“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Mérito especial

    Para além de nos mostrar uma família em desintegração, "O Exame"/"Bacalaureat", de Cristian Mungiu (2016), figura destacada do cinema novo romeno, coloca-nos perante os dilemas do seu pai de família, Romeo/Adrian Titieni, que tem de lidar com várias coisas ao mesmo tempo. 
   Antes do mais ele enfrenta a situação da filha, Eliza/Maria-Victoria Dragus, muito difícil para o objectivo de a fazer ir estudar para Inglaterra, para "a civilização", depois do seu "acidente", o que ele coloca à frente das suas preocupações com a amante, Sandra/Malina Manovici, ou com a mulher, Magda/Lia Bugnar - escassas com esta. Além disso tem o seu trabalho como médico.
                      Cristian-Mungiu 2
     Precisamente porque os métodos de que Romeo se serve são contra normas éticas e legais claras e universais, Cristian Mungiu, também autor do argumento, permite ao protagonista todas as explicações ou "justificações" do seu comportamento de modo a colocar o espectador perante a questão que ele próprio a certa altura do filme coloca: "o que fariam vocês no meu lugar?"
     Sem deixar de, na reacção final de Eliza, emitir um juízo moral, o realizador não vai ele próprio além disso, deixando para quem assiste ao filme a responsabilidade de julgar como entender aquela trama cerrada de cumplicidades sórdidas mas humanas, que envolvem responsáveis da administração e da autoridade.
                      Graduation Bacalaureat Cristian-Mungiu 1
    Claro que por ali passa a metáfora da Roménia actual, desiludida já com o seu pós-comunismo, o que não deve ser ignorado na desintegração familiar e nos diversos compromissos mútuos de "Exame", mas a meu ver em especial a figura de Romeo assume um significado mais largo e confere ao filme um mérito especial.
      Aliás, o cineasta insiste aqui no plano-sequência, o que cria um ritmo lento e deixa evoluir o trabalho dos actores e os diálogos no tempo com um bom tratamento do espaço, na senda do que tinha feito anteriormente - sobre Cristian Mungiu ver "Gente comum", de 26 de Janeiro de 2013, e "Sufocante", de 10 de Junho de 2013. Sobre o cinema novo romeno ver também "Percurso exemplar", de 14 de Abril de 2012, "Uma relação condenada", de 14 de Agosto de 2014, e "Love", de 18 de Novembro de 2016.

Uma noite comum

   Na passada segunda-feira, 28 de Novembro, depois dos filmes do festival "ARTE fait son cinéma" que tem neste momento a decorrer o Arte emitiu ainda "Sombras"/"Schatten, eine nächtichle Halluzination", filme mudo de Arthur Robison (1923), que é um dos mais célebres do expressionismo alemão. Em cópia restaurada e com as tintagens originais recuperadas.
                     
   Trata.se de um dos primeiros filmes sobre o próprio cinema, pois durante ele o "mostrador de sombras" mostra à sua distinta audiência um espectáculo de projecção de sombras que recria o que entre os membros dela está a suceder. Com traços expressionistas nítidos, o que me leva a recordar que o expressionismo não foi uma vanguarda artística dos anos 10/20 do Século XX porque não foi um movimento moderno ou modernista, antes esteve ligado ao Século XIX alemão. Sem embargo do que contribuiu para o reconhecimento do cinema como arte.
   A seguir a este filme histórico que não via há muito, o Arte transmitiu ainda duas fantásticas curtas-metragens de Charles Chaplin do período Essanay, de 1915. Uma noite comum no Arte, que costuma dedicar pelo menos uma noite por mês ao cinema mudo.   

                Carlitos empapelador.jpg                         
   Lembro a propósito que o título francês de "Sombras", "Le montreur d'ombres", inspirou o francês Jacques Aumont, que é um especialista distinto em Sergei Eisenstein, para o título de um dos seus últimos livros, "Le montreur d'ombre - Essai sur le cinéma" (Paris: Vrin, 2012), em que trata de demonstrar, contra ideias feitas, que "o cinema foi, em larga medida, uma arte da sombra e talvez mesmo a arte da sombra por excelência." Aproveito para aqui o aconselhar.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Então como é?

   Esteve anunciado para este ano o início da publicação francesa dos escritos completos de André Bazin (1918-1958), o mais importante e influente crítico e teórico de cinema francês do pós-guerra, co-fundador e primeiro director dos Cahiers du Cinéma.   
            A. Bazin
    Já li que o início da publicação foi adiado por motivo do editor ou editores. Nem sequer é por mim, que conheço a maioria dos escritos de Bazin, que falo disto mas por todos aqueles que, mais novos do que eu, não os conhecem. Sugiro à Élisabeth Quin do Arte que convoque um responsável por esta edição para no seu "28 minutes" prestar contas públicas sobre o calendário deste importante projecto editorial, que não é apenas uma questão franco-francesa mas de interesse muito mais vasto.
   Não se percebe que a urgência (justificada) na publicação dos escritos de Serge Daney (1944-1992) não se verifique também neste caso. Então como é?

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Imprevisível

   "Eis o Admirável Mundo em Rede"/"Lo and Behold, Reveries of the Connected World" é um documentário de Werner Herzog (2016) que conta desde o seu início, ponto por ponto, a história da criação da rede e dos desenvolvimentos da robótica e da inteligência artificial.
                      eis-o-admiravel-mundo-em-rede
  Uma vez que essa é uma história que precisava de ser contada para todos é bom que tenha sido um grande cineasta a fazê-lo num documentário formalmente clássico mas que ouve os depoimentos dos envolvidos e outros interessados.
  Nas múltiplas questões que levanta em dez capítulos há aspectos muito preocupantes, como o The Dark Side da rede e outras implicações do progresso científico sobre a vida das pessoas - nomeadamente aquelas que pensam que aquela é a realidade e se esquecem do mais e do que vive em sua volta. 
                      lo-and-behold-reveries-of-the-connected-world
   À parte isso, as perspectivas de futuro são muito optimistas, a meu ver demasiado optimistas, mas pelo quadro traçado podemos perceber os contornos e a configuração daquilo que está a acontecer e do que poderá aí vir.
   Todos concordam, porém, que o futuro da rede é imprevisível. Vejam "Eis o Admirável Mundo em Rede" pois vale muito a pena a sua exploração vertiginosa conduzida pessoalmente por Werner Herzog - sobre este ver "Para doer", de 20 de Abril de 2013, e "O ruído do deserto", de 21 de Junho de 2016.

Irrepreensível

   "Sozinhos em Berlim"/"Alone in Berlin", a terceira longa-metragem de Vincent Perez (2016), conta com  argumento de Achim von Borries e do próprio realizador com a colaboração de Bettine von Borries, baseado no romance de Hans Fallada (1893-1947), um grande escritor alemão com uma vida muito difícil que é mal conhecido em Portugal, a partir de factos reais.
                     
   O casal Anna e Otto Quangel, interpretado por Emma Thompson e Brendan Gleeson, durante os anos da II Guerra Mundial reage à morte do filho na frente passando a distribuir pela cidade de Berlim postais com apelos à desobediência civil e à resistência de modo a que possam ser encontrados e lidos por outros alemães e despertá-los. Entretanto, sob pressão das SS, o inspector Escherich/Daniel Brühl dirige as operações policiais para os localizar e capturar, num dispositivo que faz lembrar o de "Matou"/"M", de Fritz Lang (1931).
   Tudo em "Sozinhos em Berlim" está muito bem construído, com sobriedade e inteligência nos sucessivos momentos em que ou Anna ou Otto estão sob ameaça de serem localizados e identificados - excelentes as cenas da suspeita de prisão dele e do elevador -, de modo a que possamos estar sempre do lado do casal e acompanhá-lo, eles que estão no centro do filme. 
                      Dogged ... Daniel Brühl in Alone in Berlin
   Numa vida de proximidade e vizinhança muito bem tratada alguns preferem morrer a sujeitarem-se à perseguição nazi. Quando apanhados e presos devido a um deslize de Otto fica a ironia de que, dos 285 postais que ele e Anna haviam distribuído, apenas 18 não terem sido entregues à polícia, numa demonstração de conformismo e de colaboração da população.
    "Sozinhos em Berlim" é um bom filme de Vincent Perez. Irrepreensível. Com fotografia de Christophe Beaucarne, música de Alexandre Desplat, montagem de François Gédigier e grandes interpretações. Apreciei e aconselho. 

domingo, 27 de novembro de 2016

75 anos de carreira

    Foi uma das minhas primeiras idas ao teatro, no caso o Teatro Avenida (onde isso vai...) para ver o "O Milagre de Anne Sullivan", de William Gibson, com Eunice Muñoz no papel que valeu um Oscar Anne Bancroft no filme de Arthur Penn "The Miracle Worker" (1962), e a partir daí nunca mais a perdi de vista.
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   Com uma actividade artística que se alargou ao cinema e à televisão sempre com grande brilhantismo, foi no teatro que deu o seu melhor como actriz e em que deu toda a medida do seu enorme talento, generoso e trabalhado. Numa carreira longa e excepcional, lembro especialmente "A Voz Humana", de Jean Cocteau, que encenou, e "Mãe Coragem e os seus filhos", de Bertolt Brecht.
                    Teatro nacional vai homenagear a actriz Eunice Muñoz
     Os meus afectuosos e sinceros parabéns na passagem deste seu aniversário, Eunice Muñoz, em que desejo a recuperação da sua saúde e que continue a honrar o teatro e honrar-nos com a sua arte por muito mais tempo. Para já quero vê-la em "As Árvores morrem de Pé", de Alejandro Casona, em que me lembro muito bem de ter visto a Palmira Bastos. 
     "Jesus, Jesus, the things I have seen!"

Um homem na história

    Herói de uma revolução necessária e muito importante que introduziu novas regras e novos princípios no seu país, Fidel Castro (1927-2016) foi um dos governantes com maior longevidade política no pós-guerra. Líder amado pelos pobres e explorados de Cuba e admirado fora dela em especial na América Latina e no terceiro mundo, foi muito prejudicado por uma má colheita de cana de açúcar, que ficou muito abaixo do esperado, e por não ter sabido lidar com os direitos humanos, a liberdade de expressão e a democracia no seu país.
                      fidel castro young
   Soube criar uma imagem pessoal e encenar as suas aparições públicas, o que esteve na origem de uma relação especial não só com os cubanos mas também com os media e o mundo (a sua imagem pública) e da sua popularidade. Foi nessa medida um "político moderno".
    Depois de ter feito o mais difícil com sucesso caiu nos mesmos erros e excessos dos regimes comunistas de partido único, de que foi a mais destacada figura no pós-guerra, mas as suas ideias políticas não lhe permitiam outra coisa. Amado por muitos, odiado por outros, a história mundial do pós-guerra não pode ignorá-lo como homem que acreditou sempre naquilo que proclamava em palavras, esteve na origem de uma revolução vitoriosa e no centro de conflitos políticos internacionais decisivos. Amem-no ou odeiem-no, pelo menos como tal ele merece ser recordado
    Como é da sua própria natureza, a utopia fica por cumprir.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Dylan no Arte

     No dia 9 de Dezembro próximo, em homenagem ao Nobel da Literatura deste ano o Arte mostra o documentário de Martin Scorsese "No direction home - Bob Dylan" (2005). Trata-se de um documentário mítico feito para a televisão por um cineasta mítico sobre um poeta, compositor e cantor mítico. 
                     Bob Dylan
      Teve uma edição dvd do 10º aniversário. Na sua versão completa dura 3H 28M. Às 21H 25M, hora portuguesa, de uma sexta-feira, 9/12. Não devem perder sob nenhum pretexto, em especial se não conhecerem. E divulguem.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

O melhor cinema no Arte

   De 27 de Novembro a 6 de Dezembro o Arte apresenta a quarta edição do seu festival de cinema, agora denominado "ARTE fait son cinéma". Nesta programação especial, que daqui saúdo, passarão 18 longas-metragens co-produzidas por este canal.                                 
                      
   Conhece-se a importância da participação do Arte na produção de algum do melhor cinema actual, com assinatura de nomes maiores do cinema europeu e não só europeu. Este festival permitir-nos-á ficar a par do que dessa produção eventualmente não nos tenha chegado em tempo devido .
    Recomendo sem reservas a todos.

Por uma bicicleta

   Com argumento e realização de Haifaa Al-Mansour, "O Sonho de Wadjjda"/"Wadjda" (2012) é uma co-produção entre a Alemanha e a Arábia Saudita que é tido como o primeiro filme saudita dirigido por uma mulher. Passou esta semana no Arte.
                       Wadjda and Her Parents.
  Trata-se de um filme simples e bem feito em volta de mulheres sauditas maiores e menores e dos seus limites sociais no seu país, quer em função do sexo quer em função da idade. Mais que uma simples curiosidade, contém de forma elíptica mas clara todas as alusões que a tal respeito se impunham.
  Em Riad a protagonista, Wadida/Waad Mohammed, de 10 anos, tem o sonho de ter uma bicicleta como o seu amigo Abdullah/Abdullrahman Al Gohani, um sonho que é contrariado pela sua mãe/Reem Abdullah. Vê num concurso sobre o Corão organizado na sua escola pela professora Hussa/Ahd a oportunidade de obter o dinheiro necessário para concretizar o seu sonho.
                        The bicycle that she wanted to buy.
  Com bom domínio técnico - fotografia de Lutz Reitemeier, música de Max Richter e montagem de Andreas Wodraschke -, na sua singeleza "O Sonho de Wadjda" consegue cumprir o seu projecto narrativo de forma perfeita: a protagonista ganha o concurso mas não lhe chega o prémio respectivo porque... Mas a história da mãe dela também interessa como princípio de um outro filme.
  Para 2017 Haiffa Al-Mansour tem preparada a sua segunda longa-metragem de ficção, feita já com produção americana.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A longa viagem

    "American Honey" é a quarta longa-metragem da inglesa Andrea Arnold (2016) e um filme de alta qualidade que, com argumento seu, ela resolve de princípio a fim da melhor maneira.
                     american honey leffest
    Centrado em Star/Sasha Lane, oriunda do sul dos Estados Unidos, que embarca na caravana de venda de assinaturas de revistas chefiada por Krystal/Riley Keough onde conhece Jake/Shia LaBeouf, o filme desenrola-se durante a viagem que empreendem através do país para um porta-a-porta difícil e ingrato que eles resolvem como podem - e podem muito. 
    No que surge como um road movie a relação entre Star e Jake impõe-se com a sua evolução própria em que interfere a relação que ele também mantém com Krystal, esclarecida por esta no seu quarto com espelho no final. Mas a própria Star sujeita-se a outros encontros, com os três amigos primeiro, com o condutor de um camião de transporte de gado depois.
                     american honey leffest
     Este último encontro vai revelar-se decisivo pois inicia um diálogo sobre os sonhos de cada um, que Star vai alargar a Jake. E então podemos ligar os sonhos deles os dois com a vida dos americanos que eles têm vindo a contactar pessoalmente.
     Embalado pelo ambiente da viagem e pelas incidências do percurso, "American Honey" é um filme variado e até divertido sobre a juventude americana de hoje mas também sobre a própria América mostrada nas suas desigualdades sociais e na sua necessidade intrínseca de vencedores - no caso de vendas, como sucede geralmente nesse país mesmo no cinema, em que vence o que, quem vende mais.
                    american honey leffest
     A viagem empreendida pelo grupo torna-se assim uma viagem iniciática em especial para Star, o que surge de maneira clara no final com o saltar da fogueira e o mergulho dela, que não sabe nadar, na água, um mergulho de purificação e renascimento. 
    "American Honey" beneficia muito do uso que faz do 1.37, que lhe confere um rigor e uma qualidade muito própria na sua recusa do grande formato para grande ecrã - é uma escolha artística, com Robbie Ryan como director de fotografia. A música variada aumenta o speed do filme, a montagem de Joe Bini é sempre justa e precisa e os actores principais saem-se muito bem, com destaque para Sasha Lane, uma verdadeira surpresa.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

O jardim do paraíso

  Com argumento de Ciro Guerra e Jacques Toulemonde Vidal baseado nos diários Theodor Koch-Grunberg (1872-1924) e Richard Evans Schultes (1915-2001), o primeiro, colombiano, realizou "O Abraço da Serpente"/"El abrazo de la serpiente" (2015), uma co-produção entre a Colômbia, a Venezuela e a Argentina que este ano estreou entre nós. 
                      O ABRACO DA SERPENTE03
   Como somos informados, os referidos diários, respeitantes a épocas separadas por 40 anos, são os últimos testemunhos sobre a vida primitiva na Amazónia, e ao pôr em filme duas experiências nos mesmos espaços separadas no tempo o cineasta adopta um ponto de vista muito curioso, pois além de acompanhar Theo/Jan Bijvoet e Evan/Brionne Davis, acompanha também os seus guias, Karamakate/Nilbio Torres quando jovem, Antonio Bolivar quando velho, e Manduca/Yauenkü Migue, mestiço, presente apenas durante a primeira expedição.
   O que leva o alemão Theo a embrenhar-se na Amazónia a partir do momento em que o vemos pela primeira vez é a procura de uma planta sagrada capaz de o curar da doença de que sofre, enquanto o americano Evan pretende seguir os seus traços no tempo de II Guerra Mundial para procurar outra coisa. 
                      o-abraco-da-serpente-cena-4
  Com os tempos e percursos a alternarem no filme, acompanhamos de Theo o encontro com o homem maneta e com uma tribo local, o encontro com o missionário, Padre Gaspar/Luigi Sciamanna, que cumpre a sua missão evengelizadora de forma algo insólita, e os momentos finais, enquanto de Evan seguimos a tentativa de refazer o percurso anterior, o encontro com o Messias brasileiro de uma seita, o final no verdadeiro "jardim do paraíso" e o diálogo com Karamakate antes de surgir, inesperada, a cor.
  Permanecemos espectadores atentos destes contactos civilizacionais em que no primeiro caso são afirmados objectivos científicos enquanto no segundo estes escondem já um outro propósito. Entretanto povos e a floresta da Amazónia tinham continuado a ser dizimados e os indígenas presentes no fiilme como actores são os seus descendentes vivos.   
                      O ABRACO DA SERPENTE01 
     Feito por Ciro Guerra com total domínio dos meios do cinema a preto e branco (fotografia de David Gallego), este "O Abraço da Serpente" é um belo filme sobre a eventual má consciência de brancos da Europa mas também das Américas quanto ao extermínio de populações e culturas locais - e percebe-se pela conversa final entre  Karamakate e Evan quem tem a aprender com quem, enquanto a posição do mestiço Manduca é cúmplice do estrangeiro, Theo, por causa do conhecimento.
   Trata-se da terceira longa-metragem de Ciro Guerra (a primeira que dele nos chega), um cineasta muito bom e promissor pelo que mostra neste filme em que manifesta atenção ao meio, aos objectos, aos animais, aos humanos, aos espaços e aos tempos, para além de respeitar a sua base narrativa - fabuloso o diálogo sobre a fotografia, precioso o recurso às cartas de quem não voltará à sua terra.

domingo, 20 de novembro de 2016

Lust for Life

    Do realizador de "Robocop - O Polícia do Futuro"/"Robocop" (1987), "Instinto Fatal"/Basic Instinct" (1992), "O Homem Transparente"/"Hollow Man" (2000), "Steekspel" (2012), que não nos chegou, e "Livro Negro"/"Zwartboek" (2006) entre outros, o holandês Paul Verhoeven, estreou o mais recente filme "Ela"/"Elle" (2016), como os dois anteriores rodado de novo na Europa - mais precisamente em Paris - onde regressou depois da sua longa aventura americana. O que até se explica por não ter conseguido financiamento americano para este projecto.
                                  
   Ora "Ela" é dominado por Michèle LeBlanc/Isabelle Huppert, directora de uma empresa de jogos de vídeo, vítima de sucessivas tentativas de violação no intervalo das quais se entretém com este e aquele na vida social que leva. Concentrando em si todas as atenções do realizador e do filme, depois dos espectadores, para descobrir a identidade do violador encapuçado ela explora em seu favor a situação de que é vítima.
  Com o pai preso por crimes antigos e a mãe, Irène/Judith Magre, ainda activa até ao fim, o seu filho Vincent/Jonas Bloquet não cessa de lhe causar problemas, contrariamente ao seu ex-marido, Richard LeBlanc/Charles Berling. Hiper-activa e sociável, Michèle não só não pára com as investidas do violador encapuçado como se sente por elas estimulada a prosseguir na sua busca pessoal, nomeadamente com Robert/Christian Berkel, marido da sua amiga Anna/Anne Consigny. Acaba por, depois de descoberto o violador, o seu vizinho Patrick/Laurent Lafitte, parecer que procura e aceita o prosseguimento da situação.
                    
  Tudo passa pela excepcional interpretação de Isabelle Huppert num jogo multifacetado, complexo e completo que é só seu e confere a Michèle o aspecto resistente mas também sedutor de uma mulher sem medo, pronta a tudo enfrentar e sofrer na busca do violador e de si própria, também de vingança. Não espanta que perante tão extraordinário desempenho a câmara e o realizador se demorem em pura contemplação.
  Sob a aparente amoralidade deste filme revelam-se com crueza aspectos mais verídicos da mulher, assim exteriorizados e tornados visíveis. Tirando partido da menor estatura da actriz em relação à maioria dos seus comparsas, "Ela" de Paul Verhoeven torna maior o contraste do seu ser sem medo embora ameaçado para tornar Michèle um turbilhão inesperado, que leva à descoberta de cada um dos outros/as ao mesmo tempo que à exploração dos seus limites na descoberta de si própria.
                      Elle
      A alusão ao mais depressa e à duplicação dos jogos de vídeo é pertinente e justificada pela profissão de Michèle, tal como é apropriada a conhecida referência a "A Regra do Jogo"/"La régle du jeu", de Jean Renoir (1939), para cuja sucessiva revelação de personagens, nomeadamente masculinas, "Ela" remete.  
     O argumento é de David Birke a partir de novela de Philippe Djian "Oh...", a fotografia de Stéphane Fontaine, a música de Anne Dudley inclui "Lust for Life" de Iggy Pop (ver "Por Jim Jarmusch", de 15 de Novembro de 2016) e a montagem de Job ter Burg. Este filme confirma que Paul Verhoeven é um realizador invulgar e Isabelle Huppert provavelmente a melhor actriz do nosso tempo.

sábado, 19 de novembro de 2016

Muito bom

  Na noite de ontem, sexta-feira 18 de Novembro, o Arte transmitiu o documentário "Leonard Cohen - Bird on a Wire", de Tony Palmer (2010), sobre a digressão de Leonard Cohen em Março-Abril de 1972 pela Europa e o Médio Oriente. Foi uma homenagem justíssima neste momento, que permite recordar o grande poeta, compositor e cantor quando ainda jovem.    
                                                 
   Incluindo fotografias de família da sua infância, as imagens da época em 16mm foram recuperadas para este filme, que não era mostrado desde a sua produção em 1972 até à sua edição dvd e se apresenta pela sua construção como um documento indispensável sobre uma personalidade artística ímpar que antes de se tornar famosa teve de travar um duro combate pela sua afirmação e aceitação.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Love

     "Tesouro"/"Comoara" é o mais recente filme de Corneliu Porumboiu (2015) e com ele o cinema novo romeno continua em evidência.
     Argumentista e realizador, o cineasta constrói um filme minimal sobre personagens perdidas no espaço e no tempo de uma crise persistente que os atinge também. Adrian/Adrian Purcarescu, em dificuldades para cumprir os seus compromissos, desafia Costi/Toma Cuzin, pai de uma criança com cuja vida escolar se preocupa e a quem lê histórias do Robin dos Bosques, a que juntos procurem o tesouro que, ele está certo, se esconde na antiga casa da sua família.
                      Cena od filme O Tesouro (2015)
     Com a ajuda de Cornel/Corneliu Cozmei, com os seus detectores de metais, durante um longo dia procuram e durante uma longa noite escavam, e essa parte central está muito bem filmada em planos longos. Depois não vos conto mais nada mas atenção ao final.
    Nesta quarta longa-metragem de ficção de Corneliu Poromboiu destaque para a fotografia de Tudor Mircea, que colabora com ele desde o seu filme anterior, "Quando a Noite Cai em Bucareste ou Metabolismo"/"Când se lasã seara peste Bucaresti sau metabolism" (2013), os actores em sobriedade justa e a ausência de música, que rebenta no final: "Love".
    Atenção a estes cineastas romenos mais novos que há alguns anos estão a fazer muito bom trabalho em filmes que merecem ser conhecidos - sobre  Corneliu Poromboiu ver "Uma relação condenada", de 14 de Agosto de 2014, sobre o cinema novo romeno ver também "Percurso exemplar", de 14 de Abril de 2012, "Gente comum", de 26 de Janeiro de 2013, e "Sufocante", de 10 de Junho de 2013.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Bichos estranhos

    "Ma Loute", o mais recente filme de Bruno Dumont (2016), prossegue a inspiração do anterior "O Pequeno Quinquin"/"P'tit Quinquin" (2014) de uma distorção que esclarece a narrativa, agora situada no início do Século XX na Costa do Canal, em Slack Bay, e as suas personagens, ricos aristocratas e pobretanas que trabalham.
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    Dois polícias, Alfred Machin/Didier Després e Malfoy/Cyril Rigaud, encarregados de investigar desaparecimentos, acham os ricos bichos estranhos mesmo sem saberem quão estranhas são as suas relações familiares - de André Van Peteghem/Fabrice Luchini e Aude Van Peteghem/Juliette Binoche, os dois irmãos, Isabelle Van Petteghem/Valeria Bruni Tedeschi, a mulher do primeiro, e Christian Van Petteghem/Jean-Luc Vincent, um primo - e concentrando-se neles o cineasta traça um retrato de época conseguido em distorção, exagero expressivo que atinge a desfiguração. 
    Do outro lado, contudo, as sugestões são não menos estranhas, com o Eterno Brufort/Thierry Lavieville e a Mãe Brufort/Caroline Carbonnier, com Nadège/Laura Dupré como criada dos primeiros, por isso em circulação entre os dois mundos e deslocada.
                    http://www.eyeforfilm.co.uk/images/newsite/slack2_600.jpeg
    Com a paixão cruzada de Ma Loute Brufort/Brandon Lavieville e Billie Van Peteghem/Raph são os dois mundos que se cruzam para se virem a descruzar outra vez, mas este "Ma Loute" é sobretudo um filme pictórico, visualmente impressionista na magnífica fotografia de Guillaume Deffontaines, que colabora com o cineasta desde "Camille Claudel 1915" (2013).
    No novo rumo que imprimiu à sua obra, em que o satírico se alia ao poético, com este filme em que Isabelle levita, há na praia um carro à vela e Machin incha como um balão, de que é argumentista, autor dos diálogos e realizador, Bruno Dumont continua a destacar-se no panorama do cinema francês e europeu pela sua originalidade e inteligência - sobre o cineasta ver  "A dignidade do cinema", de 30 de Julho de 2012, "Filme de programa", de 30 de Junho de 2013 e "Pedra de toque", de 15 de Fevereiro de 2015.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Por Jim Jarmusch

    Em "Paterson" (2016) o americano Jim Jarmusch regressa às suas origens para filmar sem estrelas e sem rede uma vida humilde, a de um motorista de autocarro chamado Paterson - título de um poema longo célebre de William Carlos Williams (1883-1963), poeta maior do modernismo americano, editado em português pela Relógio d'Água (1998) - em Paterson, New Jersey.
                      
    Com Adam Driver como Paterson e Golshifteh Farahani com Laura, a mulher dele, sobre argumento seu o autor mais importante do novo cinema independente americano cria um filme de quotidiano laborioso de um americano que tem a característica especial de escrever poesia. Aí entra a poesia de Ron Padgett, poeta amigo de Jarmusch, com um poema final do próprio Williams, "This Is Just to Say". E a presença das palavras dos poemas que são escritos na imagem e no som confere plena visibilidade ao acto de as escrever, assim vivel e auditivamente poético, tanto mais quanto Paterson não usa computador, telemóvel ou o mais e escreve à mão.
    Acompanhando os rituais diários do protagonista, o filme segue-o entre casa e o trabalho, deste para o bar e de regresso a casa onde o esperam Laura e Marvin, o cão, durante uma semana, de segunda-feira a domingo, para regressar a uma/a mesma segunda-feira. Com pormenores deliciosos, como as conversas dos passageiros do autocarro e de Paterson com o encarregado, as conversas do bar (fantástica a noite do xadrês e da mesa de bilhar), o diálogo dos anarquistas, as conversas do casal em casa a que o outro casal, Everett/William Jackson Harper e Marie/Chasten Harmon, faz contraponto no bar.
                      
   Jarmusch tem a ciência certa de onde colocar a câmara, como dirigir os actores, onde fazer entrar a música dos SQÜRL, a sua própria banda, composta e interpretada por si próprio e Carter Logan, e Paterson é uma maravilhosa pequena cidade americana, imaginada desta maneira pelo cineasta, onde se recorda Bud Abbott e Lou Costello e até existe um centro comercial que passa filmes de terror antigos, a preto e branco, que o casal vai ver.
  "Paterson" é, assim, um filme fantástico, poético, de humor subtil que esconde os grandes dramas familiares e amorosos. Reconduzidos ao início depois de Marvin ter destruído o caderno do protagonista e um misterioso japonês lhe ter oferecido um caderno em branco, o filme fecha de forma perfeita, circular.  
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   Por sua vez "Gimme Danger" (2016), escrito e dirigido pelo mesmo Jim Jarmusch, é um documentário que celebra os The Stooges, banda rock dirigida por Iggy Pop, com origem nos anos 60 do Século XX e cuja história é evocada pelos sobreviventes respectivos.
    Com imagens de arquivo da banda e o comentário de Iggy que esclarece cada circunstância, mas também com recurso imaginativo à animação, da responsabilidade de James Kerr, e a imagens dos filmes e programas televisivos antigos mais banais, sem se questionar nem questionar os músicos de um grupo que ele especialmente aprecia é também um pouco a história da América, com especial atenção aos anos 60 e 70, que o cineasta aqui recorda.                          
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   No final contam-se quatro mortos de The Stoorges originais e adquiridos, mas é a loucura jubilatória dos seus concertos que marca este filme, com o comentário sempre pertinente e esclarecedor de Iggy, de quem é adoptado o ponto de vista, sobre cada situação evocada, de tal maneira que mesmo quem não apreciar o rock fica cativado, siderado com imagens e sons
    Enquanto em "Paterson" temos a cores a pura arte do cineasta, em "Gimme Danger" temos a preto e branco e a cores a arte impura da música e do cinema. Em comum os dois filmes têm, além do realizador, Affonso Gonçalves na montagem - sobre Jim Jarmusch, um dos melhores cineastas contemporâneos, ver "Um cineasta de culto", de 16 de Junho de 2014. 

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Laços de sangue

  "Norskov" (2015), a série policial dinamarquesa que o Arte transmite há duas semanas à quinta-feira, não se limita a repetir com variações modelos anteriores do policial escandinavo tal como ele está estabelecido e estabilizado na literatura, no cinema e na televisão.         
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     Criada por Dunja Gry Jensen, experimentada e premiada argumentista de cinema e televisão que participa no argumento, envolve em torno de alguns crimes três amigos de infância e algumas relações de sangue que neste momento, em que passaram seis dos dez episódios, não se sabe ainda onde conduzirão.
   Com realização, fotografia, música, montagem e interpretações exemplares, "Norskov" alonga-se no tempo para enredar e desenredar uma narrativa que envolve, além das relações pessoais numa pequena cidade, o tráfico de drogas e a construção de uma escola como pistas talvez acessórias. Ou não.     
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   Uma série passada numa cidade com estaleiros navais e que envolve um jovem praticante de hóquei no gelo. Repete na noite de sábado. Não vos digo mais. Vejam porque é muito bom.

sábado, 12 de novembro de 2016

Alfredo Bruto da Costa (1938-2016)

   Foi um homem notável que escolheu estudar a pobreza em Portugal, o que não é, convenhamos, uma escolha evidente nos nossos dias. Estudou a pobreza e escreveu sobre ela com grande pertinência e lucidez. O seu nome assinala uma causa pouco comum e um trabalho aturado em seu favor.
                     Alfredo Bruto da Costa: ?Um sonhador que nunca perdeu a esperança de viver num mundo sem pobreza? ? Cáritas Portuguesa
  Com lugar na política portuguesa democrática na área social, era licenciado em engenharia pelo IST/UTL e doutorado em ciências sociais pela Universidade de Bath, Reino Unido. Professor universitário,  destacou-se nas áreas social, da pobreza, da exclusão e da política social.
  Aqui me despeço com emoção de um homem que, sem dar nas vistas, se destacou numa direcção muito importante e pouco frequentada em que é preciso continuar a trabalhar. Fazem muita falta homens como ele. As minhas profundas condolências à sua família.

Leonard Cohen (1934-2016)

    Foi o bardo inspirado e inspirador de mais de muitos em diferentes gerações. Com os seus poemas e canções ajudou-nos a viver os momentos mais difíceis com uma integridade pessoal e uma qualidade musical inultrapassáveis.
    Mestre dos actuais mestres da música popular, era conhecido de todos, admirado por todos, que sentem agora a sua partida. A sua musicalidade melancólica e o seu intenso lirismo perduram no presente e permanecem para o futuro.
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    Um dos poetas, compositores e cantores maiores do seu e nosso tempo, talvez aquele que melhor soube expressar na sua voz um sentimento profundo da vida que todos partilhámos com ele. Cantou, trabalhou até ao fim. Cabe-nos agora prosseguir no seu caminho.