tag:blogger.com,1999:blog-4230740887348321004.post2445881169604300358..comments2020-04-04T16:25:16.506+01:00Comments on Some like it cool: Um belo mistérioCarlos Melo Ferreirahttp://www.blogger.com/profile/02763750308043093306noreply@blogger.comBlogger2125tag:blogger.com,1999:blog-4230740887348321004.post-32273647884328266132014-08-05T19:19:33.503+01:002014-08-05T19:19:33.503+01:00(2)
Essa sedução cruel e enganadora assentará na a...(2)<br />Essa sedução cruel e enganadora assentará na ausência de afectos e num rosto de uma frieza arrepiante e feiticeira. Só que essa prática desumana, continuada e repetida, tem um retorno, ou seja, o filme de Jonathan Glazer não se fica apenas por uma visão desumanizada, como se o cosmos construído tivesse esse fim. O que há, por um lado, é um mistério que subsiste com várias interpretações ou soluções; por outro lado, há um universo de índole humana que surpreendentemente tende a humanizar-se. Ambas as situações coexistem mas não podem ser confundíveis. É isso o que o filme mostra por intermédio dessa mulher misteriosa e predadora, que, a dado momento, tende a sentir, a condoer-se, a acariciar e a sofrer.<br /><br />Antes, esse regresso tem um auge de crueldade, é a cena impiedosa do afogamento do casal numa praia inóspita, da criança que fica sozinha, chora e desprotegida morrerá durante a noite, e do naturista checo que tentará salvar o casal. Ele será assassinado a frio com violência e em acto de misericórdia pela predadora, depois de ter chegado à costa exausto e derrotado por não ter conseguido evitar os afogamentos. Na sequência desta situação ressurgem o motard, em busca de um novo corpo, e a mulher misteriosa que, ao volante da carrinha conduzida desde o início da sua missão, escuta as notícias transmitidas pela rádio da tragédia que ela própria presenciou e participou. É aqui, através de um grande-plano confiscando o seu olhar, que parece ser iniciada a mudança. É, uma vez mais, a presença relembrada do olho e da fala como integrantes do universo humano.<br /><br />No entanto, será somente com aquele que tem a face deformada que a mulher predadora se constrange e expressa humanidade. Depois de com ele falar, como jamais procedera com nenhum outro capturado, condu-lo ao espaço que é negação de espaço. Pela primeira vez caminha, não à frente, mas a seu lado. E isso é significativo. Deixando-o penetrar no líquido viscoso, trá-lo de volta, após ter passado por um espelho de uma casa arruinada, onde, confrontada face a face consigo mesma, descobre-se como ser mais do que mera pele. Um espelho em tudo diferente ao espelho negro do líquido viscoso.<br /><br />A partir daí é o tempo da insegurança, de se encontrar perdida no meio de uma aldeia também ela perdida, de receber e dar afecto àquele que a socorre e abriga. Por seu turno, o motard, verdadeiro senhor e dono que tudo quer controlar, vai no encalço daquele que tem a cara deformada que, em nudez absoluta, deambula procurando uma qualquer saída. Captura-o e persiste, traçando linhas e focos de luz, na perseguição à mulher outrora predadora mas eternamente misteriosa.<br /><br />Na parte final do filme, após a fuga, após uma humanização conseguida e impossível de perpetuar, recolhida na floresta como abrigo, a mulher mistério é vítima da captura de um vigilante que a quer possuir e cuja fisionomia é estranhamente semelhante à do motard. Reagindo e lutando, nós descobrimos que, afinal, a mulher misteriosa é pele e que debaixo dessa pele não há nem podia ser observado o espírito, mas apenas o corpo. E isso é significativo. É, pois, por ele que as acções humanas se cumprem, sabe-se lá qual a proveniência destas. Na verdade, ela é um corpo negro cuja contextura parece ser idêntica ao viscoso líquido que submergiu todos aqueles que antes foram por si aprisionados.<br /><br />Unicamente o fogo, lançado por aquele vigilante incrédulo e amedrontado, irá acabar com tudo, excepto com o mistério, como sempre tem acontecido. Elevando--se nos céus vemos o fumo das cinzas de alguém de estranha beleza que um dia ousou tornar-se humana.<br /><br /><br />S. Julião, Portalegre,<br />Agosto de 2014<br />António Júlio Rebelo <br />A26rebelohttps://www.blogger.com/profile/14607610126700328810noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-4230740887348321004.post-20068873665394102302014-08-05T19:14:52.375+01:002014-08-05T19:14:52.375+01:00Sem nome ou o corpo debaixo da pele
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O início ...Sem nome ou o corpo debaixo da pele<br />(1)<br /><br />O início de “Under The Skin” surge a partir de um minúsculo ponto luminoso projectado de um cosmos em formação. A feliz ambiguidade dessas imagens, em movimento alucinado, leva-nos à revelação de um olho, confirmando que, afinal, esse mesmo universo em expansão é, sobretudo, um universo humano. Por isso, o sentido da expressão fundadora que diz das trevas à luz é agora actualizada por “No princípio era o olho”. Prosseguindo a constituição dessa feliz ambiguidade, no exacto momento em que o olho nasce, começamos a ouvir soletrar letras, as quais, num ápice, se vão constituindo em palavras simples e isoladas, sem nenhum sentido, ou talvez não. Não é a boca então que fala, mas o olho. Por isso, a expressão fundadora é reactualizada em “No princípio era a palavra”, num eterno retorno à primazia inevitável da abstracção. Fica assim feita, em breves momentos, um relato da constituição deste cosmos. Só isto é suficientemente genial para dizermos que o filme de Jonathan Glazer é já um ganho.<br /><br />O que virá a seguir garantirá essa profecia, ou melhor, a pele que se desprende e que mostra o espírito – que apenas pode ser traduzido por corpo –, terá o olhar e o dizer (pouco) como expressões desse universo humano, aparentemente cruel, mas que no desenrolar do filme se revela tardiamente afectuoso e, por isso, carregado de humanidade. O filme do jovem realizador inglês tem ainda esse mérito, jogando com o mistério desde o início até ao fim quer enganar-nos, isto é, quer fazer passar o terrível dos tempos memoriais e actuais. Só que o resultado é justamente o seu contrário. Se o mistério é inalcançável, a humanização, essa sim, é possível.<br /><br />O que se concretiza desse cosmos recém-formado começa com o emergir de um motard (Jeremy McWilliamsem) em velocidade vertiginosa, que recolhe e traz uma mulher morta para um espaço branco, que, por ser o vazio, é afinal a negação de ser espaço. Aí, nessa ausência de lugar, ocorre uma transfiguração: outra mulher (Scarlett Johansson) reinicia uma existência que será vivida num mundo real e com pessoas reais. Essa mulher sem nome, assumindo-se como uma autêntica predadora, sinaliza, seduz e conduz, pela sua beleza, homens para um outro espaço, igualmente vazio como o anterior. Em oposição, esse espaço é negro e viscoso, onde esses seduzidos vão-se atolando numa descida irreversível, começando-se a decompor por asfixia e num movimento de extinção. Ela irá à frente, os homens atrás; ela regressará, eles não, ela ao voltar passará por uma placa negra: um espelho que não permite ainda a sua autodescoberta.<br /><br />(cont.)<br />A26rebelohttps://www.blogger.com/profile/14607610126700328810noreply@blogger.com