“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Uma excelente notícia

    A edição portuguesa de "Um Melro Dourado, Um Ramo de Flores, Uma Colher de Prata", a acompanhar a edição DVD de "No Quarto da Vanda", de Pedro Costa, é um acontecimento editorial que deve ser aqui devidamente assinalado e saudado.
     Da responsabilidade da Orfeu Negro e da Midas Filmes (2012) na sua edição portuguesa, este é um livro, no original francês datado de 2008 (Paris, Capricci), construído sobre o modelo de entrevista com o cineasta, que tantos e tão bons frutos tem dado, e é acompanhado por uma montagem de imagens e texto do americano Andy Rector. A entrevista, conduzida por Cyril Neyrat, é motivo para que Pedro Costa, que fez também a selecção das fotografias, se explique sobre as origens dos seus filmes e da sua visão do cinema e do mundo, o que se torna pretexto para revelações muito curiosas, e até agora inéditas em português, que são muito esclarecedoras e podem surgir como inesperadas. De entre essas revelações destaco a referência circunstanciada do cineasta às suas principais influências, cinematográficas e extra-cinematográficas, ao seu método de trabalho, ao cinema clássico americano. Momento fundamental, decisivo mesmo, para desfazer especulações, este livro é aproveitado para estabelecer a verdade sobre Pedro Costa e os seus filmes e, simultaneamente, para alimentar a sua própria mitologia pessoal.
                                
      Não devo aqui omitir duas coisas. Primeiro, que o livro original sobre este importante cineasta português contemporâneo é francês, e não português, como poderia parecer óbvio. Segundo, que para o futuro não vai ser possível estudar o cinema de Pedro Costa em Portugal sem conhecer este livro - nem em Portugal nem nos países de língua oficial portuguesa.
     Resta-me felicitar a Orfeu Negro, que ao cineasta já dedicara o muito importante "Cem Mil Cigarros - Os Filmes de Pedro Costa", com coordenação de Ricardo Matos Cabo (2009), por mais este muito relevante contributo para o estudo e o conhecimento do cinema, e obviamente aconselhar a todos que leiam este livro e vejam ou revejam o filme, fundamental, que o acompanha. Sem qualquer hesitação ou restrição, pois Pedro Costa é um dos mais importantes cineastas contemporâneos a nível mundial e, no fundo, este livro, que é além do mais um belo livro, é dele. A editora está, muito justamente, no primeiro lugar da edição portuguesa mais exigente sobre cinema.

Isto também não é importante

     O documentário televisivo pode assumir diversas formas, mais ou menos desenvolvidas, mais ou menos atraentes.
   O canal cultural franco-alemão Arte transmite semanalmente, nas tardes de Sábado, o programa Arte Reportage, em que apresenta todas as semanas três documentários desenvolvidos sobre questões humanas, económicas, sociais e políticas sensíveis em todos os quadrantes. São documentários desenvolvidos, que tratam em profundidade questões importantes e, normalmente, mal conhecidas de uma perspectiva original e muito esclarecedora. Neste programa se faz, semanalmente, uma pedagogia do documentário, da divulgação, da informação e do conhecimento, ouvindo sempre os interessados envolvidos em cada questão e respeitando um ponto de vista claro.
               Zeinab Badawi                              
       Num modelo diferente, a BBC World News tem, ao fim de semana, o programa mais curto Reporters, em que são apresentadas reportagens mais actuais e mais sintéticas sobre algumas das questões mais recentes que foram objecto de tratamento jornalístico durante a semana anterior nos noticiários diários daquele mesmo canal, para os quais são feitas todos os dias pelos seus correspondentes em todo o mundo. Menos desenvolvidas, mas sobre as mais inesperadas questões nos mais inesperados locais, algumas das reportagens aí apresentadas são modelares do ponto de vista do filme e do documentário. E aqui penso que a tradição inglesa do documentarismo não explica tudo.                       
                     
       Espectador habitual destes dois programas, considero-me particularmente esclarecido sobre algumas das questões mais candentes do actual panorama internacional pelas peças que eles apresentam com uma qualidade, uma seriedade e um rigor que permitem respirar um pouco melhor, porque permitem saber mais e compreender melhor como vai realmente, a nível local, este mundo globalizado em que todos vivemos. Numa perspectiva mais em cima da actualidade, Reporters, apresentado por Zeinab Badawi (ver "Why Poverty?", 30 de Novembro de 2012), vale muito a pena pelo resumo dos acontecimentos de uma semana que permite e pela diversidade dos assuntos que trata. Numa perspectiva de inquérito mais desenvolvido, mais longo e detalhado, implicando uma maior e mais longa investigação e um mais porfiado trabalho fílmico, Arte-Reportage, apresentado rotativamente por Andrea Fies e William Irigoyen, é um programa exemplar do que de melhor se faz, sistematicamente, na televisão na área do documentário.
                                            
     Aliás, ao Sábado à noite o Arte costuma apresentar também documentários culturais, frequentemente de carácter histórico, com imagens inéditas, outras vezes com recurso à reconstituição, e quase sempre com a inclusão de comentários de reputados especialistas, que têm igualmente o maior interesse e contribuem para a justa reputação de que este canal goza, em especial na área do documentário. Por sua vez, a BBC World News apresenta ao fim-de-semana o programa Dateline London, em que jornalistas britânicos e correspondentes em Londres dos grandes jornais de todo o mundo discutem com Gavin Esler e uns com os outros a actualidade da semana de maneira muito viva e interessante, com pontos de vista muitas vezes divergentes, o que permite ter acesso a perspectivas autorizadas muito diferentes sobre as grandes questões da actualidade internacional.   
                    
        Eu, que não vejo televisão portuguesa (nem lhe sinto a falta) desde o século passado (o século XX), posso recomendar-vos estes dois programas, Arte Reportage e Reporters, perfeitamente exemplares, em que o documentário, segundo filosofias diferentes, trabalha questões importantes, actuais e geralmente menos conhecidas, em benefício do nosso maior conhecimento, de uma maior, mais diversificada e mais precisa informação a que sem eles não teríamos acesso. Falo, portanto, do que vejo e do que gosto. Sei que tenho bom gosto e estou permanentemente bem informado - e também bem acompanhado. Se me quiserem encontrar, procurem-me aí.  
      Mas também devo dizer que me encontram, abismado e encantado, perante a "Poesia Reunida" de Maria do Rosário Pedreira (1), vencedor do Prémio Literário Fundação Inês de Castro 2012, que é um livro de rara qualidade poética, de uma enorme intensidade de sentimentos que, para se revelarem em todos os seus matizes, são ditos por um trabalho poético de grande expressividade e rigor. É sem dúvida o melhor livro de poesia que me foi dado ler nos últimos tempos, a descoberta de uma voz pessoal e emocionada perante a simples dádiva da existência, que não é algo a malbaratar em caso algum, mas a descobrir e acrescentar sempre. A expressão "...parece deslocada no tempo e assume todos os riscos «intempestivos» de um aparente confessionalismo sentimental", com que, no prefácio, Pedro Mexia qualifica a poética da autora, é uma expressão feliz que identifica muito bem o processo poético de Maria do Rosário Pedreira.
                                         
        Li-o numa noite, de encantamento e fascínio comovido, e enquanto o li permaneci presa da poesia da autora, dos sentidos e dos sentimentos dela - e dos meus. Mas talvez tivesse sido preferível não o ter lido, o que por outras palavras quer dizer que assumo como obrigação grata lê-lo pelo menos mais uma vez por ano e querer fazê-lo sempre como se cada vez fosse a primeira.

Nota
(1) Quetzal, Lisboa, 2012. Mesmo que neste local e com este pretexto, quero chamar a atenção para esta editora, que tem apresentado nos últimos anos um catálogo muito importante, do maior interesse quer na ficção, portuguesa e estrangeira, quer na poesia. 

Puro Tarantino

      
      O aguardado "Django Libertado"/"Django Unchained", o último filme de Quentin Tarantino (2012), é uma excelente filme, que recupera a memória do western, via o spaghetti western e a personagem de "Django", de Sergio Corbucci (1965), com Sergio Leone um dos mestres deste género, e se erige em forma de desforra negra sobre a escravatura. É um filme indispensável por mostrar sem preconceitos a realidade da escravatura nas vésperas da eclosão da Guerra Civil americana (1861-1865), e em termos de Tarantino-film faz todo o sentido pelo estilo, pelo género, pelo propósito e pelo resultado, que faz dele um super-Tarantino. 
     Com argumento do próprio cineasta, este é um filme que procura o lugar-comum para o exacerbar e sobre ele trabalhar, um tanto como fez o spaghetti western mas em termos que contêm a pessoal e inconfundível marca do realizador. Porque não é ingénuo, Tarantino põe um alemão em papel importante, o Dr. King Schulz/Christopher Waltz, um caçador de prémios, o que impõe um primeiro elemento de distanciamento, ele que vai ser o responsável pela libertação de Django/Jammie Fox. Com este arvorado em ajudante daquele, prosseguem a sua campanha durante um Inverno, até rumarem ao Mississipi, onde em cativeiro está a mulher de Django, Broomhilda/Kerry Washington, às mãos de um senhor sulista, Calvin Candie/Leonardo DiCaprio, na sua Candyland. Como já foi observado e é muito evidente, os paralelos com "A Desaparecida"/"The Searchers", de John Ford (1956), são claros e mostram bem como o cineasta visou alto.
                                            
        Ora é depois de chegar à plantação sulista que "Django Libertado" atinge o seu melhor, e progressivamente cada vez melhor, a partir das lutas de negros, o "mandingo", até à soberba penúltima sequência, em que Schulz e Django defrontam todo o gang de fazendeiro e em que o primeiro morre, depois do que Django só, com Broomhilda libertada, enfrenta o irmão de raça que passou para o outro lado, Stephan/Samuel L. Jackson, na sequência final.
         Mais do que um filme de actores este é um filme de Quentin Tarantino, para o qual, com os devidos ajustes, cada actor transporta o seu carisma pessoal, que é posto a funcionar além dos seus próprios limites. Nestas condições, quem verdadeiramente surpreende e toma conta do filme é Samuel L. Jackson como Stephen, o negro que é o braço direito do seu dono branco, a que o actor confere um tom e uma espessura muito pessoal numa interpretação notável. Dito isto, há que reconhecer e ressalvar o tom de paródia que o cineasta imprime ao seu filme, que o coloca decididamente do lado da inspiração no spaghetti western, que já trabalhava filmes anteriores seus. 
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        De facto, como Tarantino-film, e para mais western, este é um filme de retardador, de banhos de sangue, de falso, em que os óculos escuros de Django libertado funcionam como elemento de distanciamento e em que a lenda germânica de  Brünhilde, que Schulz conta a Django, se cruza com a personagem de banda-desenhada norte-americana Broom-Hilda para, juntamente com a referência a "Os Três Mosqueteiros", de Alexandre Dumas, conferir reconhecíveis e apropriadas referências, demonstrando que não foi em vão que o cineasta fez na Europa "Sacanas Sem Lei"/"Inglorious Basterds", o seu filme anterior (2009).
       Maneirista como sempre, Quentin Tarantino consegue voltar aqui ao seu melhor de histórias de crime e vingança, aproveitando para de caminho revisitar um género de há muito defunto, e que não vai ser por isto que vai ressuscitar. O lado de artifício não resulta apenas das personagens e das interpretações, já que a própria fotografia, de Robert Richardson, tem transições e contrastes de artifício que funcionam muito bem. Por sua parte, a música, com abundantes pilhagens no spaghetti western e uma belíssima nova canção de Ennio Morricone, contribui de forma significativa para conferir ao filme um carácter inequivocamente moderno, ou devo dizer pós-moderno, apesar de inusitadas mas compreensíveis referências clássicas, que funcionam muito bem. E a mise ern scène do final é puro Quentin Tarantino no seu melhor, com ele próprio num pequeno papel, pelo que a dedicatória final a Sergio Corbucci, Sergio Leone, Gordon Parks e Sam Peckinpah faz todo o sentido.
                     django unchained samuel l jackson
         Quentin Tarantino é, sem dúvida, um grande, um enorme cineasta, mas enquanto não sair deste registo, conhecido mesmo por tarantinesco, será mais um eterno adolescente, mesmo se sobredotado, no cinema americano, o que está no seu pleno direito querer continuar a ser, para nosso gáudio e divertimento inteligente. Como puro Tarantino, "Django Libertado" é um filme superior e perfeito, mas devo confessar que começo a ficar um tanto farto do registo pessoal deste puro cineasta americano, reconhecendo embora que ele ocupa um lugar muito especial no cinema contemporâneo enquanto continuo a esperá-lo do lado de "Pulp Fiction" (1994), que ainda hoje considero o seu melhor filme (ver "Devastador", 21 de Fevereiro de 2012).

sábado, 26 de janeiro de 2013

Gente comum

      Cristian Mungiu é um dos nomes mais importantes no novo "cinema novo" romeno que nos tem impressionado com filmes novos e diferentes, reveladores de uma nova atitude perante a vida, o passado e o cinema. Depois de "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias"/"4 luni, 3 saptamâni si 2 zile" (2007), ele esteve na origem de "Histórias da Idade de Ouro"/"Amintiri din epoca de aur" (2009), filme em episódios de que escreveu o argumento e que co-realizou com Hanno Höfer, Razvan Marculescu, Constantin Popescu e Ioana Uricaru (todos eles a trabalharem na sua primeira longa-metragem de ficção), o que permite ter uma ideia da sua importância e do seu relevo no actual cinema romeno.
       Neste filme estão em causa histórias de pequena gente que, durante os anos 80 na Roménia (a dita "Idade de Ouro") fez o que pôde por si própria, por sua conta e risco, com as autoridades ou à revelia delas, para poder seguir em frente apesar de tudo. O que impressiona em "Histórias da Idade de Ouro" é a atenção aos pormenores do quotidiano, às pequenas questões que saíam dos esquemas oficiais e nas quais as pessoas se confrontavam com um quotidiano difícil e sem nada a ver com as promessas oficiais.
        Nessas pequenas histórias de pequena gente sem importância às voltas com os seus pequenos, quotidianos problemas, surpreende sobretudo o calor humano que emana de uma ironia, de um humor muito particular, caloroso e sereno, que releva de uma ternura especial pelas personagens. São as histórias, baseadas em factos reais, da visita oficial, do retoque da fotografia do ditador, da morte do porco por gás, das amostras de ar e do transportador de galinhas, cada uma delas com as suas personagens que, nas pequenas coisas comportamentais, sociais e comuns, fogem do estabelecido, do previsto, da regra oficial, enquanto são elas próprias, humanas e verdadeiras.
         Não são histórias de resistência, nem sequer de oposição, são histórias banais mas cada uma delas com o seu inequívoco toque humano que as torna simultaneamente divertidas e comoventes. Ora uma parte muito importante do filme resulta do trabalho de Cristian Mangiu como argumentista, e também como realizador, em tudo o que diz respeito às pequenas questões das pequenas gentes em que o detalhe, o pormenor, é o mais importante e revelador, até pelos efeitos que desencadeia. Este filme assume, pois, um relevo muito particular pelo modo como foi feito e pelo respectivo contexto, o que o faz surgir quase como um manifesto em forma de filme
           Cristian Mungiu confirma, assim, ser um novo e importante nome a reter e a acompanhar num novo "cinema novo" que mantém relações sólidas e seguras com a história do cinema e começa a criar e impor a sua própria história. Não creio que seja hoje possível fazer a crítica do regime ditatorial de Ceausescu e/ou compreender o povo romeno sem passar pela crítica do quotidiano feita pelos filmes deste "cinema novo" romeno (ver "Percurso exemplar", 14 de Abril de 2012).

Na ausência do pai

     O mais recente filme dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne", "O Miúdo da Bicicleta"/"Le gamin au vélo" (2011), é mais um filme muito bom dos dois cineastas belgas, de novo argumentistas e realizadores, que vem confirmar que eles abandonaram o ponto de vista fixo que marcava os seus filmes, em favor de uma maior liberdade de câmara e de pontos de vista sem que qualquer prejuízo daí resulte. Solto e mais livre, este filme não abandona o extremo rigor que caracterizava os anteriores filmes dos autores, já que eles continuam intransigentemente a perseguir o que dói na sociedade contemporânea em personagens traçadas e desenvolvidas com grande precisão e felicidade. 
                       photo-Le-Gamin-au-velo-2010-6
       Falou-se muito em dada a altura da influência de Robert Bresson nos Dardenne, o que parecia um dado bastante claro, e essa é, de facto, uma influência ainda hoje manifesta na maneira como eles continuam a trabalhar as personagens, os sons e os silêncios. Há, de facto, uma grande austeridade e um grande rigor no trabalho fílmico dos autores sobre personagens e situações em parte reminiscentes da história do cinema ("Ladrões de Bicicletas"/"Ladri di biciclette", de Vittorio de Sica, 1948), mas que eles tornam suas e originais ao conferirem-lhes um forte cunho contemporâneo, que as torna simultaneamente locais e universais.
        Entre Cyril Catoul/Thomas Doret, deixado pelo pai numa casa de acolhimento de que ele foge para o procurar, e Samantha/Cécile De France, que lhe resgata a bicicleta, o ajuda a procurar o pai e o acolhe em sua casa, estabelece-se uma relação de afectividade atravessada por vários gestos de rebeldia da parte do miúdo, que naturalmente procura o convívio dos da sua idade e aceita a abordagem de uma outra figura masculina mais velha do que ele, Wes/Egon Di Matteo, o que vai conduzir a um novo e sério conflito. 
                   
      Os Dardenne conduzem "O Miúdo da Bicicleta" com grande sobriedade e grande acerto, por forma a que o conflito surja, evolua, mude de ponto fulcral mantendo sempre uma mesma ideia de base, a que permanece fiel: o isolamento de um miúdo abandonado, traído pelo pai, e que passa a andar sem rumo definido, tentando furtar-se às obrigações que lhe pretende impor Samantha e colocando-a mesmo perante uma opção difícil, que ela resolve a favor dele. Esse momento da escolha dela está muto bem dado, bem como, mais tarde, a fuga dele de casa dela, mas vai ser o silêncio em que Cyril se afasta do pai, que procurara pela segunda vez, de noite na bicicleta, como numa fuga no vazio, e o silêncio que ele resolve guardar no final, depois de recuperado de uma queda consecutiva a uma perseguição, o que vai marcar de maneira mais forte o seu isolamento e o filme.  
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       Muito bem defendido do lado das interpretações, que mantêm um registo de sobriedade, e coberto do lado musical com grande sabedoria, "O Miúdo da Bicicleta" de Jean-Pierre e Luc Dardenne é um excelente filme em que os cineastas dão conta de uma renovada inspiração, livre e sentida, com uma maior liberdade formal, sem abandono das personagens complexas e em crise que caracterizam o seu cinema. 
     
        Nota
     Sobre os irmãos Dardenne, ver "Au dos de nos images (1991-2005), suivi de «Le Fils», «L'Enfant» et «Le Silence de Lorna» par Jean-Pierre et Luc Dardenne", de Luc Dardenne, Paris, Éditions du Seuil, 2005 e 2008.

Uma mulher

   "Vénus Negra"/"Vénus noire", o mais recente filme do tunisino radicado em França Abdellatif Kechiche (2010), traça um retrato impressionante e muito forte da denominada "vénus hotentote", Saartjie Baartman/Yahima Torres, personagem histórica que, no início do século XIX, terá servido de cobaia para os cientistas franceses estabelecerem que, apesar de negra e hotentote, ela pertencia à mesma espécie que as europeias.
    Estranha mártir da ciência, o filme conta-nos a sua história entre Londres em 1910 e Paris em 1915, enquanto serve de atracção de feira e de aristocratas como espécimen bizarro e exótico, capaz de fazer coisas especiais, especialmente bizarras, exóticas e por isso atraentes, mesmo se em situação parecida com o cativeiro. O final do filme, passado na actualidade, mostra-nos a homenagem que lhe foi recentemente prestada na África do Sul, mas antes disso podemos assistir, com todos os detalhes, ao percurso de uma mulher negra em semi-cativeiro na Europa do início do século XIX, quando a superioridade branca e europeia passava também pelo estabelecimento dos dados científicos em relação à espécie.  
                    
              Devo dizer que este é o elemento que a mim me impressiona mais no filme, pois perante a natural recusa de Saartjie em colaborar, vai ser a partir do seu cadáver que vai ser possível tirar o molde de que resultam, inequívocas, as provas científicas procuradas, de uma mulher que em vida sofreu todos os abusos e vexames de uma raça que se entendia superior, para cuja elite serviu de atracção, engodo e excitação perversa.
             Abdellatif Kechiche é um bom cineasta, de quem pudemos apreciar trabalhos anteriores, nomeadamente "La faute à Voltaire" (2000), "A Esquiva"/L'esquive" (2003) e o admirável "O Segredo de um Cuscuz"/"La graine et le mulet" (2007), que aqui faz um trabalho de grande interesse e atenção ao detalhe de época e histórico, com uma planificação sem concessões de nenhuma espécie e reveladora de um estilo muito seguro que lhe permite guardar distâncias sem perder a proximidade da protagonista, respeitando com sobriedade e rigor os seus sucessivos proprietários brancos, Hendrik Caezar/Andre Jacobs e Réaux/Olivier Gourmet, personagens muito importantes porque, habilmente, o cineasta faz com que os acompanhemos por forma a estabelecer a justa distância em relação a Saartjie/Sarah.    
                    
         "Vénus Negra" era um filme necessário? A meu ver sim. E está à altura da personagem de que se ocupa? A meu ver está. Haverá quem, ainda hoje, na Europa fique incomodado por esta história e esta personagem? Se calhar, haverá. Mas, como quaisquer outros, todos temos que lidar com a verdade do passado, que como tal merece ser conhecida, sem que por isso nos julguemos, hoje, melhores do que aqueles que nos antecederam. E Yahima Torres está excelente no papel da "vénus hotentote", de que assume plenamente a humilhação, a nobreza e o orgulho.
         A questão que me fica é se, mudadas as circunstâncias, com as mesmas ou outras raças, ou mesmo dentro da mesma raça, e mudadas as pessoas, a questão de fundo de uma pretensa superioridade, racial ou outra, não permanecerá nos nossos dias. Só que, se calhar, hoje como ontem acha-se que é natural, que é mesmo assim.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O desejo, o sonho, o filme

           "The Fall" (2006), do indiano Tarsem Singh, ou simplesmente Tarsem, que se estreara com "A Cela"/"The Cell" (2000) e viria a realizar "Imortais"/"Immortals" (2011) e "Espelho Meu, Espelho Meu! Há Alguém Mais Gira do Que Eu?"/"Mirror Mirror" (2012), é um filme de fantasia profundamente cinematográfico, ligado à história do cinema e à sua linguagem, que por isso me interessa muito.
       O filme é construído a partir do hospital em que um especialista acções arriscadas no cinema mudo, um duplo (em inglês, um stuntman), convalesce com alguma dificuldade de uma queda grave, situação em que trava conhecimento com uma menina emigrada, também ela em convalescença, a quem conta histórias de fantasia que são filmicamente visualizadas. Este é um esquema de fantasia partilhada e visualizada, a partir de uma situação de imobilidade motora, sobre a experiência do cinema do narrador, que o leva a conferir à história que conta e interpreta um carácter eminentemente cinematográfico e onírico, de acordo com a sua própria situação e com a expectativa da sua pequena interlocutora.  
                                        
         A queda do título original é, assim, a da própria profissão do narrador que o levou à sua situação presente e a uma consequente hipertrofia da imaginação, que trabalha sobre um terrível e temível tirano, sobre queda, falta e redenção, uma imaginação que trabalha, pois, um imaginário declaradamente infantil de maneira abertamente infantil. Ora a história narrada tem a particularidade de, com as mesmas personagens, se desenrolar em diversos pontos do mundo, o que cria uma continuidade narrativa com base numa descontinuidade espacial, mais uma vez característica do filme e do sonho. Sempre com regresso ao local e ao tempo em que a narrativa é enunciada, oferecida pelo narrador à sua por vezes impaciente e mesmo interveniente ouvinte.
          Numa afirmação onírica e cinematográfica, o narrador imagina-se a si próprio como actor e personagem da sua narrativa que está a ser derrotado, o que contraria o desejo e a expectativa da sua ouvinte mas corresponde à sua situação presente de convalescente, ainda para mais carente de alívio para as suas dores e, por isso e para isso, também dependente dela.  
                    
            Para além disto, e integrando-o, a construção cinematográfica da história narrada é baseada em princípios de animação, com recurso meios digitais, o que lhe confere uma maior irrealidade e uma maior credibilidade como sonho, como filme dentro do filme. As interferências entre personagens do filme e personagens da história de fantasia que nele é contada levam a que se crie uma relação dinâmica de identidade/alteridade que transborda do filme e das suas personagens para o espectador, que não é deixado adormecer como a pequena Alexandria/Catinca Untaru não deixa o seu interlocutor, Roy Walker/Lee Pace, esmorecer nem na realidade nem na narrativa que para ela cria e desenvolve
              O princípio de "conta-me uma história", que exprime um desejo de ficção e qualquer filme consciente de si mesmo transporta consigo, é, deste modo, explicitamente e com grande sucesso transferido para o interior do próprio filme, sob a forma mágica da história infantil, que por o ser não tem falhas, ainda que para isso tenha que dar lugar à imaginação, ao improvável, ao impossível. Ora a subtileza com que em termos fílmicos estes dois níveis são dados e articulados em "The Fall" torna o filme um objecto absolutamente fascinante e formalmente perfeito na sua fantasia procurada e muito bem construída, entre o desejo, o sonho e o filme. Perfeito como nos sonhos, como nos filmes.
                    
          Com a cedência da mãe da criança em deixá-la ficar até ao fim da história e com o final a recuperar os filmes a preto e branco em que Roy é suposto participar tudo se conjuga para um filme típico de mil e uma noites, de mil e um filmes. Perfeito como tal. 
          Quem não foi criança e não pediu que lhe contassem uma história? Quem não é adulto a quem o tenha sido pedido para contar uma história? Lembram-se da primeira vez que foram ao cinema? E da última?

Um filme invulgar

         Encarei "Cloud Atlas", dos irmãos Andy e Lana Wachowski e Tom Tykwer (2012), com alguma precaução, pois, embora respeite o trabalho para cinema dos famosos irmãos americanos e do conhecido cineasta alemão, não sou especialmente admirador nem de uns nem do outro, os primeiros muito identificados com os filmes da série "Matrix", o último sobretudo conhecido por "Corre, Lola, Corre"/"Lola rennt" (1998) e "O Perfume - História de um Assassino"/"Perfume: The Story of a Murderer" (2006). Devo, contudo, admitir que neste filme feito a seis mãos eles conseguem atingir um nível de expressão fílmica invulgar e, pelo menos para mim, inesperado.
      Isto não deixa de ser surpreendente pois o que os cineastas neste filme fazem é perfeitamente consistente com os seus respectivos filmes anteriores, de que radicalizam os pressupostos e os traços característicos do lado da narrativa e do tempo, da vida, das personagens e da repetição. O facto de cada actor se dividir por diferentes personagens sem dúvida que é muito interessante e funciona muito bem, mas é o lado de uma narrativa que é contada desde o início até ao final, fragmentariamente e dividida por diferentes linhas narrativas que percorrem diferentes espaços e tempos de uma maneira livre e que se quer significativa de um regresso e de uma repetição, que replica o anterior ou o posterior, que em "Cloud Atlas" me interessa.  
                      Cloud Atlas movie Wallpaper #11
         Falando com toda a franqueza, nem sequer sou especialmente sensível à questão que o filme equaciona e sobre a qual trabalha, que é uma hipótese de trabalho e de pensamento como outra, por mais atraente e convincente que se queira apresentar,  por mais autorizados que sejam os fundamentos filosóficos que possa invocar em seu favor. O que aqui me fascina é a grande liberdade criadora dos realizadores e argumentistas, - a partir do romance homónimo de David Mitchell - , aliás Tom Tykwer também compositor, na realização e na montagem do filme, que os leva a estabelecer diferentes linhas narrativas em que as continuidades imediatas, em contiguidade, são utilizadas para criar novas associações e novos sentidos.
          Claro que não devo esconder o gosto que me dá ver actores tão destacados e carismáticos como, por exemplo, Tom Hanks e Halle Berry, Susan Sarandon e Hugh Grant, desdobrarem-se em diferentes e até contraditórias personagens, mas a isso eu chamarei o inocente prazer do cinéfilo inveterado, para quem Doona Bae e Xun Zhou são gratas surpresas. Mas o que verdadeiramente aqui me agrada e me leva a considerar este um filme superior é a criação e utilização dos cenários, nalguns casos futuristas, o desdobramento das mesmas personagens em situações diferentes e sobretudo a dinâmica que, ao cruzar no imediato as diferentes linhas narrativas, a montagem cria repetidamente por forma a contribuir para a construção do mistério de cada personagem e do próprio filme. 
                     CLOUD ATLAS
          Embora se possa ainda hoje pensar que um filme não se ganha na mesa de montagem, "Cloud Atlas" é um filme soberbo justamente pela criação a que procede a nível da montagem numa narrativa com diversas linhas que, se não de outra, dessa maneira criativamente se cruzam. E esta é uma questão que só se percebe enquanto se assiste ao filme, e se é levado de uma narrativa para a outra, de um tempo para o outro, de um determinado momento para outro momento determinado, de uma forma que faz lembrar os clássicos da montagem do cinema mudo, nomeadamente a "montagem de atracções" de Sergei Eisenstein, pelos novos afectos e sentidos que cria.
        Há em "Cloud Atlas" um nível de expressão e de comunicação quase subliminar que é estabelecido pela montagem e valoriza simultaneamente a narrativa e a expressividade do filme. Se a isto juntarmos as excelentes intenções subjacentes ao filme, ao mostrar em cada narrativa o melhor e o pior de cada ser humano, por vezes na mesma personagem, teremos explicado com inteira clareza os motivos mais profundos de interesse de um filme que pode escapar a muitos pela referência ao assunto de que explícita e legitimamente se ocupa. Um filme que, repito, sabe muito bem construir o mistério de cada personagem e os seus próprios mistérios como filme, que são, por si mesmos, estimulantes.
                     CLOUD ATLAS
          Aqui fui surpreendido, e eu gosto de ser surpreendido por bons motivos, em especial num tempo como este em que as verdadeiras surpresas escasseiam, pois tudo se tornou programado e, por isso, previsível. Ora aqui os Wachowski e Tom Tykwer surpreendem de maneira muito positiva onde deles talvez menos se esperasse. 
         Além do mais, "Cloud Atlas" põe-nos a falar com os mortos, o que é um exercício muito proveitoso, tanto mais quanto podemos perceber que ali, naquele filme, os mortos somos também nós próprios, os espectadores de hoje.

Drama humano

          "Temos de Falar Sobre Kevin"/"We Need to Talk About Kevin", a terceira longa-metragem da escocesa Lynne Ramsay (2011), é um filme inteligente que trata de maneira moderna e desinibida um drama humano pungente. Baseado no romance homónimo de Lionel Shriver (2005) e centrado num drama familiar comovente e perturbador, este é um filme que, ao narrar sem rodeios e sem teorizar, descreve o percurso justo sobre aquelas personagens e aquele assunto, deixando o espectador com a mesma pergunta de Eva ao seu filho Kevin no final: porquê?
         Claro que em toda a sua construção formal e narrativa o filme contém a(s) resposta(s) a essa mesma pergunta, tão pouco óbvia quanto eventualmente surpreendente, mas a cineasta consegue habilmente descrever todo um percurso sobre o passado das personagens por forma a que sejam mostrados todos os elementos relevantes daquele caso dramático - Lynne Ramsay é co-argumentista, com Rory Stewart Kinnear. Nada do que acontece é inexplicável, embora os próprios envolvidos possam ser quem está em piores condições para reconhecer as verdadeiras causas, o que justifica a questão final de Eva.
                    
        É sempre fácil culpar a sociedade, os outros, pelos nossos problemas, em especial quando, nas suas consequências, eles exorbitam da vida comum de cada um. O difícil mesmo é compreender a responsabilidade própria no que, aparentemente alheio a cada um, acontece.
       A construção cerrada de "Temos de Falar sobre Kevin", o recurso repetido aos pormenores que falam por si mesmos, em especial da segunda vez, como o relógio-despertador digital e a cortina na janela, a planificação que acompanha do plano geral ao plano de pormenor em especial Eva, a vacilação desta entre a realidade e a imaginação mórbida, aliam-se à música, com escolhas modernas muito apropriadas, e à montagem, inteligente e estruturante, por forma a tornar belo e atraente um filme dramático até ao excesso, sem nos distrair do drama antes como meio de o fazer chegar até nós secamente, em toda a sua crueza mas também em toda a sua complexidade. O espaço deixado aos actores é muito bem aproveitado por estes, com destaque para a sempre excelente Tilda Swinton, notável como Eva, John C. Reilly como Franklin e Ezra Miller como Kevin adolescente - uma supresa.  
                                         
         Porém, o que aqui me importa ressalvar é o espaço que no filme, pela sua própria construção a cineasta deixa ao espectador para encontrar as causas de tão devastadores efeitos. É esse toque muito moderno e superior que, acrescentado às características humanas típicas de cada personagem e a uma construção em duplicação, em espelho, em que cada um provoca réplicas sísmicas no outro, torna este filme mesmo excepcional e me leva a insistir em que cada um procure nele as respostas que no seu texto, no seu corpo estão inteligentemente disseminadas.
           A vida não é um longo rio tranquilo, como tantos tantas vezes nos querem fazer crer e "Temos de Falar Sobre Kevin" de Lynne Ramsay exemplar e superiormente demonstra e desmonta. Cada um de nós é sempre mais complexo do que pensa, do que julga saber de si próprio - e então relativamente aos outros nem é bom falar... É sempre preciso tentar perceber aquilo que, dependendo de nós, faltou fazer ou foi mal feito, foi feito por metade, em excesso ou na direcção errada. É  mesmo por isso que a resposta de Kevin à pergunta de Eva é exemplar: pensei que sabias tudo.
                   
           Num filme tão inteligentemente construído em termos dramáticos e fílmicos não nos é, contudo, possível ou meramente recomendável moralizar, já que ele apela fundamentalmente à nossa compreensão e à nossa reflexão. A parte que "Temos de Falar Sobre Kevin" remete para o espectador deve, em todo o caso, ser por este plenamente assumida e cumprida para que o filme se complete
            Concluo chamando a atenção para a presença de Steven Soderbergh na produção deste filme. Nestas circunstâncias, ele está, mais uma vez, muito bem como "o suspeito do costume" num filme como este.