o seu nome e a sua obra a certas cidades, que souberam entender e transmitir de forma particularmente feliz.
        Mesmo nos casos citados, e noutros, é importante que os filmes e os cineastas mencionados sejam aqueles e não outros, na medida em que essa relação implica sempre um olhar especial sobre a cidade.
            Mas a relação entre Roberto Rossellini e Roma, presente, nomeadamente, no já citado "Roma Cidade Aberta" ou em "Era notte a Roma" (1958), ou entre Federico Fellini e a mesma cidade, em "A Doce Vida"/"La dolce vita" (1960) ou em "Roma de Fellini"/"Roma" (1972), tem alguma coisa que ver com o imaginário particular de cada cineasta, o que, no caso do segundo, se torna particularmente evidente num filme como "A Cidade das Mulheres"/"La città delle donne" (1980). O mesmo se dirá da relação de Vittorio De Sica com Milão.
            Mas muitos outros casos, passados e presentes, seriam de mencionar, como Paris, mas também outras cidades francesas, de Jean Renoir e René Clair, da “nouvelle vague”, de Philippe Garrel, Leos Carax e Cristophe Honoré; Londres e outras cidades inglesas de Alfred Hitchcock, David Lean, de Michael Powell e Emeric Pressburger, do “free cinema” e de Mike Leigh; Munique, Berlim e outras cidades alemãs de Rainer Werner Fassbinder, Wim Wenders e outros nomes do "cinema novo alemão"; Viena de Áustria de Carol Reed e Orson Welles; Nova Iorque de John Cassavetes, Sidney Lumet, Martin Scorsese, Woody Allen e Spike Lee; Calcutá de Satyajit Ray; Tóquio de Yasujirô Ozu; Hong Kong de Wong Kar-wai; o Cairo de Youssef Chahine; Madrid de Pedro Almodôvar; Marselha de Robert Guédiguian e Nápoles de Mário Martone; o Rio de Janeiro de Glauber Rocha e Fernando Meirelles, São Paulo de Walter Salles; ou Lisboa de Paulo Rocha, Fernando Lopes, João César Monteiro, João Botelho e Pedro Costa. São cidades reais que entram no imaginário dos espectadores tal como para eles foram imaginadas, a que haverá que acrescentar as cidades europeias revisitadas por Woody Allen nos seus filmes mais recentes: Londres, Barcelona, Paris.
                     Mastroianni and Ekberg in fountain
            Mas as relações entre as cidades e os autores de cinema passa, frequentemente, por uma especial capacidade para as evocar, para as recordar e sonhar, como acontece com Fellini, com Truffaut ou com Scorsese, ou então por uma capacidade para as transfigurar, como acontece com Ozu, com Fassbinder e Wenders ou com Cassavetes.
            Há um olhar especial sobre a cidade que singulariza cada um dos cineastas que dela tratou, dos mencionados ou outros. Há uma especial sensibilidade a aspectos arquitectónicos, a aspectos humanos, que funciona de uma maneira nuns cineastas, de outra noutros. Tudo depende quer do cineasta, quer da cidade, e da relação que entre si mantêm. Também neste aspecto, Woody Allen e Almodóvar são exemplares.
            Ora esse olhar sobre a cidade pode, também, ser um olhar documental, como o de Joris Ivens sobre Roterdão ou Paris, o de Walter Ruttman sobre Berlim, o de Dziga Vertov sobre Odessa, o de Manoel de Oliveira sobre o Porto, o de Jean Rouch sobre Abidjan mas também sobre Paris, ou, muito perto de nós, o de Sérgio Tréfaut sobre Lisboa - mas também o de João Canijo em "Fantasia Lusitana" (2010).
            Mas existem ainda as cidades dos géneros, nomeadamente da comédia, como a Lisboa da comédia dos anos 30 e 40, ou a Roma da comédia italiana dos anos 50 e 60, a Paris de Jacques Tati ou a Nova Iorque de Woody Allen.
                      
           Sempre estão em causa olhares pessoais, temas pessoais, obsessões pessoais, o que leva a que cada cidade seja, no cinema, sempre uma cidade imaginada, uma cidade mítica e mágica, uma cidade espectral, que cada espectador saberá entender e fazer sua.
           Claro que, de cada cidade, cada filme reproduz os espaços urbanísticos e arquitectónicos, do mesmo modo que lhes capta as gentes e os modos de vida. A cidade fílmica é, assim, uma cidade sempre inventada, sempre criada filme a filme, cineasta a cineasta, sempre diferente, construída espaço a espaço pela descontinuidade fílmica típica do cinema, que torna filmicamente contíguo o que é fisicamente descontínuo.
         Além disso, a cidade, cada cidade, tem as suas cores específicas, que servem para a caracterizar e singularizar, que o cinema, desde que adoptou a cor, passou a captar também como mais um elemento realista ou como mais um elemento de abstracção. De igual modo, cada cidade tem a sua luminosidade própria, o que o cinema, a preto e branco ou a cores, sempre soube tratar e integrar, mesmo nas cidades cenograficamente construídas em estúdio, como tipicamente aconteceu com o filme negro, no prolongamento da inspiração do expressionismo alemão. Tal como cada cidade tem os seus próprios habitantes, com hábitos e comportamentos próprios, e é nesse encontro entre o criador cinematográfico e o concreto que se define um grande cineasta (10).

                                                    A cidade pós-moderna
            Na actualidade, a cidade tem marcas distintivas que permitem falar, na sua representação pelo cinema, de uma cidade pós-moderna. Já não são questões de presente e de passado, de histórico e de moderno, mas de uma circunstância diferente em que as luzes, os brilhos da cidade ofuscam e impõem um espaço novo, como de sonho mas também de pesadelo.
            Nesta nova cidade mergulha-se a partir da distância até nela se penetrar, do distante para o interior, por vezes até às vísceras. E nela não foi só a arquitectura que mudou, foram as relações entre as pessoas que mudaram, que se desumanizaram ainda mais. Assim, o espaço da cidade transformou-se numa espécie de espaço virtual, virtualizado por se ter tornado um espaço de passagem acelerada, no limite do desabitado, pelo menos durante grande parte do dia. As relações humanas tornaram-se quase abstractas mesmo na proximidade, enquanto as distâncias são quebradas na televisão e no ciberespaço.
            Não devo ignorar as imagens televisivas dos ataques às Torres Gémeas de Nova Iorque, que marcaram o início do século XXI, já que elas são imagens em directo da cidade atingida por meios aéreos, depois repetidas uma infinidade de vezes nos diversos ecrãs. A esse propósito, o filme que mais me interessou foi “World Trade Center” (2006), de Oliver Stone, com a sua austera reconstituição da operação de salvamento de dois homens soterrados.
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            Mas há mais imagens dessa cidade pós-moderna para que quero chamar a atenção. Das relações carnais e metálicas de “Crash”, de David Cronenberg (1996), às relações rarefeitas de “Lost in Translation”, de Sofia Coppola (2003), e às relações desfeitas de “Alice”, de Marco Martins (2005), são a velocidade, o desencontro e a impossibilidade que se impõem. Da Barcelona de José Luis Guerín (“En construcción”, 2001) à Lisboa de João Pedro Rodrigues (“O Fantasma”, 2000; “Odete”, 2005) e João Canijo (“Sangue do Meu Sangue”, 2011), são as mudanças no cenário que impõem a transformação humana. Como fica, assim, longe, nas margens da memória, o Porto de Manuel de Oliveira (“Douro, Faina Fluvial”, 1931; “Aniki-Bobó”, 1942; “O Pintor e a Cidade”, 1956), distância que “Porto da minha infância” (2001) documenta e comenta, uma cidade no entanto revisitada recentemente com brio por Paulo Rocha (“O Rio do Ouro”, 1998; “As Sereias”, 2001; “Vanitas”, 2004).
            Mas a cidade feérica também tem gente que parcialmente esmaga, como a Los Angeles de “Heat” (1995) e de “Colateral” (2004), ambos de Michael Mann, e ganha uma nova pertinência o olhar de David Lynch sobre Hollywood, em “Mulholland Drive” (2002) e em “Inland Empire” (2006), que é também um olhar sobre o próprio cinema. E que dizer da Lisboa de Pedro Costa, senão que precisou dele e dos seus filmes para existir, sem prejuízo do interesse que sobre o centro da cidade perante o vazio apresenta “The Lovebirds” (2007), de Bruno de Almeida, e sobre os seus subúrbios convulsivos e incomunicantes evidencia “Entre os dedos”, de Tiago Guedes e Fernando Serra (2008). Ou então cidades como Hong Kong de Johnnie To, Taipei de Edward Yang, Pequim e Xangai de Jia Zhang-ke, as cidades japonesas de Takeshi Kitano.          
           A escala humana passou a tornar-se mais palpável, mais visível, mais contactável num espaço virtual que num espaço real tornado fluido, fugidio. A materialidade da cidade escapa-se enquanto a imaterialidade da comunicação se impõe. As pessoas encontram-se nos novos  espaços públicos como novas arenas de convívio impessoal, que tentam humanizar, enquanto se conectam na internet.
           As distâncias anulam-se e percorrem-se rapidamente, e ao avançar para o futuro como que viajamos, no cinema, para o passado: o passado dos lugares que visitámos e que conhecemos, pelo menos da História do Cinema.
                       
        A cidade pós-moderna torna-se um emaranhado de encruzilhadas, de passagens desniveladas, actualizando as previsões visionárias do passado e abrindo para novos labirintos, exteriores e interiores (e há os labirintos exteriores que começam por ser interiores - de "Shining", de Stanley Kubrick, 1980, a  “Lost Highway”, de David Lynch, 1997, e “Spider”, de David Cronenberg”, 2002 - e os labirintos temporais dos filmes de Raoul Ruiz). E quanto mais digitalmente retocada mais atraente e feérica ela fica, mas também de aspecto menos humano, mas terá que se observar que o próprio humano mudou, como que se tornou mutante, nomeadamente porque a sua relação com a técnica acelerou a sua relação com o espaço/tempo, transformou a sua relação com o corpo. E agora o cinema antecipa outros futuros, não por acaso catastróficos, o que, com os sucessos do passado recente, nem sequer é de espantar (“A. I.  – Inteligência Artificial”/”Artificial Intelligence: A. I.”, 2001, e “Relatório Minoritário”/”Minority Report”, 2002, ambos de Steven Spielberg).
            Mas nos novos espaços da cidade, novos encontros de formas arquitectónicas geram novas possibilidades de exploração da criação audiovisual, de hibridação de meios, de técnicas, de formas de expressão, novos espaços para os novos suportes. Mesmo para o cinema, o espaço da sala deixa de ocupar o lugar central que ocupava, disseminado como passou a estar pelas grandes superfícies comerciais e desprovido de filmes que não estreiam em sala e passam para o circuito DVD, além de poderem ser acessíveis na internet. A uma nova relação com o tempo corresponde um novo consumo dos filmes, também ele descentrado e mais acelerado. Mudou o contexto, altera-se a sociologia do cinema (11).
            Mas refira-se, também, as cidades ainda humanizadas como as dos filmes de Abbas Kiarostami, o cineasta iraniano que melhor tem feito a crítica da cidade pós-moderna em filmes sobre um país e um povo em constante catástrofe mas onde as pessoas ainda se procuram, bem como a Fenyang e a Fengjie dos filmes do chinês Jia Zhang Ke, em cujas ruas e casas o cineasta tem reinventado o cinema. Mas também os filmes do turco Nuri Bilge Ceylan, do filipino Brillante Mendonza e de tantos outros que têm procurado nos conflitos das suas personagens cosmopolitas, mas tantas vezes nas margens da metrópole, o pulsar novo de uma nova modernidade que já é, em larga medida, virtual, mas conserva as suas resistências instaladas em modos de vida tantas vezes tradicionais e de proximidade. E tenha-se presente que um cineasta tão importante como Gus Van Sant não anda longe de uma crítica semelhante. Uma crítica que, aliás, não se dirige apenas à cidade mas também ao próprio cinema, em que passaram a dominar os efeitos especiais digitais para gáudio da esmagadora maioria, que talvez tenha passado a pensar que agora o cinema e também a vida passaram a ser assim – e se calhar não estamos longe disso (12). 

Notas
(10) Sobre uma temática semelhante, embora extra-cinemtográfica, ver "O Artista e a Cidade", de Eugenio Trías (Fim de Século, Lisboa, 2010 - a edição original espanhola é de 1974). Sobre esta temática no cinema, ver "A Cidade Imaginária", de Luiz Nazario (org.), Editora Perspectiva, São Paulo, 2005.
(11) Sobre o mundo contemporâneo, incluindo a cidade, ver de Vicente Verdú, "O Estilo do Mundo - A vida no capitalismo de ficção" (Fim de Século, Lisboa, 2008 - a edição original espanhola é de 2003).
(12) Sobre a matéria tratada nesta última parte, isto é, sobre uma nova modernidade que poderemos estar a viver e que terá sido, segundo alguns, onde foi parar a primitivamente chamada pós-modernidade, gostaria de aconselhar dois autores: Thomas De Koninck, de quem está editado em português "A nova ignorância e o problema da cultura" (Edições 70, Lisboa, 2003); e Gilles Lipovetsky, de quem estão editadas em português várias obras, entre as quais "A felicidade paradoxal - Ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo" (Edições 70, Lisboa, 2007). Sobre a proposta de uma nova ontologia do cinema ver, de Thomas Elsaesser e Malte Hagener, "Film Theory - an introduction through the senses" (Routledge, New York, 2010). E convém não esquecer que a cidade securitária, sobretudo pós-11 de Setembro de 2001, é aquela em que estamos quando vamos trabalhar, quando vamos ao cinema ou assistir a outro espectáculo, aquela em que vivemos.

A cidade e o cinema - 1


         O cinema é, como se sabe, um fenómeno essencialmente urbano, tanto pelas suas origens como pelos desenvolvimentos da sua produção e distribuição comercial (1).
        Não significa isto que o cinema não se tenha ocupado, e continue a ocupar, de outros meios, rurais, marítimos, aéreos, subterrâneos, espaciais, tomando-os como meios humanos. Não é essa a questão.
       O problema está em que, progressivamente, passada a fase dos "nickleodeons", e mau grado as experiências de que há notícia, inclusivamente em Portugal, do "cinema ambulante" (2), o cinema se implantou nas grandes cidades e aí obteve a sua viabilização financeira, se tornou espectáculo e arte (3).
         Fruto do desenvolvimento da sociedade industrial do século XIX (4), o cinematógrafo dos irmãos Lumière começou por ser mostrado a especialistas antes de ser divulgado publicamente (5). Mas mesmo essa mítica primeira sessão pública teve lugar numa cidade mítica entre todas as cidades europeias: Paris.
         Mais do que isso, a implantação do cinema como indústria nos Estados Unidos da América, que ocorre nos anos 10 do século XX, em Hollywood, vai de par com uma cidade que ela implica e que até hoje dela permanece indissociável: Los Angeles.
       Mas os anos 10 assistem também, na Europa, ao lançamento dos primeiros grandes estúdios de cinema, designadamente da U.F.A. alemã, depois de todas as experiências anteriores, de maior ou menor sucesso e dimensão, nomeadamente em Itália e em França (a segunda Invicta Film é fundada  no Porto no mesmo ano da UFA, 1917).
                  
           Pode, assim, dizer-se que o cinema nasce e cresce como fenómeno urbano, e que, no seu desenvolvimento, vem a originar cidades e "cidades" dentro da cidade, no interior das quais outras ou as mesmas cidades são recriadas. Quando, nos anos trinta, são criados em Itália os grandes estúdios cinematográficos, não por acaso eles são denominados "Cinecittà".
            Também as salas destinadas à projecção de filmes se desenvolvem a partir dos anos dez, com a adaptação e/ou a construção de vastas salas destinadas à projecção de filmes (6), fenómeno este que se alarga rapidamente a todo o mundo civilizado.
           Aliás, estes espaços específicos para projecção de filmes viram-se alterados, nos anos sessenta, com a criação das salas "estúdio", e, mais tarde, a partir dos anos oitenta, com a passagem à integração de complexos multi-salas em grandes e novos espaços comerciais (7).
           Mas vai mais longe esta ligação, por assim dizer umbilical, entre a cidade e o cinema. Narrativas e géneros, personagens e situações típicas no cinema passam pela cidade. A ela se adequam, por exemplo, o filme de gangsters e o filme policial, o filme de realismo psico-social e a comédia musical, entre outros géneros de manifestação precoce, nomeadamente no cinema americano.
            A figura do gangster, por exemplo, que tem apresentado uma perdurabilidade notável no cinema, é uma figura eminentemente urbana, enquanto a figura do cow-boy é uma figura eminentemente rural, mesmo quando ligada à fundação das primeiras cidades do interior Oeste dos Estados Unidos da América.
           Aliás, ao falarmos da cidade e o cinema, não devemos esquecer as "margens" dela, sejam as margens propriamente ditas, marítimas ou fluviais, sejam os subúrbios, que se estenderam e estendem em volta das cidades por forma que as alarga e amplia, do mesmo passo que as transforma.
         Também não devemos esquecer a topografia própria de cada cidade, seja-nos ela dada como produto da filmagem da cidade real, seja ela recriada em estúdio para o efeito específico de vir a ter uma existência fílmica.
          Neste ponto convém mesmo sublinhar que a cidade no cinema, seja ela qual for, seja ela real ou artificial, é sempre uma cidade que passa a ter, pelo simples facto de ser filmada, uma existência outra, fílmica. Ora na passagem da cenografia da cidade para o fílmico vai todo um acto de criação, que consiste na criação de uma cidade outra, de uma cidade nova e particular, que se caracteriza pelo seu carácter fílmico, fruto da combinação da realidade dos cenários com o acto de filmagem, com a posterior montagem e a final projecção.
                                                          
                                                     A cidade no cinema
Para além de ser um fenómeno essencialmente urbano, o cinema é também um fenómeno da modernidade, de uma primeira modernidade que explode nos primeiros 25-30 anos do século XX em resultado das transformações artísticas que acompanham um desenvolvimento científico e tecnológico que, com o tempo, o de todo o século passado, vai levar as sociedades desenvolvidas de um estádio industrial a um estádio pós-industrial.
            Deste modo, o cinema filma o seu tempo, as cidades do seu tempo, designadamente, da mesma forma que filma o passado das cidades em filmes históricos ou de época, e as cidades de outro tempo, passado ou futuro, e até de outro espaço-tempo, que repetidamente antecipa e inventa na ficção científica (8).
            Há assim, e desde logo, a grande cidade, a grande metrópole em que as pessoas vêem a sua dimensão como que reduzida pelo contraste com os grandes edifícios, e a pequena cidade, que poderíamos chamar cidade de província, com a maior proximidade das relações entre os seus habitantes. Teríamos, assim, a Nova Iorque de “A Multidão”/”The Crowd” (1928), de King Vidor, de "Ele e Ela"/"Love Affair" (1939), de Leo McCarey, e de "Vontade Indómita"/"The Fountainhead" (1949), de King Vidor, e a Atlanta de "E Tudo o Vento Levou"/"Gone with the Wind" (1939), de Victor Fleming e David O'Selznick, por exemplo; ou as pequenas cidades de "Fargo" (1996) e de “O Barbeiro”/”The Man Who Wasn’t There” (2001), ambos dos irmãos Joel e Ethan Coen, tal como as de inúmeros filmes do cinema independente americano. Ou, se quisermos, a Nova Iorque de estúdio de “A Hora da Saudade”/”The Clock”, de Vincent Minnelli (1945), e do musical do pós-guerra, quando o género sai dos estúdios com Stanley Donen e Gene Kelly ("Um Dia em Nova Iorque"/”On The Town”, 1949, e "Dançando nas Nuvens"/"It's Always Fair Weather", 1955), posteriormente revisitada em “West Side Story”, de Robert Wise e Jerome Robbins (1961), e “New York, New York”, de Martin Scorsese  (1977).
                         Everett
            Será, aliás, curioso constatar que as cidades "artificiais", de estúdio, se podem prestar a uma singular reconstituição da cidade, seja no pormenor seja no grande espaço, como frequentemente o filme policial e o filme de gangsters, por um lado, o filme histórico ou de época, por outro, ou ainda o filme de terror, demonstram. Ora se isso aconteceu e acontece deve-se à participação nos filmes de grandes cenografistas com formação arquitectónica.
            Coisa não muito diferente serão as cidades do futuro, de que o grande paradigma continua a ser "Metropolis" (1927), de Fritz Lang, e que só vem a encontrar rival, décadas depois e já a cores, em "Perigo Iminente"/"Blade Runner" (1983), de Ridley Scott.
            Nestes casos verifica-se a exploração de elementos arquitectónicos enquanto tais, sejam eles fruto da construção cenográfica (de Otto Hunte, Erich Kettelhut e Karl Vollbrecht, com fotografia de Karl Freund e Gunther Rittau, e efeitos especiais de Eugen Schufftan, no primeiro caso) ou aproveitamento parcial de cenários reais de cidades reais (de Lawrence G. Paull, com fotografia de Jordan Cronenweth e efeitos especiais de Douglas Trumbull, no segundo). E quem nos diz hoje, quando esse futuro é em grande parte presente, que não estamos perante a concretização de cidades futuras, que em larga medida convivem com o passado das cidades, nem sempre sem o prejudicar?
        Distingam-se mais cidades: marítimas, com rios ou lagos, interiores, de planície, de deserto, de montanha ou de vale. Há aí toda uma variedade de circunstâncias espaciais que grandes cineastas souberam aproveitar visual e narrativamente, de Alfred Hitchcock a Elia Kazan, de David Lean a John Carpenter, de David Cronenberg a David Lynch. Poderia ainda falar-se das cidades subaquáticas, subterrâneas e espaciais da ficção científica.
          Mas entre as cidades do futuro contam-se as cidades apocalípticas, onde um fim do mundo perpassa pelas ruas e os edifícios das cidades, como paradigmaticamente acontece com "Nova Iorque 1997"/"Escape from New York" (1981) ou "Fuga de Los Angeles"/"Escape from L. A." (1996), ambos de John Carpenter.
                   Cenário do filme Metrópolis
            Este, aliás, um aspecto particularmente interessante, que o recrudescimento da violência nas cidades contemporâneas traz para a ordem do dia, e que se alarga à violência suburbana ou àquela que acompanha frequentemente os grandes acontecimentos de massas ou confrontos de grupo, o que acontece dos filmes de Walter Hill aos de Mathieu Kassovitz, dos de Martin Scorsese aos de John McTiernan, dos de Abel Ferrara aos de Quentin Tarantino (9).
           Existem também as cidades reais, normais ou devastadas, como as de Roberto Rossellini em "Roma Cidade Aberta"/"Roma, città aperta" (1945) e em "Alemanha Ano Zero"/"Germania anno zero" (1947), ou a de José Ernesto de Sousa em "Dom Roberto" (1961), e as cidades construídas com recurso a cenografias mais ou menos audaciosas, com utilização ou não de efeitos digitais, como as de "Eduardo Mãos de Tesoura"/"Edward Scissorhands" (1990) e as dos dois primeiros "Batman", em especial ("Batman"/"Batman", 1989, e "Batman regressa"/"Batman returns", 1992), de Tim Burton – mais recentemente a Paris de cenografia digital de “A Invenção de Hugo”/”Hugo” (2011), de Martin Scorsese, em 3D.
         Repete-se: novas ou antigas, presentes ou futuras, as cidades no cinema são sempre fílmicas, em que a um efeito de realidade se alia na recepção um inevitável efeito fantomático que as reifica, efeitos esses combinados em proporções de acordo com a inspiração e os propósitos de cada cineasta.

(continua)

Notas
(1) Cf. Georges Sadoul, in "Histoire du Cinéma Mondial", Flammarion, Paris, 1958 (edição portuguesa "História do Cinema Mundial", Livros Horizonte, Lisboa, 1983). Cf. também Noel Burch, in "La Lucarne de l'infini - Naissance du langage cinématographique", Nathan, Paris, 1991. Cf. ainda de Michael Chanan,   "Economic Conditions of Early Cinema", e de Janet Staiger, "Combination and Ligation - Structures of US Film Distribution 1896-1917", ambos in "Early Cinema: space, frame, narrative", edited by Thomas Elsaesser with Adam  Barker, British Film Institute, London, 1990.
(2) Cf. Michael Chanan, citado na nota 1, e, para Portugal, Luís de Pina, in "Panorama do Cinema Português (das origens à actualidade)", Terra Livre, Lisboa, 1978.
(3) Cf. Noel Burch, citado na nota 1, e Michael Chanan, também citado na nota 1.
(4) Cf. Noel Burch, citado na nota 1.
(5) Cf. Henrique Alves Costa, in "A longa caminhada para a invenção do Cinematógrafo", Cineclube do Porto, Porto, 1988, e Laurent Mannoni, in “Le grand art de la lumière et de l’ombre: archéologie du cinéma”, Nathan, Paris, 1995 (edição brasileira “A grande arte da luz e da sombra – Arqueologia do cinema”, SENAC/UNESP, São Paulo, 2003).
(6) Cf. Georges Sadoul, citado na nota 1, e Noel Burch, também citado na nota 1. Para Portugal, cf. Alves Costa, in "Os antepassados de alguns cinemas do Porto", Instituto Português de Cinema/Cinemateca Nacional, Lisboa, 1975; M. Felix Ribeiro, in "Os mais antigos cinemas de Lisboa 1896-1939", Instituto Português de Cinema/Cinemateca Nacional, Lisboa, 1978; José-Augusto França, in "Os anos vinte em Portugal - Estudo de factos sócio-culturais", Editorial Presença, Lisboa, 1992, Segunda Parte, Capítulo III, "O país «a saque»", págs. 267/268, e, em especial, Terceira Parte, Capítulo VI, "Cinema e cinéfilos".
(7) Isto sem esquecer os cinemas ao ar livre, em moda nos Estados Unidos desde os anos cinquenta. Mas há que ter também presentes as modificações entretanto verificadas no circuito de distribuição de filmes, primeiro com o vídeo, depois com o DVD.
(8) E aqui outras figuras se tornam visíveis no cinema de ficção científica, que partem do astronauta e vão até às sagas do futuro ou do passado, até outros planetas ou sistemas – e estou a pensar nas bizarras cidades da saga de “A Guerra das Estrelas”/”Star Wars”, de George Lucas, da qual estão concluídos seis episódios, quatro dos quais dirigidos por ele.
(9) Sobre a violência no cinema, numa perspectiva interessante, veja-se, de Olivier Mongin, "La Violence des Images ou comment s'en debarrasser?", Éditions du Seuil, Paris, 1997 (edição portuguesa "A violência das imagens ou como eliminá-la?", Editorial Bizâncio, Lisboa, 1998). Mais recente e muito curioso é “Violência e Cinema – Monstros, Soberanos, Ícones e Medos”, de Luís Nogueira, Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2002.