“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Mais 3 rostos

    José Tolentino Mendonça é um dos grandes poetas portugueses da actualidade, com vários livros publicados também em prosa. Conheço melhor a sua obra poética, que aprecio. Publicou agora "A Papoila e o Monge" (Lisboa, Assírio & Alvim, 2013), livro em que dá conta de uma extrema depuração da sua linguagem poética, reduzida à expressão do haiku.
     Esta "redução" significa, de facto, a demonstração de um pleno domínio da linguagem poética e, consequentemente, a passagem para um grau diferente de expressão poética, o que, tratando-se de alguém com muito boas provas dadas em poesia, aqui devo assinalar.    
                   
      Mas simultaneamente o seu nome surge associado ao último livro de fotografia de Duarte Belo, um dos maiores fotógrafo portugueses de exterior, de fotografia documental da actualidade. Trata-se de "Os rostos de Jesus - Uma revelação" (Lisboa, Temas & Debates/Círculo de Leitores, 2013), em que o conhecido fotógrafo se dedica a fotografar exaustivamente as figuras de Cristo abundantemente representadas em esculturas em altos de Cruzeiro ao longo de Portugal, sobretudo no Norte do país e com especial concentração no Alto Minho.
                    Il Vangelo secondo Matteo
      Não surpreende que a este projecto aparentemente insensato (107 fotografias a cores, a diferentes distâncias e com diferentes ângulos) surja associado o nome do autor de "A construção de Jesus" (Lisboa, Assírio & Alvim, 2004), que no estudo "Hipóteses para um rosto" - que replica o de Duarte Belo, "A escultura de uma fotografia", revelador de grande auto-consciência do seu trabalho e do contexto em que ele se insere -, com pertinência e argúcia trata da questão das representações de Jesus Cristo.
       Questão muito interessante também no cinema, sobretudo a partir da reflexão fundamental de André Bazin que inclui o Santo Sudário de Turim no seu fundamental "Ontologia da Imagem Fotográfica"/"Onthologie de l'image photographique" (1945) - uma abordagem a que recentemente noutra perspectiva Georges Didi-Huberman regressou mais desenvolvidamente em "La ressemblance par contact" (Paris, Les Éditions de Minut, 2008) -, a representação de Cristo apresenta um vasto historial em História da Arte, a que as fotografias deste excelente livro, o ensaio de Duarte Belo e o bem informado estudo de Tolentino Mendonça se vêm agora acrescentar.
                               
       Como esta é uma questão ainda hoje muito interessante, que me leva a chamar a atenção também para este segundo livro, permito-me, com a devida vénia, juntar aqui mais três rostos de Cristo no cinema: o de "Acto da Primavera", de Manoel de Oliveira (1963), o de "O Evangelho Segundo São Mateus"/"Il vangilo secondo Matteo", de Pier Paolo Pasolini (1964), e o de "A Última Tentação de Cristo"/"The Last Temptation of Christ", de Martin Scorsese (1988), três grandes filmes de três grandes cineastas. Há outras figurações crísticas no cinema? Evidentemente que sim, mas na sua modernidade para estas três chamo neste momento especial atenção: o popular de Oliveira, o estilizado de Pasolini, o torturado de Scorsese.             
       Por mim, olhem para onde quiserem, mas, mesmo se de passagem, não deixem de olhar também para aqui. E, uma vez que deles falo, quando puderem vejam esses filmes - e também o didáctico "Il Messia", de Roberto Rossellini (1975), hoje em dia muito difícil de encontrar - que "tateiam" mais do que um rosto na mesma perspectiva fragmentária e inominável. A questão da representação/figuração pode, apesar de tudo, surgir de modo diferente no cinema por ele, contrariamente à escultura e à fotografia, ser imagem em movimento, especialmente quando a querela iconoclastas-iconólatras, de que dão conta detalhadamente Martine Joly ("A Imagem e os Signos"/"L'image et les Signes", 2000 - edição portuguesa Edições 70, Lisboa, 2005) e Hans Belting ("A Verdadeira Imagem"/"Das echte Bild. Bildfragen", 2006 - edição portuguesa Dafne Editora, Porto, 2011), nos surge como um desatino de um tempo que hoje temos tanta dificuldade em entender como necessidade de compreender. "Vive como quem constrói uma imagem/uma imagem/que desaparece" (José Tolentino Mendonça).

Déjà-vu

    Era inevitável que Hollywood fizesse um filme sobre a caça e a morte de Osama bin Laden, o tristementre célebre líder da al-Qaeda. Os próprios acontecimentos, desde os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 até esse momento de punição, funcionaram, eles próprios, como um filme, pelo que fazer o filme era trabalhar sobre um déjà-vu em termos mediáticos.
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     Assim, o filme de Kathryn Bigelow "00:30 A Hora Negra"/"Zero Dark Thirty" (2012), embora obrigatório torna-se inteiramente previsível. Filmado por uma cineasta com provas dadas, nomeadamente o galardoado "Estado de Guerra"/"The Hurt Locker" (2008), repete um percurso balizado por acontecimentos que todos conhecemos, recordando e recriando em filme episódios crus do conhecimento público que como tal interessaram e ao cinema interessa reter para a história no "filme oficial".
     A invenção deste filme reside na colocação como protagonista de uma agente dos serviços secretos americanos, Maya, interpretada por uma Jessica Chastain sempre mais do que simplesmente correcta, mas ele fica na história por ter sido um dos últimos filmes em que, já notoriamente muito gordo, participou James Gandolfini (ver "Poética dos Actores", 22 de Junho de 2013), que interpreta o Director da C.I.A. em duas breves aparições. De resto, a competência e superioridade dos S.E.A.L. é demonstrada sem qualquer sombra de dúvida num filme que preenche cabalmente as funções de propaganda que o motivaram.
                      Zero Dark Thirty 011 Zero Dark Thirty Blu Ray Review
      Agora o filme que a realidade faz continua, aí como em muitos outros campos, e estranho muito que onde ele mais incomoda na actualidade, a recessão provocada pela crise resultante do mais recente crash bolsista, ainda não tenha merecido ao cinema americano a atenção que lhe mereceram, nos anos 30 do Século XX, a Grande Depressão e o New Deal. Além disso, partilho as apreensões sobre o não encerramento da prisão de Guantanamo Bay e pelo grave prolongamento de um estado de excepção absolutamente indesejável - só quando ele acabar esta guerra poderá ser dada como ganha.
      Lamentáveis embora as circunstâncias que desde o início o motivaram, com a competência de Kathy Bigelow e de toda a equipa "00:30 A Hora Negra" cumpre com eficácia os objectivos visados. Colocam-se agora, como frequentemente acontece no cinema e o próprio cinema americano parece expressamente procurar, questões relativas à veracidade deste relato fílmico. Mas atenção aos outros pontos em que a realidade preocupantemente faz cinema, faz filme neste momento.

JFK - 50 anos

        Cumpriram-se no passado dia 22 de Novembro 50 anos sobre o assassinato do Presidente americano John Kennedy, episódio trágico de que guardo viva memória emocional coetânea. O seu bárbaro e cobarde assassinato transformou o jovem e carismático Presidente em mártir, forçando a sua substituição pelo seu vice-presidente, Lyndon Johnson, cuja presidência é hoje considerada como especialmente marcante em tempos muito difíceis.
     O aniversário foi condignamente celebrado nos Estados Unidos e a BBC World News transmitiu no passado fim de semana um documentário recente, "The Lost JFK Tapes: The Assassination" (2009), que pela primeira vez recolhe os registos audiovisuais desse dia, até há poucos anos mantidos inacessíveis. Impressionante de rigor, este documentário muito oportuno permite-nos conhecer, por ordem cronológica, todos os acontecimentos relevantes desse fatídico 22 de Novembro de 1963 em Dallas, Texas, através de gravações televisivas e radiofónicas.
                     Image for The Lost JFK Tapes: The Assassination
      Ao assistir a este documentário e recordar a entrada de John Kennedy no campo do mito pela mesma porta pela qual, 100 anos antes, a ele acedera Abraham Lincoln, recordei o filme de Oliver Stone "JFK" (1991), que pretende averiguar da verdade sobre o assassinato do Presidente, ainda hoje com "Wall Street" (1987) o seu melhor filme (a partir do qual o continuo a esperar e só o voltei a encontrar em "World Trade Center", 2006 - mas isto digo eu, que sou muito exigente), e também o que as imagens do assassinato representaram para o imaginário colectivo e o próprio cinema americano (1).
     Com conhecidas ligações ao mundo do cinema (Frank Sinatra e o rat pack, Marilyn Monroe), que contribuíram para lhe moldar a figura pública e o mito, John Fitzgerald Kennedy merece indubitavelmente ser lembrado por todos nós, que merecíamos este excelente documento audiovisual sobre as circunstâncias precisas que rodearam, antecederam e seguiram, o disparo fatal. Aqui deste modo o recordo e lhe presto a minha sentida homenagem.

Notas
(1) Cf. Jean-Baptiste Thoret, "26 secondes: L'Amérique éclaboussée - L'assassinat de JFK et le cinéma américain", Pertuis, Rouge Profond, 2003.

domingo, 24 de novembro de 2013

Cinema capital

      Iniciou-se este fim de semana no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian a importante programação "Harvard na Gulbenkian - Diálogos sobre o cinema português e o cinema do mundo" que, com curadoria de Haden Guest e Joaquim Sapinho, vai apresentar nos próximos meses, para já até Março de 2014 com a secção "Depois de Vanda", um conjunto de obras muito importantes do cinema contemporâneo.
     Arrancando com o mítico "Trás-os-Montes", de António Reis e Margarida Cordeiro (1976), e com a previsão de algumas sessões surpresa, este ciclo é tanto mais importante quanto cada sessão é seguida de debate com nomes de referência do cinema actual, entre os quais realizadores como o húngaro Béla Tarr, o brasileiro Nelson Pereira dos Santos, o chileno Patricio Guzmán, a sul-coreana Soon-Mi Yoo, os portugueses Susana Sousa Dias e Manuel Mozos, a argentina Lucrecia Martel, o canadiano Denis Côté  e o espanhol Albert Serra, que apresentam e debatem os seus filmes e filmes de outros - por exemplo, "Mudar de Vida", de Paulo Rocha (1966), já em Dezembro
                    
       Numa altura em que em Lisboa continuam a fechar salas de cinema, um sintoma sempre preocupante da degradação de um estado de coisas, esta é uma iniciativa muito importante por mostrar filmes muito bons, alguns dos quais desconhecidos ou raramente vistos na actualidade, e por, além de pôr os filmes a falar por si próprios, pôr os cineastas e outros convidados - entre os quais Dennis Lim, crítico do New York Times - a falar também sobre os filmes.
        Pouco habituados já a este tipo de tratamento do cinema, salvo na Cinemateca Portuguesa e nos diferentes festivais de cinema, pela sua programação e intenção esta nova iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian vem repor o cinema no seu justo lugar para todos os verdadeiros interessados, num grau de qualidade e exigência de saudar. Será muito importante assistir e participar.  
                    
        Por mim, tive ontem, Sábado a revelação de Ben Rivers, autor de cinema esperimental de quem me impressionou sobretudo "Two Years at See" (2011), um filme a preto e branco, com grão visível, que segue um homem solitário (com um gato) em interiores e na natureza, e atinge a surpresa e o fascínio quando o apanha na água, primeiro em movimento e sobretudo quando pára, momento mágico em que o tempo se detém enquanto o tosca embarcação deriva para a direita, até ao extremo da imagem, quando ele retoma o remos e inverte o movimento. Com um sábio aproveitamento do fora de campo, nomeadamente dos ruídos, este filme volta a surpreender no seu final, com um plano longo do rosto da personagem do lado direito, iluminado apenas pelas chamas fora de campo de uma fogueira. Mas, além disso, "Two Years at See" tem um excelente tratamento dos espaços vazios e dos detritos, sobre os quais se constrói e constrói a sua personagem abandonada.
     Precisamos todos de assistir a estes filmes e de participar nestes debates. A seguir atentamente.

Saber esperar

     "Um Planeta Solitário"/"The Loneliest Planet" é o terceiro filme da russo-americana Julia Loktev (2011), centrado em três personagens, um par de namorados, Alex/Gael Garcia Bernal e Nica/Hani Furstenberg, e o guia Dato/Bidzina Gujabidze que os conduz numa excursão através das montanhas da Geórgia. Objecto dir-se-ia apátrida e sem destino definido, o filme apresenta uma narrativa minimalista, no limiar da deriva e do tédio, até ao momento em que Alex e Nica apanham um valente susto
                      The Lonliest Planet
       A partir de então a câmara afasta-se imediatamente, os planos tornam-se mais longos e os percursos abstractos, assinalando uma nova gravidade, até ao momento em que, depois de ela ter caído na água dum ribeiro, enquanto Alex dorme Nica trava com Dato um diálogo a sós em que ele lhe conta a sua vida passada e lhe diz que ali, nas imensas montanhas, encontra a verdadeira vida e a realidade, após o que a beija.
     O argumento da autoria da cineasta, baseado num conto de Tom Bissell e incluindo um excerto de "Um Herói do Nosso Tempo", de Mikhail Lermontov,  trabalha a incerteza que para o par reveste, sobretudo a partir de certo momento, a sua caminhada, até desembocar na história de um homem que foi casado como eles se aprestam para ser, que introduz uma circularidade muito especial. Toda a arte do filme e da sua autora reside no tratamento do espaço e do tempo, com actores a simplesmente animarem as suas personagens.  
                      Lonliestplanethand_body
       Mas de tal maneira os acontecimentos surgem escalonados e articulados no tempo e no espaço que percebemos que aquelas duas personagens, que se limitam a tentar passar o seu tempo de maneira agradável na natureza (e aqui a pista ecológica é uma falsa pista), aí vão encontrar o susto e uma delas uma verdade inesperada que a desperta.
       Inconclusivo no seu final definido, "Um Planeta Solitário" é um filme que cumpre de forma exemplar o seu projecto narrativo, espacial e temporal, a que, na sua desarmante arte da espera, é preciso estar atento. Sempre gostei de percursos que aparentemente não conduzem a lado nenhum, no fim dos quais, enquanto os outros dormem, acabamos por descobrir o que não esperávamos nem desejávamos.

Trabalho bem feito

     "A Gaiola Dourada", primeira longa-metragem do luso-francês Ruben Alves (2013), é um filme pessoal e atento, feito pelo realizador por amor e com amor, um amor em que manifestamente os outros participantes acreditaram e a que corresponderam. Filho de emigrantes portugueses em França, Ruben Alves fala do que conhece e dedica o filme aos seus pais, o que lhe fica bem.             
   Numa narrativa que joga com inteligência com o lugar-comum - e Ruben Alves é co-argumentista e co-autor da ideia original -, um casal português há trinta anos em França, Maria/Rita Blanco e José Ribeiro/Joaquim de Almeida, não tem tempo para mais do que os respectivos trabalhos, ela como porteira de um prédio bem situado, ele como operário da construção civil. Surpreendidos pela notícia de uma herança em Portugal, enfrentam a conspiração que se instala entre portugueses  e franceses para não abandonarem Paris e as respectivas ocupações - os filhos de ambos vêm trazer novos elementos geracionais ao filme, não indiferentes porque eles nasceram em França.
                   
      Aquilo que pessoalmente mais me toca neste filme é Maria e José serem bem-vistos e bem-quistos pelo trabalho bem feito que, sem tempo para mais, fazem, questão à volta da qual tudo em "A gaiola Dourada" gira. Claro que, ao saberem-se tomados por "patos", eles encarregam-se de voltar a questão a seu favor, a favor do seu objectivo de regressar a Portugal. 
      Sempre correcto e limpo no seu trabalho como realizador (e também actor), Ruben Alves mostra saber o que faz com o muito apropriado bi-linguismo dos protagonistas e dos seus mais próximos acompanhantes, as inteligentes transições elípticas que, pela mera sugestão, antecipam sempre o que vai acontecer, revelado pela imagem oportuna - o encontro do filho Pedro/Alex Alves Pereira com a "porteira" ao sair acompanhado de casa, o fim de semana do casal, a revelação ao namorado francês da verdade sobre a ausência da filha, Paula/Barbara Cabrita, e a Maria da mentira da irmã e do cunhado -, o muito interessante uso do fado em combinação com outras músicas, nomeadamente de ópera, que não tem nada de inocente e confere grande variedade e atractivo à música do filme.
                    
       Vista por um filho de emigrantes, a emigração recente portuguesa em França é assim, e Ruben Alves faz, como cineasta, ele também um trabalho bem feito, trabalhando com desenvoltura e inventiva, em justo tom de comédia, sobre um lugar-comum que surge com frescura, como descoberta e revelação, num filme para o sucesso do qual o trabalho inteligente de dois grandes actores, Rita Blanco e Joaquim de Almeida, e um elenco, português e francês, que prima pela naturalidade, se revelam muito importantes. Fica, assim, bem a este filme o sucesso com que foi acolhido, que desejo seja bom augúrio para o futuro de Ruben Alves.

Luxo estéril

     O mais recente filme de Ridley Scott, "O Conselheiro"/"The Counselor" (2013), chamou a minha atenção por se basear em argumento de Cormac McCarthy, um dos grandes escritores americanos da actualidade, em cujo romance de 2005 "Este País Não É Para Velhos"/"No Country for Old Men" (edição portuguesa Relógio D'Água, Lisboa, 2007) os irmãos Coen se inspiraram para o seu filme homónimo de 2007 (ver "Encontro fatal", 20 de Janeiro de 2012). Com uma estrutura de filme negro, que lhe vem do argumento e que apreciei, o filme conta com grandes actores, que para ele justamente chamam também a atenção.
       O que me agrada no argumento de "O Conselheiro" é a total amoralidade da sua narrativa, de que dubitativamente haveria que ressalvar a personagem ambígua do Counselor/Michael Fassbender e a de Laura/Penélope Cruz. No mundo em que vivemos e no meio em que decorre, o do tráfico de droga da Colômbia para os Estados Unidos, esta narrativa de amoralidade e dúvida é muito pertinente.                    
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       Simplesmente, Ridley Scott não tem o talento dos Coen, pelo que, embora colando-se ao filme deles em termos espaciais, se limita a confeccionar uma embalagem de luxo para um conteúdo de que apenas apanha a estrutura, sem lhe explorar a trama nem a multiplicidade de pistas para além de um olhar mais atento à performance dos actores do que às personagens em si. Típico tique do cineasta, pelo qual não vem mal ao seu sucesso, define também os seus limites.
     Seguindo fielmente a narrativa, Ridley Scott não tem unhas, como cineasta, para dar espessura àquele material, como em filmes anteriores, correctos e bem feitos como "Gangster Americano"/"American Gangster" (2007), já demonstrara. Ele não é sequer capaz de entrar no espaço de cada personagem, limitando-se a olhá-las do exterior e a dar oportunidade aos actores de fazerem o seu trabalho. Pusilâmine, aparenta uma neutralidade que não esconde a indiferença nem disfarça a exterioridade. Vivaço, jogando na evidência mas sem o talento de Howard Hawks para a trabalhar no cinema, fica-se pelo exibicionismo cosmopolita e publicitário, ostensivo mais do que evidente mas pretensioso e estéril. Assim, nem um olhar crítico se vislumbra em termos fílmicos, todas as personagens tratadas exteriormente e em igualdade, deixando apenas (e já não é mau) a crítica implícita da narrativa. 
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    Meramente correcto e funcional, sem qualquer sobressalto ou inventiva formal como se pretendesse uma transparência clássica, o cineasta demite-se do seu papel num filme em que os actores - com relevo para Michael Fassbender na pele da personagem mais complexa, cuja ambiguidade é justamente castigada -, num elenco em que apenas Javier Bardem cabotina em excesso, se limitam a ilustrar as personagns e a funcionar como chamariz em termos de audiência. Como mero gestor de talentos, que será o que a sociedade do espectáculo e Hollywood dele exigem, Ridley Scott pode valer alguma coisa, mas neste momento aproveita-se mais desses talentos - entre os quais Cormac Mc Carthy, na tradição da colaboração de grandes escritores com o cinema americano - do que os beneficia a eles.  
       A fotografia de Steve McQueen (1930-1980) limita-se a tentar dar um passado reconhecível a "O Conselheiro", mas Sam Peckinpah não filmava assim. Louve-se a memória e a tentativa de recuperar um género importante do cinema americano. Mas na Série B dos anos 40 e 50 do Século XX, com meios muito escassos e sem vedetas gente como, por exemplo, Jacques Tourneur e Samuel Fuller fez muito melhor (sobre Ridley Scott, ver "Um mito das origens", 11 de Julho de 2012).

domingo, 17 de novembro de 2013

O verdadeiro e o falso

      Com uma vasta obra atrás de si, Roman Polanski afoitou-se a realizar "Vénus de Vison"/"La Vénus à la fourrure" (2013), com argumento seu e de David Ives baseado na peça de teatro deste "Venus in Fur", por sua vez baseada no clássico do Século XIX de Leopold von Sacher-Masoch.
     Começo por dizer que este filme faz todo o sentido na obra de Polanski, pois toda ela se baseia em jogos de poder, como os seus filmes anteriores "O Escritor Fantasma"/"The Ghost Writer" (2010) e "O Deus da Carnificina"/Carnage" (2011) exemplarmente mostram e este filme confirma e demonstra, embora a questão do poder atravesse toda a sua obra desde o início - ainda há pouco tempo revi "Por Favor Não Me Morda o Pescoço"/"Pardon me, But Your Teeth are in My Neck"/"Dance of the Vampires" (1967), que definitivamente o impôs no cinema depois da sua saída da Polónia e antes da sua ida para os Estados Unidos (onde teve a vida atribulada que se conhece, que o fez regressar à Europa), um filme que mantém toda a sua graça e frescura satírica original, e em que essa era já, compreensivelmente, a questão.
                    
     Integralmente passado num teatro, em que classicamente entramos no início e do qual saímos no final, "Vénus de Vison" decorre exclusivamente entre um autor/encenador/actor, Thomas/Mathieu Amalric, e uma candidata a actriz, Vanda/Emmannuelle Seigner, que ensaiam a peça, o que faz com que funcione como prova de actores de que os dois se saem na perfeição. É que o trabalho dos actores atinge, na criação daquelas personagens de teatro, aquele ponto de desdobramento essencial entre o actor e a personagem de que Fernando Pessoa escreveu em Autopsicografia: "Finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente", o que torna o filme uma obra siderante centrada no jogo da representação teatral duplicado pela representação cinematográfica.
    Chegando ao pulsional e ao fetichismo, Roman Polanski atinge aqui o pleno domínio e a plena mestria que a sua obra anterior preludiava e anunciava, com um uso preciso das palavras ditas com absoluto a propósito e em todas as nuances que um ensaio convoca. Assim ele volta a mostrar a que ponto o seu nome é indissociável do melhor do cinema dos últimos 50 anos, contra todas as adversidades e todos os reveses da fortuna.  
                    
    Quem conhecer bem a obra do realizador reconhecerá em "Vénus de Vison" um grande cineasta no melhor do seu talento, num concentrado prodigioso: tudo decorre no espaço de um palco, com saídas para a plateia, vazia e tornada lugar de passagem, ligações de telemóvel com o exterior - uma outra mulher, um outro homem (ou mulher, ou ninguém) -, uma saída para os bastidores, num filme em que todos os espaços duma sala de teatro, assim como todos os aspectos da encenação teatral, são convocados. Aliás, esta é uma obra cinematográfica a toda a prova, de humanidade, de ironia e de talento, quer do realizador, quer dos actores, do director de fotografia Pawel Edelman e (sobretudo) do compositor Alexandre Desplat, um filme que se define e joga entre simulação e dissimulação, com um fabuloso genérico de fim com as diferentes representações de Vénus na pintura presentes nos grandes museus de todo o mundo, prova final e definida de homenagem à mulher.
   Claro que Roman Polanski não é Thomas, como Mathieu Amalric não o é, tal como Emmanuelle Seigner não é Vanda, mas na distância e na transição entre o ser e o representar das personagens na criação da peça dentro do filme, entre o verdadeiro e o falso, o falso e o verdadeiro, entre o poder próprio e a consciência do poder do outro que se jogam entre o autor/encenador/actor e a actriz reside um dos méritos maiores deste filme fascinante e imprescindível, em que no essencial confronto homem-mulher o cineasta, ao erguer-se à dimensão do mito, mostra estar inteiramente à altura do melhor de Luis Buñuel ou Ingmar Bergman.

Duas exposições valiosas

      Estão neste momento patentes em Lisboa duas importantes exposições comemorativas, para as quais me permito aqui chamar a atenção.
    Para comemorar os seus 30 anos de existência, o Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian organizou no seu espaço a exposição "Sob o Signo de Amadeo. Um Século de Arte". Com curadoria de Isabel Carlos, Ana Vasconcelos, Leonor Nazaré, Patrícia Rosas e Rita Fabiana, aí estão em exibição obras de um grande número de artistas modernos portugueses e de alguns estrangeiros, o que torna esta exposição representativa do melhor da arte moderna e contemporânea portuguesa, e também internacional. 
                     título desconhecido (Clown, Cavalo, Salamandra)
       O valioso catálogo "100 Obras da Colecção do CAM" (2010), com a participação de uma nova geração de investigadores de História da Arte, permite, para já, um melhor acesso a uma mostra muito significativa, sobretudo enriquecida pela vasta secção dedicada à obra de Amadeo de Souza-Cardoso, muito completa, variada e modelar, apresentada mesmo como o seu acervo completo, que permite avaliar com justeza e em toda a sua extensão o seu papel fundador no modernismo português e o seu lugar de destaque na arte do Século XX. Um importante ciclo de conferências completa esta exposição, patente até 19 de Janeiro de 2014.
      Por sua vez, para a comemoração dos seus 20 anos, a Culturgest organizou a exposição "O sentido da deriva", em que apresenta obras de arte moderna de diversos tipos e em diferentes suportes pertença da Colecção da Caixa Geral de Depósitos. Nesta exposição que, com curadoria de Bruno Marchand, inclui obras de nomes muito significativos da arte pós-moderna, destaco, ao fundo do espaço à esquerda do visitante quando entra, uma série de 10 fotografias a preto e branco de Jorge Molder intitulada "Inox", provas de gelatina sal de prata, de 1995, que por si só justifica a visita.
                     Jorge Molder
       Esta exposição, patente na Culturgest até 11 de Janeiro de 2014, tem muitos outros grandes nomes da arte contemporânea portuguesa e inclui um núcleo expositivo no Porto. Além disso, a Livraria da Culturgest em Lisboa merece também uma visita atenta.
     Pela sua variedade e pertinência, estas são duas exposições muito recomendáveis, que assinalam neste momento de maneira especial um panorama museográfico habitualmente interessante como é o lisboeta. Pelas efemérides respectivas e pela qualidade da respectiva comemoração felicito o CAM e a Culturgest. (Créditos fotográficos Colecção do CAM/FCG e Soraia Silva.)

Violência em espiral

      O canal cultural franco-alemão Arte transmitiu esta semana "Dog Pound", de Kim Chapiron (2009), que, comercialmente inédito em Portugal, é um filme de raro dramatismo e grande violência que decorre numa prisão para jovens delinquentes em Enola Vale, no Montana. Esta terceira longa-metragem do realizador, também co-argumentista com Jeremie Delon, é uma obre seca e dura, que implicou um longo trabalho de preparação e envolve como actores alguns dos jovens detidos em papéis secundários.
                   
    A espiral de violência a que nos é dado assistir, a partir da chega de três novos detidos, entre jovens delinquentes que na prisão se batem por uma supremacia, tráficos, jogos de influência e poder, está soberbamente realizada e interpretada, quase sem sair de um espaço prisional de que não há saída. Naturalmente permeáveis à recordação, ao devaneio e aos projectos de futuro, eles não perdem, porém, uma fundamental hostilidade para com os que os vigiam e lhes constrangem os movimentos, um antagonismo que acaba por os unir na revolta final, fruto duma acumulação de revoltas e de dois caso gravíssimos acontecidos com dois deles.
     Seco e duro, "Dog Pound" mantém sempre a distância justa, que vai até à grande proximidade do grande-plano, e um ritmo marcado por uma montagem curta, que segue a violência do quotidiano e impede que retomemos o fôlego - um fôlego que não é permitido aos jovens detidos e que eles não se permitem a si próprios. Acompanhado por uma música sincopada, áspera e moderna, o filme arrasta-nos no turbilhão daquelas vidas no cárcere, não se dispensando de prestar especial atenção a um dos guardas prisionais. 
                    
     Sempre justo, tenso e preciso, este filme descobre e revela fundamentais fragilidades num sistema prisional que tem de lidar com delinquentes especialmente violentos provenientes de uma sociedade especialmente violenta, de tal modo que a prisão, em vez de contribuir para reeducar e recuperar os jovens detidos, serve apenas para ecoar e aumentar uma violência latente, sempre pronta a explodir. Sem pretender dar lições de moral, Kim Chapiron procura mostrar de forma clara a situação lamentável de um estado de coisas instalado, o que faz de "Dog Pound" um poderoso libelo acusatório.
      Quando encarado seriamente, o cinema pode servir também para isto, e seria uma pena que passássemos ao lado desta bela obra violenta e muito bem feita, que nos leva a olhar de outro modo quer para a violência da sociedade em que vivemos, quer para o sistema em que ela se insere e que é suposto regulá-la para melhor, o que também aqui não faz.
                    dog_pound9.jpg 
      O Arte tem destas vantagens que nenhum outro canal televisivo, mesmo os de cinema, tem: mostrar sistematicamente o mais relevante e às vezes menos conhecido da produção cinematográfica e televisiva recente de todo o mundo - e "Dog Pound" foi justamente premiado no Tribeca Film Festival de 2010. Influenciado por "Scum", do inglês Alan Clarke (1979), no seu realismo e no seu dramatismo este primeiro filme americano de Kim Chapiron não deixa ninguém indiferente, tanto mais quanto percebemos que a violência que encena e mostra no microcosmos em que decorre é uma amostra significativa do lado mais predador e negro da própria América, que ali se encontra também retratado.

sábado, 9 de novembro de 2013

Duelo no mar

       Além dos melhores filmes de Jason Bourne interpretados por Matt Damon, Paul Greengrass é conhecido desde "Domingo Sangrento"/"Bloody Sunday" (2002) e "Voo 93"/"United 93" (2006) como realizador de filmes realistas sobre situações extremas. "Capitão Phillips"/"Captain Phillips" (2013) é o seu mais recente trabalho para cinema e nele o cineasta confirma tudo aquilo que já sabíamos dele de uma forma esmagadora e superior. 
                     930353 - Captain Phillips
           Baseando-se num episódio verídico de pirataria ocorrido em 2009 ao largo da costa da Somália, de que foi vítima um navio mercante americano, o filme acompanha essencialmente o seu comandante, o Capitão Phillips/Tom Hanks, e a sua tripulação, o que nos coloca desde o início do lado do protagonista, que acaba por ter de fazer frente aos piratas que o tomam como refém. Sem prejuízo desse sistemático ponto de vista estabelecido sobre o protagonista, o filme contém apontamentos sobre os piratas que permitem dar conta de uma mentalidade infantil e ingénua mas também do ponto de vista deles, habitantes de um país pobre e atrasado, onde a fome e a grande privação continuam a campear.
           A experiência vivida pela tripulação, em especial pelo Capitão Phillips, é extremamente violenta e como tal nos é devolvida por uma realização precisa e sem contrapontos exteriores que não sejam a progressiva aproximação de socorros. Depois de tomado como refém, não abandonamos o Capitão no interior do salva-vidas em que fica enclausurado com os seus captores, e a extraordinária interpretação de Tom Hanks, muito bem replicada por Barkhad Abdi como Muse, o chefe do grupo de captores, contribui decisivamente para a credibilidade das personagens e da situação e o sucesso o filme. 
                     tom hanks one
          Da parte de Paul Greengrass é tudo uma questão de adoptar sempre o ponto de vista justo e uma montagem rápida, acelerada, que dá conta de forma clara do perigo crescente. Sem qualquer concessão ao mau gosto nem à tranquilidade do espectador, o filme resulta seco e violento, como uma reportagem, de forma a, sem tréguas, transmitir ao espectador todo o dramatismo e toda a verdade do episódio. Embora saibamos desde o início como o filme vai acabar, pois guardamos memória da cobertura mediática do acontecimento narrado, enquanto ele progride como espectadores acompanhamos os esforços heróicos do protagonista para escapar e para sobreviver.
          Acompanhado por uma música que enfaticamente sublinha os momentos mais dramáticos, "Capitão Phillips" confirma plenamente o talento de Paul Greengrass e dá a Tom Hanks uma oportunidade rara de dar de novo conta do melhor do seu enorme talento como o mais contido, expressivo e carismático actor da sua geração no cinema americano. O puro horror paroxístico do final dá para apreciar plenamente uma coisa e a outra.
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          Demasiado preciso, demasiado eficaz, poderá pensar-se do realismo clínico deste filme, mas haverá que atender a que os tempos vão de feição para um uso propagandístico do cinema nos Estados Unidos, o que estabelece o programa para uma edificante visão da capacidade de intervenção armada americana em qualquer ponto do mundo, que funciona de forma manifesta. Se a desproporção de meios e a inferioridade em todos os aspectos de uma das partes chocam, mais claro se torna o dilema dum conflito de civilizações em que lógicas e condições de vida separadas por um abismo se confrontam, sem vitórias que não sejam casuísticas e sem fim à vista.
           Que quase tudo, salvo o início, decorra no mar dá ao filme um carácter desterritorializado, como se decorresse no vazio, o que a realização de Paul Greengrass, na sua precisão e concisão extremas, torna por vezes quase abstracto, sem de maneira nenhuma fazer esquecer que Tom Hanks representa uma personagem real numa situação real - o argumento de Billy Ray baseia-se no relato do episódio que narra pelo próprio Richard Phillips e Stephen Talty.

Filmar o amor

     A edição deste ano do Doclisboa, 11º Festival Internacional de Cinema, teve uma programação excepcional, mostrando de forma clara a actual vitalidade do documentário cinematográfico. Entre as retrospectivas que organizou destaco a que dedicou ao realizador francês Alain Cavalier, que permitiu ficar a conhecer, com a presença do próprio cineasta, a sua obra, ficção e documentário.
    Tendo já escrito aqui sobre ele ("A construção da memória", 14 de Setembro de 2013), a ele e aos seus filmes regresso agora, embora me tenha limitado a ver "La rencontre" (1996), que a vários títulos antecipa "Irène" (2009), que continuo a considerar o seu melhor filme de entre os que dele conheço. De facto, aqui ele filma um amor presente, filma de um amor presente aquilo que é possível filmar para memória futura, enquanto em "Irène" filmava, baseando-se em vestígios e memórias, um amor passado. 
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     Ora ao filmar Françoise Widhoff, assumindo já todas as funções técnicas - além da realização, a captação da imagem e do som -, Alain Cavalier opta sistematicamente pelo plano de pormenor dos objectos que a rodearam durante o início da sua relação, do que resulta uma forte presença dos objectos materiais e dos lugares, deixando dela planos de pormenor de partes do rosto e do corpo, uma imagem fugaz deitada com o gato, uma imagem rápida avançando para a câmara, e de si próprio uma imagem com a câmara de filmar reflectida num vidro.
    Deste modo, fragmentariamente o cineasta constrói a memória do amor a partir do momento em que ele acontece, deixando uma parte muito importante para as palavras, suas e dela, que comentam os objectos e as circunstâncias. Mas não se limita a isso, já que filma também os seus próprios pais, muito velhos e próximos da morte. Assim ele constrói a memória a partir do presente, a própria formação da memória, em vez de a procurar no passado e reconstruir a partir do passado, atingindo alguma coisa da intimidade do amor através de animais, frutos, flores, simples objectos, locais de passagem, mas também através da inquietação, da preocupação e da partilha de memórias pessoais de cada um. Mas filma igualmente a vista a partir da janela da sua casa num plano excepcional, captando a estreita passagem entre prédios em perspectiva, evocativamente comentado.
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        Habituados no cinema por filmes que pretendem, sempre pretenderam declinar o amor em todas as suas facetas e circunstâncias, podemos considerar grata surpresa um filme que vai tão longe quanto é possível ir para que de tudo o que marca um amor como sentimento e relação fique um rasto, um registo visível e audível, sem excessos líricos ou passionais. Ainda sem assumir visualmente o papel que veio a reservar-se em filmes posteriores, em "La rencontre" Alain Cavalier dá uma autêntica lição do melhor do cinema, mantendo Françoise e mantendo-se a si próprio a maior parte do tempo fora de campo, o que justamente os torna aos dois, especialmente a ela, tanto mais presentes através das partes do corpo mostradas - as mãos, em especial - e das palavras ditas. 
         A Cinemateca Portuguesa dedica a Alain Cavalier a conclusão duma retrospectiva completa durante este mês de Novembro, iniciativa muito louvável para a qual chamo vivamente a atenção. É uma oportunidade única de ficar a conhecer um cineasta excepcional, em actividade há mais de 50 anos e com uma importante inflexão técnica e estética no sentido da autobiografia e ao encontro da realidade, consistente com a sua obra anterior, nos últimos 25 anos.