Foram eles os dois
grandes responsáveis pelo surgimento do chamado “Cinema Novo” português, no
início dos anos sessenta.
Depois
de uma década muito dura, a de cinquenta, em que o que foi feito no cinema português
foi, de um modo geral, razoavelmente mau, e em que o talento genuíno de alguns,
como Manuel de Oliveira e Manuel Guimarães, foi amordaçado, impedido,
condicionado ou esquartejado, os anos sessenta tinham de ser diferenttes
(aliás, à semelhança do que aconteceu na maior parte não só da Europa mas do
mundo).
Paulo
Rocha com “Os Verdes Anos”, de 1963, e Fernando Lopes com “Belamino”, de 1964,
prosseguiram no caminho que em 1961 começara a ser rasgado por José Ernesto de
Sousa com o seu “Dom Roberto”. Outros os acompanharam, como António de Macedo e
Artur Ramos, mas foram de facto o Paulo e o Fernando que impuseram uma nova
dignidade artística e estética no cinema português de então (afinal na
continuidade daquilo que tinha sido o
combate de Manuel de Oliveira e Manuel Guimarães na década anterior).
Para
isso, contaram com um produtor, António da Cunha Telles, que veio a ser
figura-chave desse “cinema novo” português, na sua fase inicial, pelos filmes
que permitiu que fossem feitos.
Talvez
que hoje em dia, quando novos valores despontaram já para o cinema português em
décadas sucessivas e os novos espectadores adquiriram hábitos diferentes de uma
relação diferente com o cinema, não se possa fazer muito bem ideia do que
representou, na primeira metade dos anos sessenta, dois realizadores que tinham
estado nos cineclubes, que tinham feito parte importante da sua formação no
estrangeiro (Paulo Rocha em França, no IDHEC, onde também estivera Cunha Telles,
Fernando Lopes em Inglaterra, na London Film School), conseguirem
fazer cada um o seu primeiro filme de longa-metragem.
E
tão diferentes que eles eram um do outro, como ainda são actualmente.
A
narrativa intimista com personagens humildes no tom luminoso mas baço de Lisboa
que se desprendia do preto e branco de “Os Verdes Anos”, a personagem lisboeta e
popular filmada entre o documentário e a reportagem de “Belarmino” davam o tom
para todas as diferenças mas também para todas as afinidades. A sombra que caía
sobre a luminosidade das Avenidas Novas, a luminosidade e a garridice da parte
mais antiga e típica da cidade em contraste com os modos e meios de vida dos
seus habitantes, na sua variedade como que permitiam perceber semelhanças e
diferenças, pressentir sensibilidades vincadamente distintas, já então
presentes. Os finais dos dois filmes, trágico um não mais do que o outro, eram
afirmações de não cumplicidade, de inconformismo, como o eram também a ausência
de saídas em universos fechados ou o lançamento de novas figuras físicas,
actores e personagens no primeiro caso, personagem-actor no segundo.
Para
além disso, desse novo espírito trazido ao cinema português e de uma comum
preocupação realista, embora por vias estéticas diferentes, o Paulo e o Fernado
eram homens de formações cinematográficas distintas, o que continuou a ser
evidente nas subsequentes obras de cada um deles. Mas não foi por acaso que os seus
filmes inaugurais surgiram.
Recorde-se
a importância dos cineclubes na formação de novas gerações para o cinema português, capazes de
o fazer e de o apreciar, cineclubes sobre os quais se abatera a repressão do
regime em 1958, o ano das eleições presidenciais a que, pela Oposição,
concorreu Humberto Delgado. Recorde-se que em 1957 começaram as emissões
regulares da RTP, onde, como muitos outros, Fernando Lopes começou por
trabalhar; que em finais dos anos cinquenta se verifica um desabrochar do
cinema amador, em que são importantes diversos nomes, entre os quais António
Campos; que pela viragem da década surge uma nova crítica de cinema, culta e
descomprometida com o regime. Recorde-se que em 1961 começa a primeira das
guerras coloniais em que
Portugal se envolve, em Angola; que no mesmo ano se dá a
ocupação de Goa, Damão e Diu pela União Indiana; que em 1962 se verifica a
primeira grande greve académica. Acontecimentos que, todos eles, cada um à sua
maneira, contribuíram para sacudir a consciência cívica do país e, juntamente
com outros, nomeadamente a abertura ao exterior (influência estética – no
início dos anos sessenta, Paulo Rocha trabalhou com Jean Renoir e José Fonseca e
Costa com Michelangelo Antonioni) e uma nova consciência do interior (permeabilidade a uma
sociedade fechada, que atabafava – Rocha e Reis colaboraram também com Oliveira em “Acto
da Primavera”, de 1963, António Reis com Paulo Rocha em “Mudar de Vida”, de 1966, António Campos
e outros, no cinema amador, ocuparam-se da realidade portuguesa), levaram a que
um novo cinema, com uma nova consciência estética mas também política, se impusesse como necessário.
Não
quero com isto dizer que as primeiras longas-metragens de Paulo Rocha e
Fernando Lopes fossem filmes políticos, nem quero erigi-los, aos filmes, ou aos
seus realizadores, em bandeiras contra o sistema de então. Quero apenas afirmar
que eles foram elementos de não-conformismo, importantes no contexto social,
político, cultural e cinematográfico em que surgiram.
Aliás,
ambos os filmes foram, na época, vivamente discutidos e não houve então, como
não haverá hoje (e ainda bem) unanimidade de opiniões: que não eram
suficientemente realistas…, que não eram suficientemente narrativos… (como se
pode ver, há discussões que se repetem no cinema português).
Mas
entre um passado em que tinham brilhado nomes como Leitão de Barros, Manuel de
Oliveira, Brum do Canto, Chianca de Garcia, António Lopes Ribeiro e seu irmão,
Francisco Ribeiro (Ribeirinho), Arthur Duarte e Manuel Guimaerães (este sem
que, porém, o tivessem deixado brilhar plenamente, tal como aconteceu com
Oliveira) e um futuro que antecipam, em que surgem os nomes hoje mais
generalizadamente associados ao “cinema novo” português, como António-Pedro Vasconcelos,
José Fonseca e Costa, João César Monteiro, Alberto Seixas Santos, o próprio
Cunha Telles enquanto realizador, António Reis, são efectivamente Paulo Rocha e
Fernando Lopes que assinalam, nas suas primeiras longas-metragens, a viragem
mais importante que o cinema português conheceu até hoje, a que só é comparável
a ocorrida no final dos anos vinte, a anteceder a transição do mudo para o
sonoro em Portugal e durante ela.
O
problema não está em que tenham sido eles. Problema poderia ter sido não terem,
eventualmente, sido eles porque então poderia ter-se verificado mais um
impasse, com um verdadeiro novo cinema, consciente de si e dos seus valores
artísticos e estéticos, adiado de novo. Quando surgisse, e acabaria por surgir,
seria diferente. Com eles não, o cinema em Portugal tinha mesmo que renascer,
ser reinventado a partir do que começaram por fazer.
É
certo que, com o esgotamento financeiro da “Produções Cunha Telles”, em 1967,
foi preciso passar pela “Semana de Estudos sobre o Novo Cinema Português”
promovida pelo Cineclube do Porto, pelo documento “O Ofício do Cinema em
Portugal”, pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela criação do Centro Português
de Cinema para que o “cinema novo” português pudesse partir para um segundo
fôlego. Mas a semente de um novo cinema estava lançada já, pelo Paulo e pelo
Fernando, o que, no fim de contas, tendo sido os filmes deles o que foram (e
Paulo Rocha filmara ainda “Mudar de Vida”, enquanto Fernando Lopes
prosseguira na televisão e no documentário), veio facilitar as coisas para esse novo arranque.
Como
é natural, tanto um como o outro continuaram depois, e não sem dificuldades,
com filmes notáveis. Pessoalmente considero mesmo “Uma Abelha na Chuva”, de
Fernando Lopes (1972), baseado no romance homónimo de Carlos de Oliveira, o grande
filme do “cinema novo” português no seu todo, e “A Ilha dos Amores”, de
Paulo Rocha (1982), baseado na vida e na época de Wenceslau de Morais, um dos maiores
filmes modernos do cinema mundial. Mas isso não será relevante, na medida em
que só a mim compromete, ao pensá-lo e ao escrevê-lo.
O
que importa é que se perceba que depois dos filmes de estreia do Paulo e do
Fernando nada podia permanecer como fora no cinema português, apesar do regime,
apesar da censura.
Sem
embargo das divergências que possam exisir, e são salutares, quanto à
evolução de cada um deles em filmes subsequentes, até aos seus trabalhos mais
recentes, são eles os verdadeiros cineastas-charneira do cinema português dos
últimos 35 anos. Com a particularidade de ter começado verdadeiramente com eles, e com os filmes de Manuel de
Oliveira da mesma época, um renascimento do cinema português, muitas vezes
contra tudo e contra quase todos, que mesmo com muitos percalços conduziu ao
prestígio internacional de que ele ainda hoje goza.
Porque
com isto quero dizer que, no fundo, todos os que chegaram ao cinema português
depois deles receberam o benefício dos caminhos que eles desbravaram e,
consequentemente, também a influência de ambos, quero aqui deixar esta palavra
singela de homenagem e de gratidão ao Paulo Rocha e ao Fernando Lopes, assim
como a todos os que os acompanharam desde o início, entre outros Luc Mirot,
Nuno de Bragança, Carlos Paredes, Pedro Tamen, Isabel Ruth e Rui Gomes, ao
primeiro, Augusto Cabrita, Baptista-Bastos, Manuel Jorge Veloso, Belarmino
Fragoso e a sua família, ao segundo. Sem eles o cinema português não poderia
ter sido o que foi e é. Depois deles, todos, quer o queiram quer não, de ambos
são devedores. Bom era que mais vezes todos os que fazem do cinema ofício entre
nós pensassem nisso, tivessem presentes esses dois destinos maiores que foram
também exemplos singulares de uma atitude estética perante o cinema e perante a
vida.
(Publicado originalmente sob o título “Dois
destinos maiores do cinema português” no nº 26, de Novembro de 1996, da revista
“Cinema”, da Federação Portuguesa de Cineclubes, agora integralmente revisto e corrigido.)