“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Os melhores do ano

       O ano de 2012 foi devastador para o cinema português, com a morte de Fernando Lopes (1935-2012) e Paulo Rocha (1935-2012), os dois homens decisivos do novo cinema dos anos 60/70 e dois dos mais importantes e mais influentes cineastas portugueses de sempre. Com o seu desaparecimento o cinema português vê-se privado de dois daqueles que, com alguns mais, foram capazes de dar um novo nascimento a uma cinematografia decrépita, um novo nascimento como cinema moderno, e de dar-lhe bases sólidas para o futuro (ver "Sob o mesmo signo", 12 de Fevereiro de 2012, "Primeiro entre iguais", 24 de Março de 2012, e "Dois cineastas maiores", 31 de Dezembro de 2012). O ano de 2012, em que morreu também um cineasta francês muito importante, Chris Marker (1921-2012) - ver "Poética de Chris Marker", 2 de Agosto de 2012 -, foi um ano fatal para o cinema português, que no entanto soube e saberá prestar a Fernando Lopes e a Paulo Rocha o preito devido. Honra e memória lhes sejam, pois, devidas.
      Este ano foi assinalado, nos filmes estreados em Portugal, pelo regresso do preto e branco em alguns dos melhores filmes. Esse facto foi sensível logo no filme vencedor dos Oscars principais, melhor filme, melhor realizador e melhor actor, "O Artista"/"The Artist", do francês Michel Hazanavicius (2011), que por ter corrido o risco de evocar uma época, a do fim do cinema mudo e do início do sonoro, a preto e branco e como filme mudo, foi uma escolha bem vista por parte da Academy of Motion Picture Arts and Sciences, que assim premiou a originalidade e homenageou o próprio cinema. O outro filme vencedor dos Oscars, "A Invenção de Hugo"/"Hugo", de Martin Scorsese (2011), ocupa-se também dos inícios do cinema, em 3D e numa época de mudança tecnológica que poderá justificar a preferência da Academia por filmes que tratam do próprio cinema, do seu início e das suas transformações técnicas mais importantes.
                     Brighter Summer                  
        O ano foi marcado por muitos filmes, de diferentes proveniências, para todos os gostos e de qualidade diversa. Escolha por escolha, cada um faz a sua em função do que viu. Para 2012, a minha escolha dos 10 melhores filmes é esta:
1º. A Brighter Summer Day ("Gu ling jie shao nian sha ren shi jian"), de Edward Yang (1991);
2º. O Cavalo de Turim (”A Torinói ló”), de Béla Tarr (2011);
3º. Holy Motors, de Leos Carax (2012);
4º. Cosmopolis, de David Cronenberg (2012);
5º. Le Havre, de Aki Kaurismäki (2011);
6º. Era uma vez na Anatólia ("Bir zamanlar Anadolu’da"), de Nuri Bilge Ceylan (2011);
7º. 4:44 Último Dia na Terra ("4:44 Last Day on Earth"), de Abel Ferrara (2011);
8º. Tabu, de Miguel Gomes (2012);
9º. O Gebo e a Sombra ("Gebo et l'Ombre"), de Manoel de Oliveira (2012);
10º. Amor ("Amour"), de Michael Haneke (2012).
        Sobre cada um destes filmes, o primeiro dos quais inédito comercialmente em Portugal pelo menos na sua versão original, integral, escrevi aqui depois de, no início de Abril de 2012, ter dado por concluída a publicação neste blog dos meus inéditos com data. Perante o que vi, e não vi tudo, escolha por escolha esta é a minha. Dela constam dois filmes a preto e branco que considero superiores ao vencedor dos principais Óscars, que, no entanto, para muitos, por o ser, será naturalmente considerado o melhor filme do ano. Agora façam as vossas escolhas.   
        Feliz Ano Novo.

O melhor de sempre

     A selecção dos melhores filmes de sempre promovida pela revista inglesa Sight & Sound foi, pela primeira vez, encabeçada por "A Mulher Que Viveu Duas Vezes"/"Vertigo", de Alfred Hitchcock (1958) - ver Sight & Sound de Setembro de 2012 (vol. 22, nº 9). Estas escolhas são importantes, na medida em que quem foi convidado a participar nesta votação conhece, ou tem a obrigação de conhecer extensivamente a história do cinema, e nestas circunstâncias, como é natural, cada um escolhe mesmo os filmes de que gosta mais. E a vitória do filme de Hitchcock foi por grande margem, e portanto inequívoca.
     Devo dizer que este resultado me satisfaz muito, pois considero o cineasta um dos melhores de toda a história do cinema e o eleito o seu melhor filme (ver o meu "O Cinema de Alfred Hitchcock", Porto, Afrontamento, 1985). Porquê? Porque é um filme sobre a encenação, sobre o poder da encenação e a sua dupla execução, primeiro para o protagonista, depois feita por ele. Trata-se no fundo de um filme sobre o próprio cinema, o seu enigma e o seu poder de engano e sedução, e sobre o estabelecimento de uma crença. "Vertigo" é um filme sobre o espectador na primeira parte, como "A Janela Indiscreta"/"Rear Window" (1954) já o era, e um filme sobre o realizador e a realização como encenação na segunda. Mas sendo um filme sobre o cinema é também um filme sobre o conhecimento e os seus limites, sobre o ser humano e as suas armadilhas, sobre a paixão e os seus mecanismos, o que tudo junto o torna um filme perfeito, mais que perfeito: o melhor de sempre - melhor do que ele não é possível.
                     File:Vertigo 1958 trailer embrace.jpg
      Mas além destas características gerais, aquela é a quinta-essência de Hitchcock, o filme em que ele, como reconhece Gilles Deleuze, cumpre superiormente a imagem mental ou imagem-relação ao incluir o espectador no filme e ao fazer do protagonista espectador, e, desse modo, precipita a crise da imagem-acção e põe em causa a própria Imagem-Movimento. Contudo, é preciso perceber que onde aqui Hitchcock aparentemente se contraria é num cepticismo, num desespero fundamental, de que a sua obra anterior não faria suspeitar, mas que vai ter continuação nas obras-primas dos anos 60, nomeadamente em "Os Pássaros"/"The Birds" (1963), ainda melhor porque uma súmula, mais abstracto, enigmático e desesperado.
      As restantes escolhas não me surpreendem, nem devem surpreender ninguém que conheça razoavelmente o história do cinema. Nem os melhores 10, nem os melhores 100 filmes, nem os 25 melhores realizadores. Parecem-me escolhas razoáveis dentro de um panorama muito vasto e diversificado, perante o qual a escolha dos 10 melhores filmes esbarra sempre com a ideia estarrecedora de tudo aquilo que, por causa dela, dela terá de ficar excluído.
                    
       Partilhei aqui uma escolha pessoal feita para o centenário do cinema (ver "Aos meus amores", 11 de Julho de 2012) e quero, por isso, deixar aqui, neste ano do triunfo de um filme indiscutível, a minha lista actual dos 10 melhores filmes de sempre:
1º. A Desaparecida ("The Searchers"), de John Ford (1956);
2º. A Regra do Jogo ("La Règle du Jeu"), de Jean Renoir (1939);
3º. O Mundo a seus pés ("Citizen Kane"), de Orson Welles" (1941);
4º. A Mulher Que Viveu Duas Vezes ("Vertigo"), de Alfred Hitchcock (1958);
5º. A Aventura ("L'avventura"), de Michelangelo Antonioni (1960);
6º. A Máscara ("Persona"), de Ingmar Bergman" (1966);
7º. A Brighter Summer Day ("Gu ling jie shao nian sha ren shi jian"), de Edward Yang (1991);
8º. Aves de Rapina ("Greed"), de Eric von Stroheim (1923-1925);
9º. O Homem da Cãmara de Filmar ("Chelovek s kinoapparatom"), de Dziga Verov (1929);
10º. Metropolis, de Fritz Lang (1927).
        Os filmes de Edward Yang e Fritz Lang entram aqui por mérito próprio, nas suas versões originais agora recuperadas e restauradas, e também como chamada de atenção para esta questão da versão original do realizador, que continuo a considerar fundamental no cinema. O filme do segundo sinaliza também que não considero o cineasta inferior a qualquer um dos outros mencionados. E, mesmo assim, aqui sou eu que fico estarrecido com o que deixo ficar de fora.

Biblio portuguesa

           Quem escreveu sobre a dificuldade de publicação de autores portugueses sobre cinema (ver "Biblio de cinema", 28 de Outubro de 2012) está obviamente obrigado a regressar ao assunto do ponto de vista das principais obras nessas circunstâncias publicadas no ano que agora finda. E isto pela simples e elementar razão de que foram publicados durante 2012 livros muito importantes sobre cinema de autores portugueses, que vêm demonstrar que a escrita sobre este assunto prossegue, com referências bibliográficas fundamentais sobre o próprio cinema português, como é natural.
          Começo pelo Festival Curtas Vila do Conde que, no seu vigésimo aniversário, fez sair um volume, "Puro/Pure Cinema: Curtas Vila do Conde 20 Anos Depois/20 Years After" (coordenação de Mário Micaelo e Daniel Ribas), em que reúne uma série de entrevistas com alguns dos mais importantes cineastas que ao longo destes 20 anos por ali passaram. Trata-se de um livro tipo album muito importante, que demonstra o nível desta mostra internacional de cinema e a consciência de si própria que ela adquiriu. Complementarmente, e a partir dos 10 anos da Agência da Curta Metragem, criada pelo mesmo Festival e com uma actividade muito meritória na promoção e divulgação da curta-metragem portuguesa, com data de 2010 saiu um outro volume, "Agência - Uma Década em Curtas" (coordenação de Daniel Ribas e Miguel Dias), que reúne textos e entrevistas/conversas com realizadores portugueses e é também do maior interesse. Trata-se de uma manifestação cinematográfica do maior relevo e de repercussão internacional inquestionável, que tem dado um forte contributo para o aparecimento e lançamento de novos cineastas portugueses e nestes dois volumes abre para o exterior uma parte muito significativa do valioso trabalho até agora desenvolvido.
                     http://multimedia.fnac.pt/multimedia/PT/images_produits/PT/ZoomPE/7/4/4/9789729857447.jpg?201212042005
          No prosseguimento do seu trabalho de divulgação do cinema português, e em consonância com a retrospectiva que dedicou ao cineasta, a Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema publicou um catálogo sobre António de Macedo, um dos principais nomes do novo cinema português dos anos 60/70: "O Cinema de António de Macedo", com coordenação de Manuel Mozos. Trata-se de uma publicação muito importante sobre um cineasta e uma época do cinema português que não devem cair no esquecimento. Com coordenação Francesco Giarrusso, um italiano a trabalhar em Portugal, foi também publicado o catálogo "Ermanno Olmi. Uma excêntrica normalidade", por ocasião da retrospectiva que dedicaram a este importante nome do cinema novo italiano a Guimarães 2012 Capital Europeia da Cultura e a Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema.
        Jorge Leitão Ramos fez sair na Caminho o terceiro volume, "Dicionário do Cinema Português 1895-1961", aquele que estava em falta de um ambicioso projecto de cobrir toda a história do cinema português neste formato de dicionário. Ocupando-se principalmente das "longa-metragens profissionais de ficção", mas também "de algumas curtas e médias-metragens de ficção", de "documentários de vária duração" e das figuras mais importantes do cinema português do período em causa, este terceiro volume, que é cronologicamente o primeiro, vem confirmar a obra no seu todo como incontornável e de referência sobre uma cinematografia como tal mal conhecida dos próprios portugueses. O pessoal olhar crítico, exigente como lhe compete, do autor enriquece um projecto que adquiriu uma dimensão monumental e assim se dá por cumprido no essencial de maneira muito satisfatória - embora se fique agora à espera de um novo volume, o quarto. Quem quiser estudar com seriedade o cinema português terá que, necessariamente, passar por aqui - os anteriores volumes são "Dicionário do Cinema Português 1962-1988" (Lisboa, Caminho, 1989), e "Dicionário do Cinema Português 1989-2003" (Lisboa, Caminho, 2005).
                     http://multimedia.fnac.pt/multimedia/PT/images_produits/PT/ZoomPE/1/2/0/9789722126021.jpg?201211082006
           À margem do cinema, mas estabelecendo relações selectivas com ele, destaco "Entre o Céu e a Terra", do escultor Rui Chafes (Lisboa, Documenta) que, depois de na primeira parte descrever todo um percurso pessoal sobre a história da escultura, na segunda parte, redigida no modo aforístico de Novalis, que traduziu para português ("Fragmentos de Novalis", com selecção, tradução e desenhos de Rui Chafes, Lisboa, Assírio & Alvim, 1992), desenvolve um pensamento pessoal sobre a arte e o artista com referências dispersas a cineastas como Jean-Luc Godard, Andrei Tarkovski, Hans-Jürgen Syberberg,  Pier Paolo Pasolini, Jacques Tati, Pedro Costa e Robert Bresson, entre diversos outros nomes maiores da pintura, da música e da literatura. O simples facto de colocar os nomes dos primeiros ao mesmo nível destes, o que é de há muito uma evidência embora nem todos a partilhem, dá a medida da importância que para o autor muito justamente o cinema reveste na elaboração de uma reflexão pessoal, de artista, muito interessante. Retenho aqui: "21. Existe uma alma em tudo o que é bem feito. O que é mal feito é rombo, baço triste. Tem de haver uma dignidade dos materiais assim como há uma dignidade das acções. (...)" (pág. 50).
         Escrito para o centenário do cinema, só agora (postumamente) foi editado "Aniki-Bóbó" de Manuel António Pina (1943-2012) - Lisboa, Assírio & Alvim -, um livro em que o autor estuda exaustivamente a primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira, rodada no Porto. Um estudo muito bem informado e que segue a via que penso mais justa de leitura do filme, que descreve, comenta e divulga de forma erudita e exemplar, contextualizando o cineasta e a obra, da autoria de um escritor português muito importante, Prémio Camões 2011, para o qual o cinema também não foi indiferente. Enriquecido por uma filmografia completa, este é, também ele, um livro de referência para o futuro.
                    
              Por último, e numa área contígua e imediatamente anterior ao cinema, a fotografia, quero salientar "A Última Imagem (fotografia de uma ficção)", de Margarida Medeiros, um estudo muito interessante e muito bem documentado de "recepção da fotografia, ou da sua cultura, para utilizar a expressão de Pedro Miguel Frade", nas palavras da autora, que estabelece referências sólidas na história e na mitologia popular e ficcional de um processo técnico que, como o cinema, se veio a transformar numa arte (Lisboa, Documenta).
            Como se vê, e mesmo deixando de fora, pelas suas características próprias, os trabalhos académicos, em 2012 viram a luz do dia obras muito importantes sobre o cinema e áreas afins, todas elas de autores portugueses, o que cumpre saudar e permite situar melhor o que se disse antes. Num mercado editorial reduzido, como é o do cinema em Portugal, este é um panorama muito bom e estimulante, nomeadamente sobre o cinema português, que permite compreender melhor o lugar, de crescente importância, que o cinema ocupa na cultura portuguesa.

Dois cineastas maiores

    
             Foram eles os dois grandes responsáveis pelo surgimento do chamado “Cinema Novo” português, no início dos anos sessenta.
         Depois de uma década muito dura, a de cinquenta, em que o que foi feito no cinema português foi, de um modo geral, razoavelmente mau, e em que o talento genuíno de alguns, como Manuel de Oliveira e Manuel Guimarães, foi amordaçado, impedido, condicionado ou esquartejado, os anos sessenta tinham de ser diferenttes (aliás, à semelhança do que aconteceu na maior parte não só da Europa mas do mundo).
           Paulo Rocha com “Os Verdes Anos”, de 1963, e Fernando Lopes com “Belamino”, de 1964, prosseguiram no caminho que em 1961 começara a ser rasgado por José Ernesto de Sousa com o seu “Dom Roberto”. Outros os acompanharam, como António de Macedo e Artur Ramos, mas foram de facto o Paulo e o Fernando que impuseram uma nova dignidade artística e estética no cinema português de então (afinal na continuidade daquilo que tinha sido o combate de Manuel de Oliveira e Manuel Guimarães na década anterior).  
                                    Original

           Para isso, contaram com um produtor, António da Cunha Telles, que veio a ser figura-chave desse “cinema novo” português, na sua fase inicial, pelos filmes que permitiu que fossem feitos.
           Talvez que hoje em dia, quando novos valores despontaram já para o cinema português em décadas sucessivas e os novos espectadores adquiriram hábitos diferentes de uma relação diferente com o cinema, não se possa fazer muito bem ideia do que representou, na primeira metade dos anos sessenta, dois realizadores que tinham estado nos cineclubes, que tinham feito parte importante da sua formação no estrangeiro (Paulo Rocha em França, no IDHEC, onde também estivera Cunha Telles, Fernando Lopes em Inglaterra, na London Film School), conseguirem fazer cada um o seu primeiro filme de longa-metragem.
            E tão diferentes que eles eram um do outro, como ainda são actualmente. 
                     Paulo Rocha ou a arte de ser português

            A narrativa intimista com personagens humildes no tom luminoso mas baço de Lisboa que se desprendia do preto e branco de “Os Verdes Anos”, a personagem lisboeta e popular filmada entre o documentário e a reportagem de “Belarmino” davam o tom para todas as diferenças mas também para todas as afinidades. A sombra que caía sobre a luminosidade das Avenidas Novas, a luminosidade e a garridice da parte mais antiga e típica da cidade em contraste com os modos e meios de vida dos seus habitantes, na sua variedade como que permitiam perceber semelhanças e diferenças, pressentir sensibilidades vincadamente distintas, já então presentes. Os finais dos dois filmes, trágico um não mais do que o outro, eram afirmações de não cumplicidade, de inconformismo, como o eram também a ausência de saídas em universos fechados ou o lançamento de novas figuras físicas, actores e personagens no primeiro caso, personagem-actor no segundo.
        Para além disso, desse novo espírito trazido ao cinema português e de uma comum preocupação realista, embora por vias estéticas diferentes, o Paulo e o Fernado eram homens de formações cinematográficas distintas, o que continuou a ser evidente nas subsequentes obras de cada um deles. Mas não foi por acaso que os seus filmes inaugurais surgiram.
           Recorde-se a importância dos cineclubes na formação de novas gerações para o cinema português, capazes de o fazer e de o apreciar, cineclubes sobre os quais se abatera a repressão do regime em 1958, o ano das eleições presidenciais a que, pela Oposição, concorreu Humberto Delgado. Recorde-se que em 1957 começaram as emissões regulares da RTP, onde, como muitos outros, Fernando Lopes começou por trabalhar; que em finais dos anos cinquenta se verifica um desabrochar do cinema amador, em que são importantes diversos nomes, entre os quais António Campos; que pela viragem da década surge uma nova crítica de cinema, culta e descomprometida com o regime. Recorde-se que em 1961 começa a primeira das guerras coloniais em que Portugal se envolve, em Angola; que no mesmo ano se dá a ocupação de Goa, Damão e Diu pela União Indiana; que em 1962 se verifica a primeira grande greve académica. Acontecimentos que, todos eles, cada um à sua maneira, contribuíram para sacudir a consciência cívica do país e, juntamente com outros, nomeadamente a abertura ao exterior (influência estética – no início dos anos sessenta, Paulo Rocha trabalhou com Jean Renoir e José Fonseca e Costa com Michelangelo Antonioni) e uma nova consciência do interior (permeabilidade a uma sociedade fechada, que atabafava – Rocha e Reis colaboraram também com Oliveira em “Acto da Primavera”, de 1963, António Reis com Paulo Rocha em “Mudar de Vida”, de 1966, António Campos e outros, no cinema amador, ocuparam-se da realidade portuguesa), levaram a que um novo cinema, com uma nova consciência estética mas também política, se  impusesse como necessário.
                 

             Não quero com isto dizer que as primeiras longas-metragens de Paulo Rocha e Fernando Lopes fossem filmes políticos, nem quero erigi-los, aos filmes, ou aos seus realizadores, em bandeiras contra o sistema de então. Quero apenas afirmar que eles foram elementos de não-conformismo, importantes no contexto social, político, cultural e cinematográfico em que surgiram.
           Aliás, ambos os filmes foram, na época, vivamente discutidos e não houve então, como não haverá hoje (e ainda bem) unanimidade de opiniões: que não eram suficientemente realistas…, que não eram suficientemente narrativos… (como se pode ver, há discussões que se repetem no cinema português).
             Mas entre um passado em que tinham brilhado nomes como Leitão de Barros, Manuel de Oliveira, Brum do Canto, Chianca de Garcia, António Lopes Ribeiro e seu irmão, Francisco Ribeiro (Ribeirinho), Arthur Duarte e Manuel Guimaerães (este sem que, porém, o tivessem deixado brilhar plenamente, tal como aconteceu com Oliveira) e um futuro que antecipam, em que surgem os nomes hoje mais generalizadamente associados ao “cinema novo” português, como António-Pedro Vasconcelos, José Fonseca e Costa, João César Monteiro, Alberto Seixas Santos, o próprio Cunha Telles enquanto realizador, António Reis, são efectivamente Paulo Rocha e Fernando Lopes que assinalam, nas suas primeiras longas-metragens, a viragem mais importante que o cinema português conheceu até hoje, a que só é comparável a ocorrida no final dos anos vinte, a anteceder a transição do mudo para o sonoro em Portugal e durante ela.
                   Paulo Rocha

            O problema não está em que tenham sido eles. Problema poderia ter sido não terem, eventualmente, sido eles porque então poderia ter-se verificado mais um impasse, com um verdadeiro novo cinema, consciente de si e dos seus valores artísticos e estéticos, adiado de novo. Quando surgisse, e acabaria por surgir, seria diferente. Com eles não, o cinema em Portugal tinha mesmo que renascer, ser reinventado a partir do que começaram por fazer.
             É certo que, com o esgotamento financeiro da “Produções Cunha Telles”, em 1967, foi preciso passar pela “Semana de Estudos sobre o Novo Cinema Português” promovida pelo Cineclube do Porto, pelo documento “O Ofício do Cinema em Portugal”, pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela criação do Centro Português de Cinema para que o “cinema novo” português pudesse partir para um segundo fôlego. Mas a semente de um novo cinema estava lançada já, pelo Paulo e pelo Fernando, o que, no fim de contas, tendo sido os filmes deles o que foram (e Paulo Rocha filmara ainda “Mudar de Vida”, enquanto Fernando Lopes prosseguira na televisão e no documentário), veio facilitar as coisas para esse novo arranque.
                     

            Como é natural, tanto um como o outro continuaram depois, e não sem dificuldades, com filmes notáveis. Pessoalmente considero mesmo “Uma Abelha na Chuva”, de Fernando Lopes (1972), baseado no romance homónimo de Carlos de Oliveira, o grande filme do “cinema novo” português no seu todo, e “A Ilha dos Amores”, de Paulo Rocha (1982), baseado na vida e na época de Wenceslau de Morais, um dos maiores filmes modernos do cinema mundial. Mas isso não será relevante, na medida em que só a mim compromete, ao pensá-lo e ao escrevê-lo.
            O que importa é que se perceba que depois dos filmes de estreia do Paulo e do Fernando nada podia permanecer como fora no cinema português, apesar do regime, apesar da censura.
                    

            Sem embargo das divergências que possam exisir, e são salutares, quanto à evolução de cada um deles em filmes subsequentes, até aos seus trabalhos mais recentes, são eles os verdadeiros cineastas-charneira do cinema português dos últimos 35 anos. Com a particularidade de ter começado verdadeiramente com eles, e com os filmes de Manuel de Oliveira da mesma época, um renascimento do cinema português, muitas vezes contra tudo e contra quase todos, que mesmo com muitos percalços conduziu ao prestígio internacional de que ele ainda hoje goza.
          Porque com isto quero dizer que, no fundo, todos os que chegaram ao cinema português depois deles receberam o benefício dos caminhos que eles desbravaram e, consequentemente, também a influência de ambos, quero aqui deixar esta palavra singela de homenagem e de gratidão ao Paulo Rocha e ao Fernando Lopes, assim como a todos os que os acompanharam desde o início, entre outros Luc Mirot, Nuno de Bragança, Carlos Paredes, Pedro Tamen, Isabel Ruth e Rui Gomes, ao primeiro, Augusto Cabrita, Baptista-Bastos, Manuel Jorge Veloso, Belarmino Fragoso e a sua família, ao segundo. Sem eles o cinema português não poderia ter sido o que foi e é. Depois deles, todos, quer o queiram quer não, de ambos são devedores. Bom era que mais vezes todos os que fazem do cinema ofício entre nós pensassem nisso, tivessem presentes esses dois destinos maiores que foram também exemplos singulares de uma atitude estética perante o cinema e perante a vida.

(Publicado originalmente sob o título “Dois destinos maiores do cinema português” no nº 26, de Novembro de 1996, da revista “Cinema”, da Federação Portuguesa de Cineclubes, agora integralmente revisto e corrigido.)

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O regresso de Carax

       Depois de "Merde", o episódio que dirigiu para "Tóquio!"/"Tokio!" (2008), que dava conta do elevado (e justificado) grau de exasperação do cineasta, o mais recente filme de Leos Carax, "Holy Motors" (2012), surge como uma libertação de energias simultaneamente crítica e redentora. De facto, sem qualquer tipo de facilitismo, nem consigo próprio nem com os espectadores, o cineasta constrói aí um filme superior, à sua medida e à medida do próprio cinema, em que além de realizador é também, como sempre, argumentista.
        Em primeiro lugar, há neste filme um tom rememoratório e nostálgico do próprio cinema, que começa com as imagens recuperadas de séries fotográficas de Étienne Jules Marey, precursor fundamental do cinema com a sua cronofotografia, prossegue na sequência de abertura e vai atravessá-lo todo de citação em referência. O próprio protagonista, M. Oscar, alás M. Merde, interpretado de novo e com panache por Denis Lavant, nas diversas peles que veste para os seus sucessivos encontros, tem momentos em que remete ora para o fantástico ora para o melodrama, ora para um jeito monteiriano ora para um lado tatiesco, ora para o cinema mudo ("Fantômas", de Louis Feuillade, 1913-1914) ora para o cinema moderno (Georges Franju via Edith Scob, em "Les Yeux Sans Visage", 1959, - um cineasta que partiu também de um serial do mudo para o seu "Judex, o Vingador"/"Judex", 1963), o que torna o filme numa espécie de cavalgada selectiva e fascinante pela história do cinema.
                    
        Mas, em segundo lugar, deve dizer-se que de novo, como em "Pola X" (ver "Por Carax: as versões", 18 de Fevereiro de 2012), mas de forma mais determinada, Leos Carax investe este filme como se ele fosse não apenas mais um mas um novo último filme, o que na circunstância passa por fazer o luto do próprio cinema e do seu tempo, que no entanto celebra, e de que maneira. Compreende-se a intenção porque se conhecem os motivos - marcado pelo insucesso comercial, o cineasta encontra grandes dificuldades para cada novo filme -, mas mesmo assim aprecia-se sobretudo a beleza e o brio do filme, soberbo em cada encontro de M. Oscar e em cada evocação que ele convoca, de forma precisa e deliberada. Carax não é, de maneira nenhuma, um cineasta comercial, embora se tenha transformado num cineasta de culto que preserva o seu próprio mito e mistério, que encena enquanto criador.
        "Holy Motors" é um grande filme, construído sobre a história do cinema e sobre o presente deste, o que lhe confere a distância justa, mas que se encara e estabelece como grande filme moderno celebratório e comemorativo de algo que excede em muito a ideia mais evidente da "morte do cinema" ou do fim de um certo mundo em que ele foi possível. E nesse tom celebratório e comemorativo quero ver mais o amor à arte do que a simples beleza do gesto, para que remete explicitamente uma réplica, que se quer reveladora, de M. Oscar no diálogo com Michel Piccoli. É que neste filme o cinema e o cineasta apresentam-se vivos e de boa saúde, e mesmo a hipótese colocada da ausência de espectadores pode não passar de uma boutade, embora eventualmente premonitória. 
                    
              M. Oscar, aliás M. Merde, que surge várias vezes, em diferentes personagens, como um homem iluminado e que as mulheres - nomeadamente Eva Mendes como Kay M e Kylie Minogue como Eva Grace/Jean em duplicação reminiscente de Hitchcock - iluminam, funciona lapidarmente e subliminarmente como a personagem masculina actual, reduzida a si própria nos seus desdobramentos e assim evanescente - e Denis Lavant dá aqui conta dos seus múltiplos talentos de actor
         Por mim, considero que o saber e o amor do cinema que Leos Carax aqui volta a demonstrar de maneira exuberante não devem ficar sem consequências, e consequências nos termos dele, que são os do cinema que ainda hoje interessa. Mesmo no seu tom de revisitação e memória do próprio cinema, e apesar do cepticismo final das máquinas mecânicas sobre o seu próprio futuro, "Holy Motors" é sem sombra de dúvida um grande filme que não merece, em caso algum, não ter descendência.

O método de Haneke

           "Amor"/"Amour", o mais recente filme de Michael Haneke (2012), será um filme difícil mas é incontroversamente um excelente filme, em que o cineasta prossegue de forma coerente e consistente um percurso pessoal e intransigente. O filme pode ser acusado, como filmes anteriores do cineasta, de académico, não audacioso, do que discordo, mas mesmo que tal fosse verdade teria de ser compreendido no contexto próprio da obra do autor, em que o que de dramaticamente relevante acontece em cada filme deve surgir intacto no seu momento próprio num contexto cinematográfico preciso, que o torne inesperado e ultrajante. Assim tem sido nos filmes anteriores do cineasta e assim volta a ser, de modo superior, neste seu mais recente trabalho.
                   Amour film still
            No seu ambiente doméstico, familiar, um casal de velhos professores de música, Georges e Anne, debate-se com o seu próprio isolamento - apenas quebrado por esporádicas visitas, nomeadamente da filha, Eva/Isabelle Huppert - e envelhecimento, e essa situação assume uma forma quase banal, quotidiana, nas interpretações superiores e plenas de humildade e galhardia de Emmanuelle Riva e Jean-Louis Trintignant, que trazem para o interior do filme toda a história e a memória do cinema da segunda metade do século XX. Depois de um primeiro momento de ausência, ela tem um ataque cerebral que a paralisa parcialmente, o que origina a sua degradação progressiva, e ele vai ter de tomar conta dela em tais circunstãncias. O que aqui surge como particularmente revelador é o ambiente de memórias, de música e de pintura, o ambiente familiar e artístico em que o filme decorre e em que o seu final, no seu dramatismo próprio, vai eclodir.
       Deste modo, "Amor" surge como um típico filme de Michael Haneke, que se joga em fronteiras de indecisão, neste caso entre a vida e a morte mas também entre a realidade e a fantasia, o que lhe imprime um tom muito próprio e uma complexidade inequívoca, que tornam irrelevantes as suas hipotéticas limitações formais e o transformam numa obra exemplar de rigor, inteligência e exigência. Como nos outros filmes do cineasta, a violência, o horror, declara-se em pleno banal quotidiano, que vem clarificar e resolver - ou entenebrecer e complexificar.   
                             
            Haneke é um mestre do cinema contemporâneo que não tem que andar a correr atrás da última moda formal para impôr os seus filmes, já que são estes que se impõem por si próprios, tal como são e mesmo se nem toda a gente gosta. Sem música, a não ser a que, diegética, é tocada no seu decurso (Beethoven, Schubert), este é um filme de artista que nem sequer pode ser acusado de novo academismo já que permanece intransigentemente fiel a si próprio. Se, como recorda em contexto Herberto Helder, "«Apenas a arte é susceptível de nos salvar»", neste caso a arte, além de ser a do próprio realizador, como habitualmente nos seus filmes também argumentista e que aqui faz pensar em Ingmar Bergman, é também, como nos seus outros filmes mas mais do que nunca, a grande arte dos seus actores. E "Amor" rima perfeitamente na obra deste cineasta austríaco com "A Pianista"/"La pianiste" (2001).

Poética de Edward Yang

      Graças ao ciclo "Edward Yang: Histórias de Taipei" que, comissariado pelo incansável Augusto M. Seabra, decorreu na Culturgest, em Lisboa, de 13 a 16 de Dezembro, foi-nos possível estabelecer contacto com a filmografia quase completa de um dos mais importantes e míticos cineastas do último quartel do século XX e perceber que ele era, efectivamente, o "missing link" que até agora nos escapara do cinema.
         Edward Yang (1947-2007) foi, com Hou Hsiao-Hsien (ver "Tempo de cinema", 20 de Janeiro de 2012) e alguns outros o criador, durante os anos 80 do século passado, de um cinema novo em Taiwan que veio mudar a geografia do cinema e o próprio cinema. Quanto mais o tempo passa melhor se pode entender que ele foi um cineasta decisivo pelos filmes que fez e pelo que compreendeu do cinema como tecnologia e como criação. Não creio que alguém no Ocidente tenha percebido como ele que o cinema é uma mera tecnologia, simples e complexa, que pode ser intransigentemente utilizada de forma criativa por um autor. São a criação e o pensamento dele que, depois de ver os filmes de Edward Yang, aqui me trazem.
                    
         Nunca foi claro, e hoje em dia é-o ainda menos, que o cinema seja um instrumento como outros - a escrita, a música ou a pintura - para a criação pessoal de um autor. Estamos todos cada vez mais invadidos por um pensamento tecnológico e económico do cinema, segundo o qual ele é uma indústria que gera produtos caros que devem ser rentáveis num mercado com múltiplos canais de difusão. Por isso, cada vez menos interessa quem é o autor de um filme, salvo para saber se este vende muito, pouco ou nada, e para isso ele, o autor, conta cada vez menos.
          Ora Edward Yang foi um criador pessoal de filmes, intransigente na sua própria autoria e na sua necessidade. Fez poucos filmes mas os que fez são absolutamente fundamentais numa arte que não se queira alienada em mera indústria ou comércio. Revelado em "Expectation", episódio de "In Our Time" (1982) e "Taipei Story" (1985), o segundo com Hou Hsiao-Hsien como co-argumentista e actor principal, Edward Yang soube captar e transmitir o pulsar de um tempo novo num espaço determinado, com personagens novas, cheias de energia, de contradições e de uma verdade pessoal própria. A partir daí foi trabalhando e aperfeiçoando uma construção fílmica em coralidade, como diz bem Augusto M. Seabra, em "The Terrorizers" (1986) e "A Brighter Summer Day" (1991), duas absolutas obras-primas, em especial o segundo - não conheço "That Day, on the Beach" (1983).
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          Muito longo, "A Brighter Summer Day" tem uma história exemplar. Depois de ter circulado numa versão mais curta, o filme só pôde ser restituído à sua versão original, em que é absolutamente fabuloso, graças aos esforços da World Cinema Foundation, criada por Martin Scorsese (ver "A invenção dos sonhos", 22 de Abril de 2012). Foi a essa versão original que agora nos foi dado assistir e assim aceder a toda a beleza e todo o dramatismo duma construção fílmica coral verdadeiramente superior sobre uma juventude, doze anos depois de transferida com a família da mainland para Taipei. Com a sua referência americana no próprio título (o de um conhecido tema de Elvis Presley) e criado a partir de um fait-divers de 1960, este é o filme das famílias, da escola e sobretudo dos adolescentes, seus gangs e preferências, seus desejos e frustrações, suas vinganças e fracassos. O filme que nunca ninguém fez - salvo Apichatpong Weerasethakul em "Bllissfully Yours" (2002), mas sem a coralidade - sobre uma juventude na qual se rebatem e revêem um tempo e uma sociedade. A noite da vingança, o negrume e a chuva dessa noite, são absolutamente únicos e um momento máximo de toda a história do cinema, o que volta a suceder com o prodigioso final entre Xiao Si'r/Chen Chang e Ming/Lisa Yang: nunca ninguém matou assim no cinema - por amor, como amor. É um final cujo lirismo exacerbado e desesperado lembra "O Lírio Quebrado"/"Broken Blossoms", de David W. Griffith (1919), que contudo supera.
       Mas a construção coral de "A Brighter Summer Day" vem de "The Terrorizers" e vai prosseguir em "A Confucian Confusion" (1994), filme em relação ao qual o cineasta ainda pôde chamar a si a remontagem final de forma a imprimir-lhe uma construção serial e mais abstracta, que lhe reforça a coralidade em cores e cenários (de que também participou) excepcionais. Estes três filmes situam-se no topo da criação cinematográfica do autor, em que "Mahjong" (1996) surge como fruto de um compromisso e por isso como um filme menos perfeito.
                                 
         Além do mais, Edward Yang foi um cineasta espantosamente moderno ao integrar as personagens dos seus filmes nos espaços urbanos da cidade de Taipei, urbe pós-moderna e vertiginosa, trabalhando-as do lado das suas ligações, da sua separação e isolamento no labirinto da cidade tomada, ele também, como personagem. A poética de Edward Yang é, assim, dupla: a poética da uma autoria completa e intransigente, que o levou a intervir sempre no argumento dos seus próprios filmes, sozinho ou como co-argumentista, e a poética da construção fílmica polifónica de uma verdade que só o cinema nos seus filmes consegue construir e captar, mesmo se e quando em alternativas indecidíveis, como em "The Terrorizers" nomeamente acontece.
          Fala-se, fala nomeadamente Augusto M. Seabra, de influências assumidas de Yang: de Michelangelo Antonioni - pela horizontalidade do espaço, pela integração da arquitectura urbana e dos cenários interiores como elementos dramáticos e pela complexa teia de relações entre as personagens nos seus filmes - de Werner Herzog, Alain  Resnais e Stanley Kubrick, que constavam entre as suas preferências cinematográficas. Só quero aqui chamar a atenção para o facto de o próprio cineasta confessar ter visto o fundamental da história do cinema em cassetes vhs e afirmar não temer as novas tecnologias do cinema, das quais dizia, numa demonstração de lucidez e clarividência, que há que " ...utilizá-las com sabedoria e criatividade..." (1).
                    
        O outro link que o comissário deste ciclo estabelece é com o japonês Mikio Naruse, conhecido como "o quarto grande mestre do cinema clássico nipónico" por ter sido o último a ser descoberto no Ocidente, depois de Kenji Mizoguchi, Yasujiro Ozu e Akira Kurosawa, e aí penso também que é "Yi Yi" (1999), o último filme de Edward Yang, que na sua coralidade familiar vai mesmo nesse sentido, além da generosidade que ele atribuía a Naruse e ele próprio usou nos seus filmes. Apaixonado pela manga japonesa, em especial pelos desenhos de Osamu Tezuka, o cineasta, que confessava a sua admiração pelo arquitecto I. M. Pei, por Albert Einstein, Maria Callas e Bob Dylan, preparou desde 2002 um grande projecto de animação digital, "The Wind", que não chegou a poder concretizar.
           Com a morte deste cineasta desapareceu uma figura fundamental do cinema mundial, que há que conhecer por si mesma, pelos seus filmes e pelo próprio cinema, em contexto de pós-modernismo e de capitalismo globalizado, num capitalismo tardio e em sociedades pós-contemporâneas como refere o filósofo norte-americano Fredric Jameson no excelente ensaio que lhe dedicou (2). Um cineasta da invulgar qualidade de Edward Yang não viveu em vão: ele foi um dos maiores visionários do cinema e "A Brighter Summer Day" é o melhor filme do mundo (3). 
                    
           Agora há que perceber que o realizador deve ter a liberdade de fazer o filme que quer e de finalizá-lo como quer, como Edward Yang defendia para si próprio e para os outros e o caso de "A Sede do Mal"/"Touch of Evil", de Orson Welles (1958), agora reeditado em dvd, permite confirmar (ver "Sem noite, sem sono", 17 de Março de 2012, nota 1), com consequências inimagináveis para a história e a teoria do cinema.
         Quando refiro e sublinho a importância da autoria cinematográfica para Edward Yang tenho também, e até especialmente em conta que ela é sempre necessária para se poder continuar a falar, na linha de Jean-Claude Biette, de uma "poética dos autores" no cinema (4).

Nota
(1) Cf. Edward Yang, "Uma nova escrita", Le Monde, 22 de Abril de 1994, publicado em português em anexo ao programa do ciclo "Edward Yang - Histórias de Taipei", que contém ensaios muito completos de Augusto M. Seabra, a que aqui com a devida vénia recorro extensivamente e para os quais remeto.
(2) Cf. Fredric Jameson, "The Geopolitical Aesthetic - Cinema and Space in the World System", Indiana University Press, 1995, Capítulo 2, Remapping Taipei, pág 114 (edição francesa "Fictions Géo-politiques - Cinéma, capitalisme, postmodernité", Capricci, Paris, 2011, capítulo 2, Recartographier Taipei, pág 49). Neste capítulo o autor procede a um extenso, pormenorizado e notável estudo de "The Terrorizers", que o situa no cinema da época, nomeadamente em relação a Hou Hsiao-Hsien e na sua relação com Taipei, e inclui o seu comentário alegórico.
(3) Sobre este cineasta importa também "Le cinéma d'Edward Yang", de Jean-Michel Frodon, Éditions de l'éclat, Paris, 2010. Este autor francês dirigiu também "Hou-Hsiao Hsien", com Prefácio de Olivier Assayas, Cahiers du Cinéma, Paris, 1999 (2005 para a 2ª edição, aumentada).
(4) Cf. Jean-Claude Biette, "Poétique des auteurs", Éditions de l'Étoile, Paris, 1988.