“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 29 de novembro de 2015

Dois irmãos (algumas rosas)

    "Minha Mãe"/"Mia madre", o mais recente filme de Nanni Moretti (2015), que se segue a "Habemus Papam - Temos Papa"/"Habemus Papam" (2011) na sua obra, revela mais uma vez uma mestria que já nem sequer é inesperada nele. Depois da morte do filho, em "O Quarto do Filho"/"La stanza del figlio" (2001), é pela experiência da morte da mãe que o cineasta passa de forma muito, cada vez mais discreta, em surdina.
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    Deixando a parte principal para a irmã, Margherita/Margherita Buy, realizadora de cinema enquanto trabalha nas filmagens de um novo filme, o cineasta remete-se como actor para um discreto irmão, Giovanni, que acompanha mais de perto a idosa e doente mãe, hospitalizada, Ada/Giulia Lazzarini, para o que chega a pedir uma licença sem vencimento no seu emprego (que depois tenta passar a algo mais radical).
    Mas muito curiosamente Moretti transfere para outrem o papel que lhe deveria caber, o de realizador de cinema, o que lhe permite, como cineasta, ver mais e ver melhor nos problemas com que Margherita se defronta no trabalho, nomeadamente com um actor americano de segunda ordem mas muito convencido, Barry Huggins/John Turturro, e com os seus flashes de sonho, de alucinação, medo e desejo. Quer o filme a ser feito quer os sonhos da sua realizadora introduzem uma outra, segunda ou terceira dimensão em "Minha Mãe".
                     http://www.filmitalia.org/Files/2015/03/26/1427384895715.jpg?1427384895737                    
     Há ainda Livia/Beatrice Mancini, filha de Margherita e neta de Ada, que a propósito do latim que estuda e a avó ensinara com esta estabelece uma relação especial - a tal ponto que sobre ela a avó conhece o que a sua mãe desconhecia.
     O foco em Margherita permite a Nanni Moretti tratar melhor de si e da sua experiência sem a pessoalizar em si próprio, criando com uma excelente Margherita Buy uma figura à beira de passar da neurose ao colapso total que um actor completamente inapto, além da situação clínica da mãe dela que se agrava e da sua progressiva queda na rotina profissional, favorece. E aí são, de facto, os flashes, os sonhos dela que, de uma forma consistente com o que acontece na obra do cineasta vêm pontuar e esclarecer uma experiência dos limites que ela atravessa com o escasso apoio do irmão, só consigo própria e com a sua falta de razão, até ao fim. Por seu lado, as instruções insistentes dela com os seus actores relevam de uma insatisfação que procura ultrapassar-se sempre através do mesmo método, pelo que passaram a fazer parte da sua rotina que ela quer combater.              
                     Mia Madre, il film di Nanni Moretti è stato venduto in oltre trenta paesi
    Com uma grande secura cinematográfica, que nem a música, maioritariamente de Arvo Part anula, Nanni Moretti consegue um filme notável sobre mães e filhas que convivem dificilmente umas com as outras, e com os outros - sobre a ternura, a impaciência, o despero. A elipse da morte de Ada é notável, tal como o plano final de Margherita.
     Incluindo uma alusão expressa num sonho de Margherita de "As Asas do Desejo"/"Der Himmel über Berlin", de Wim Wenders (1987), com a fila de espectadores a esperar pela entrada na sala para assistirem ao filme, Nanni Moretti confirma em "Minha Mãe" ser um dos maiores cineastas contemporâneos. Se a psicanálise pode ser, como em Woody Allen, uma boa, indispensável entrada na sua obra, ela não pode para o efeito ser usada de forma simplificada ou simplificadora (sobre Nanni Moretti ver "Um lugar vazio", de 4 de Março de 2012).

domingo, 22 de novembro de 2015

A loucura dos deuses


  A terminar o festival do documentário que esteve a apresentar, o Arte mostrou na sexta-feira passada "Sleepless in New York", do suíço  Christian Frei (2014), que conta com a participação da antropóloga  Helen Fisher. 
     Com o director de fotografia Peter Indergand, o realizador percorre a cidade em busca de gente que rompeu, terminou uma relação de amor, para ouvir de alguns, os que segue em especial (Michael Hariton, Rosey La Rouge, Alley Scott), os seus queixumes, desabafos e memórias. Com a antropóloga como guia, o filme passa pelo scanner que identifica no cérebro a mesma zona onde decorre o amor e a dor da separação, demonstrando que equivalem a uma forte dor de dentes, a maior dor que se conhece.  
                       
      O sentimento de desolação que se instala de personagem para personagem toma conta do filme, mau grado as intervenções animadoras e moralizadoras de Helen Fisher, que chega a definir por palavras o amor de que o filme trata. O que se torna mais fácil, porque mais claro, quando ele acaba.
     As imagens de New York são inéditas e belíssimas, no crepúsculo, no lusco-fusco, nos transportes, na rua, nos jardins - embora haja também a parada das sereias em Coney Island - e a análise dos movimentos de acasalamento no bar para solitários adianta alguma coisa mais sobre o assunto. Nada que não soubéssemos já mas que nos interessa a todos. 
                           
     "A loucura dos deuses" era como os gregos na Antiguidade consideravam o amor. Por mim, continuo com Jacques: "não há amor, mas apenas as provas desse amor" (in "Les Dames du Bois de Boulogne", de Robert Bresson, 1945), e chamem-me o que quiserem. Sobre o assunto é "Romance", de Helder Macedo, acabado de sair (Lisboa: Presença, 2015), que vivamente recomendo a quem ainda souber ler poesia portuguesa (sobre este escritor, ver "Era Nantes e amanhecia", de 30 de Abril de 2013, e "Estudos de referência", de 14 de Fevereiro de 2014). 
     Entre o amor do amor e o temor do amor, nunca estamos preparados para o seu início, para o seu desenrolar, para o seu termo. De resto, apesar da excelente música com base em Max Richter, Eleni Karaindrou e Giya Kancheli, e incluindo Bach, embora dando todas as respostas a todas as perguntas que formula "Sleepless in New York"de Christian Frei apenas se aproxima de um mistério que permanece intacto. 

Os círculos do além na terra

     "Behemoth - Le dragon noir"/"Bei xi mo shou", de Zhao Liang (2015), é mais um documentário chinês sobre a China actual, que se ocupa da devastação ecológica e humana consequente ao grande progresso alcançado pela política económica do país nos últimos anos. A que preço, justamente, é a sua questão.
     Sempre com um grande apuro de construção, o filme estrutura-se com uma narrativa em off do próprio realizador e Sylvie Blum livremente inspirada na "Divina Comédia", de Dante, por forma a que, de degrau em degrau, vamos percorrendo o país, das montanhas da Mongólia às minas de carvão, mostrando sempre os rostos dos que nestas trabalham em grande-plano. Magníficas panorâmicas laterais dão conta da majestade mas também da devastação da paisagem.
                     © Viennale
      Quando a câmara substitui a panorâmica pelo travelling sobre estruturas calcinadas surge o fogo de uma siderurgia, e então o ecrã torna-se inteiramente vermelho antes de se regressar aos rostos, às dificuldades respiratórias, para mais tarde se tornar todo amarelado de poeira que se levanta.
     No final, uma visita ao cemitério e, a partir do azul do céu, a uma urbanização de grande qualidade que seria ali o paraíso na terra. Mas somos informados de que, à semelhançe de centenas de outras "cidades-fantasma", se encontra desabitada e as zonas assim desenvolvidas estão abandonadas.
                      Bei xi mo shou (2015) 4
     Em 30 anos, a extracção de carvão reduziu de 20% a superfície dos lagos da Mongólia-Interior e provocou prejuízos incalculáveis nos solos. Milhões de trabalhadores migrantes sofrem de pneumoconiose, de que centenas de milhar morreram já. Tudo isto enquanto a China progride, o que juntamente com as construções fantasma traça um retrato assustador de um país cujo progresso se faz com o trabalho mas contra a natureza e à custa do sacrifício dos próprios trabalhadores que era suposto beneficiar.
     Um espelho carregado às costas de um homem mostra o que atrás dele fica, afastando-se em sentido contrário ao dele, até ele se tornar, sempre no mesmo plano, uma pequena sombra brilhante na rua deserta. "Behemoth - Le dragon noir" de Zhao Liang passou a semana passada no canal cultural franco-alemão Arte integrado festival do documentário que ele muito apropriadamente e sempre com filmes de grande qualidade transmitiu (sobre o documentário na China ver "Um documentário épico", de 4 de Novembro de 2012).

sábado, 21 de novembro de 2015

Exigência

     A aguardada primeira longa-metragem de João Salaviza, "Montanha" (2015), vem confirmar inteiramente o talento já revelado pelo cineasta nas suas três curtas-metragens iniciais. Filmado numa linha que delas provém, com outros desenvolvimentos, este um filme que exige que para falar sobre ele seja inventada uma nova linguagem.
      Com uma construção baseada no plano fixo, frequentemente muito próximo das personagens, ele desenvolve-se sem música que não seja a que provém do espaço da diegese, salvo no genérico final, o que reforça a continuidade com os filmes anteriores. Além disso, deles se distingue por um maior recurso aos interiores, embora nos exteriores mantenha o interesse pela arquitectura urbana. 
                     
       Mostrando uma grande desenvoltura e certeza formal, em "Montanha" João Salaviza recorre a uma panorãmica de 360º num quarto e usa com pertinência deliberada a profundidade de campo em pelo menos dois momentos: quando a mãe/Maria João Pinho se afasta para sacudir um tapete do carro e David/David Mourato se lhe vai juntar, depois nos corredores do hospital onde o avô deste está internado, quando durante uma conversa entre mae e filho um funcionário hospitalar entra por uma porta ao fundo.
     Além disto, há a estupenda conversa entre David e a sua directora de turma com esta permanentemente invisível, fora de campo. Depois da cena triangular, a noite entre David e Paula é dada em três planos, mostrando, involuntariamente talvez, que, como escreve Georges Didi-Huberman sobre Jean-Luc Godard, também o contracampo é uma questão de ética (1). As baixas na narrativa são uma mota roubada e disputada com Rafa/Rodrigo Perdigão e o avô de David, num final muito bem construído só com David ao telefone, seguido pela sua conversa com a mãe, que lhe pergunta as horas. "Ainda é cedo. Dorme", responde ele, e o filme acaba.
                     ...
      A exigência de João Salaviza, que vem de trás, leva-o a concentrar-se no seu protagonista, ensimesmado e fechado sobre si e em espaços interiores, dando dele as relações indispensáveis, nomeadamente com o espaço urbano e com os outros, para o compreender no que nas circunstâncias interessa. A partir daí ele exige a atenção e a adesão do espectador sem lhe dar nada mais em troca do que rostos, corpos, palavras e uma narrativa rarificada, reduzida com sabedoria ao osso da adolescência inteira
    Se é certo que tudo é ainda muito rígido, do plano fixo aos jogos com a linguagem cinematográfica, embora sempre jusificado, o povoamento sonoro dos planos em que as coisas acontecem, proveniente do fora de campo, é excelente. Na sua intransigência apaixonada, "Montanha" de João Salaviza é um filme admirável que promete muito ao cumprir aquilo que as suas curtas iniciais anunciavam (ver "Em nome do cinema", de 31 de Maio de 2012). 

      Notas
     (1) Cf. Georges Didi-Huberman, in "L'oeil de l'histoire, 5 - Passés cités par JLG" (Paris: Les Éditions de Minuit, 2015).          

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Celebração da vida e da música

     Passa hoje o centésimo aniversário da excepcional violoncelista Madalena Sá e Costa. Descendente de uma família ilustre de músicos e irmã da extraordinária pianista que foi Helena Sá e Costa (1913-2006), ela dedicou a sua vida à música com amor por ela, o que, com uma aprendizagem precoce e com grandes mestres aliada a dotes naturais, permite compreender a altíssima qualidade do seu longo trabalho artístico mas também a fecundidade da sua vida e do seu ensino.
                     Resultado de imagem para madalena sa e costa
        Impossibilitado de estar presente na celebração do seu centenário, que neste momento decorre na Fundação Engenheiro António de Almeida, no Porto, daqui a felicito muito afectuosamente, Madalena, pelo seu amor inquebrantável pela arte que abraçou e distintamente praticou ao longo da sua vida. E que em longevidade o seu exemplo de amor e entrega à música cultivando a perfeição frutifique.

domingo, 15 de novembro de 2015

O que fica

    No momento em que estavam a decorrer os criminosos e bárbaros atentados em Paris a uma nova e inimaginável escala, estava a ver o filme "Poll", de Chris Kraus (2010), o primeiro que vejo deste novo cineasta alemão.
    Trata-se de um filme muito curioso e muito bem feito, com argumento do próprio realizador baseado nas memórias de Oda Schaefer (1900-1988), sua tia-avó, jornalista e escritora. Situado na Estónia, para onde Oda von Siering/Paula Beer vai viver com os pais e o irmão nas vésperas do início da I Guerra Mundial, durante o Verão de 1914, tem a sua narrativa apoiada em dois elementos exteriores: a presença do exército czarista em território estóneo e um anarquista russo fugitivo, Schnaps/Tambet Tuisk que procura abrigo na casa da família.
                     Cette image a été partagée à de nombreuses reprises sur les réseaux sociaux après les fusillades du 13 novembre.                
   Adoptando resolutamente o ponto de vista da protagonista, o cineasta dá conta das suas perplexidades perante os conflitos familiares e sociais, bem como perante a presença de um desconhecido que, no entanto, é levada a proteger e ajuda a ocultar-se. Misto de estranheza e de recusa, Oda von Siering vai-se apercebendo de que o mundo dos adultos, mesmo o dos da sua idade, não tem nada a ver com a aparência tranquila e tranquilizadora que todos fazem questão de ostentar.
   Do pai, médico, Ebbo von Siering/Edgar Selge, ela aprende o que se sabe sobre o cérebro humano - e a relação pai-filha está muito bem dada - embora mais tarde venha a ser confrontada com o seu desconhecimento da natureza humana. No final espera-se que tudo vá mudar com o rebentar da guerra, justamente quando Schnaps, o anarquista figitivo, resolve sair de cena. 
                     The Poll Diaries is a touching historical drama is seen through the eyes of an adolescent Oda Scheafer, the famed German writer and journalist. Her father, Ebbo, is an eccentric German doctor whose questionable interest in racial breeding has made him an outcast in the scientific community. As Europe teeters on the brink of war and Russian forces crack down on Estonian rebels, Oda meets Schnaps, a wounded Estonian anarchist. Hiding him at Poll and secretly nursing him back to health, Oda risks triggering a tragic chain of events.
     O que fica depois da morte do que viveu, nas palavras finais da própria Oda, é nada de nada, o que encontra justificação plena na informação do final de que de Oda Schaefer, grande poeta alemã, não existe no momento do filme nenhuma obra disponível. Ficou para ela a memória daquele desconhecido que acolheu, protegeu mas que partiu, deixando-a só para o resto dos seus dias com a ideia da morte a trabalhar como semente nos seus poemas. 
    Se estivesse em Paris neste dia talvez nunca tivesse assistido a este magnífico filme, que passou esta semana no Arte. Em Paris tenho as minhas mais fortes memórias afectivas e referências culturais, de maneira de que quando lá acontece ir acomete-me sempre o desejo de não regressar aqui. Não sei se lá poderei voltar algum dia, mas em revolta e dor estou de novo plenamente com os parisianses (ver "Je suis Charlie", de 7 de Janeiro de 2015).

Uma história antiga

      Aconteceu-me há muitos anos no antigo Cinema Condes, em Lisboa, já na fase final da sua existência como sala de cinema. Na última ou numa das últimas vezes que lá entrei entrou também uma mulher ainda nova, de olhos brilhantes e carregando uma pequena caixa que apertava contra o peito. Não me lembro de que filme se tratava mas de que para uma sessão da tarde estava muita gente. Sobre aquela mulher, cujo rosto já não recordo, construí uma história: de que por circunstâncias da vida tivera que empenhar algum/ns bem/ns que agora tinha ido resgatar antes de assistir a um filme numa sala de cinema. Nunca mais vi aquela mulher mas a ela associo uma das últimas sessões de cinema a que assisti em Lisboa. 
                       She's Funny That Way 2
    Claro que isto não aconteceu na mesma sala em que assiti a "A Última Sessão"/"The Last Picture Show", de Peter Bogdanovich (1971), que uns anos antes tinha visto na primeira sala de cinema situada num centro comercial em Lisboa. Passado este tempo todo, do cineasta ficaram-me na memória como mais notáveis "Lua de Papel"/"Paper Moon" (1973), "Noites de Singapura"/"Saint Jack" (1979), "Romance em Nova Iorque"/"They All Laughted" (1981), "Máscara"/Mask" (1985), "Apanhados no Acto"/"Noises Off..." (1992) e "O Miar do Gato"/"The Cat's Miew" (2001). Passados mais de 10 anos depois deste seu último filme de longa-metragem para cinema, e decorridas muitas outras últimas sessões nas mais variadas e improváveis salas de cinema de Lisboa, foi para mim uma grata surpresa poder assistir a "Ela é Mesmo... o Máximo"/"She's Funny That Way" (2014) que marca o regresso do cineasta sob os auspícios dos bem mais novos Wes Anderson (ver "Oh, não, outro artista americano", de 18 de Julho de 2012, e "O regresso de um artista", de 20 de Abril de 2014) e Noah Baumbach (ver "Fresca e encalhada", de 30 de Outubro de 2013, e "Agora nem de patins", de 14 de Junho de 2015) como produtores executivos.
     Centrado numa troupe de teatro que prepara uma nova peça, intitulada "Uma Noite Grega", e nas relações de cada um dos intervenientes, este seu mais recente filme é uma comédia americana típica de Bogdanovich que integra referências de screwball comedy e da equivocidade que a caracterizaram, com uma referência explícita nos diálogos que, para que mesmo quem não conhece saiba, logo a seguir à intromissão inesperada de um cinéfilo esgrouviado é mostrada em excerto do filme de Ernst Lubitsch - e se não conhecem as comédias americanas deste não dou nada por vós. 
                     
    O local é New York, assinalada nomeadamente pelos seus yellow cabs, mas nas trocas de par que se sucedem e nas recorrências da mesma expressão do protagonista, Arnold Albertson/Owen Wilson, um encenador pinga-amor, ao longo da história narrada pela protagonista, Isabella Patterson/Imogen Poots, uma call girl que ele converte em actriz, paira inequívoco o lubitschiano equívoco e o tom destravado do par Katharine Hepburn-Cary Grant sob o disface do par Katharine Hepburn-Spencer Tracy, que as referências mais recentes a Marilyn e Audrey Hepburn não iludem, antes desvelam - se também não conhecem também não posso fazer nada por vós...
    Por trás da erudição cinematográfica de Peter Bogdanovich, co-argumentista além de realizador de "Ela é Mesmo... o Máximo", paira um certo conformismo que mesmo o brio do seu desempenho como realizador e do próprio filme não ilude: aquele é o modelo do filme do cineasta reciclado e com adornos especiais. O que significa que, ao recuperar o seu fulgor passado, ele aqui faz uma revisão e síntese (a primeira na sua obra, é certo, e de nível superior) desse mesmo passado sem lhe acrescentar nada de verdadeiramente novo e significativo, como num processo de consolidação de corredores, portas, palco, trocas, trocadilhos e outras trapalhadas, que as presenças de Jennifer Aniston em piscadela de olho para o presente e de Cybill Shepherd em piscadela de olho para o passado apenas vêm aumentar.
                     She's Funny That Way 14
      Quero com isto dizer que só aprecia inteiramente este "Ela é Mesmo... o Máximo" e o degusta verdadeiramente, compreendendo-o até ao fim e percebendo que a comédia é um género maior do cinema americano, quem conhecer o contexto da comédia americana que ele com inventiva e brio evoca.   
        Saúdo o regresso de um cineasta americano muito importante e desejo-lhe um ainda melhor futuro, enquanto continuo a pensar na espectadora de há muitos anos num há muito extinto cinema de Lisboa: aquele estapafúrdio espectador de cinema do final, que espero que pelo menos esse vocês reconheçam, podia ser eu.

sábado, 7 de novembro de 2015

Os mortos estão vivos

    É com esta epígrafe que se inicia "007 Spectre"/"Spectre", o 24º James Bond film, segundo realizado por Sam Mendes (2015), um dos melhores quando mesmo não o melhor desta já longa série.
    Trata-se de um filme com referências cinematográficas e literárias sólidas e precisas, em especial de Alfred Hitchcok - "Os 39 Degraus"/"The 39 Steps" (1935) com o seu Mr. Memory, "Intriga Internacional"/North By Northwest" (1959) com os protagonistas deixados sozinhos no meio do deserto, ambos com comboios que aqui são essenciais - quanto às primeiras, com Madeleine Swann/Léa Seydoux a fazer com o "irmão" malvado de Bond, Oberhauser/Christoph Waltz, o papel de toda a memória de todos os filmes e do próprio James como personagem muito explicitamente quanto a ambas - "A Mulher Que Viveu Duas Vezes"/"Vertigo" (1958), de Hitchcock, e a "Recherche" de Proust. Embora subtil, e ainda bem, tudo isto é muito claro, sem margem para dúvidas, e não tem nada de acidental (há mais mas por enquanto chega).
                    bond girl
   Acresce (e antecede) que Sam Mendes tem andado nos últimos anos a encenar William Shakespeare em Londres (a sua última encenação foi de "King Lear") e terá percebido em James Bond o carácter shakespeariano das personagens e das narrativas, o que torna também evidente que neste "007 Spectre" estejam envolvidas questões que daí advêm: lutas entre irmãos, conflitos com o pai, memórias, disputas de poder, mortes escusas, mortos e vivos. O argumento é de John Logan, Neal Purvis e Robert Wade, os mesmos de "007: Skyfall"/"Skyfall", também de Sam Mendes (2012), mais Jez Butterworth, a partir de história dos três primeiros baseada nas personagens criadas por Ian Fleming.
    O filme inicia-se muito bem no México e a perseguição que aí decorre depois dos assassinatos cumpridos, num helicóptero, vai ser seguida por outras, em Roma de carro, depois dos Alpes austríacos, onde Bond tem a conversa decisiva com Mr. White/Jesper Christensen, num comboio no Norte de África, por fim em Londres. É ridículo apontar neste momento para a influência perniciosa dos jogos de vídeo nessas perseguições, questão há muito tratada e esclarecida em bibliografia disponível em português (1).
                    
      O conflito central do filme opõe James Bond ao grupo que, liderado pelo super-vilão que foi seu "irmão", dá o título ao filme e se dedica a "negócios" ilícitos muito vultuosos (como muitos outros) e ao terrorismo, enquanto a sua simples existência como espião está a ser extinta na remodelação dos serviços secretos de sua majestade, o que impõe uma pressão enorme sobre ele, mas também sobre o seu chefe, M/Ralph Fiennes, sobre Moneypenny/Naomie Harris e Q/Ben Whishaw.
      Daniel Craig volta a imprimir a sua marca, o seu estilo pessoal a James Bond a um nível superior, o que faz dele o seu melhor intérprete desde Sean Connery, com carisma e grandes dotes de actor muito ginasticado - em mais expandido, a sequência da luta no comboio faz lembrar "007 - Ordem para Matar"/"From Russia With Love", de Terence Young (1963), e em geral a boa forma física, muito necessária neste filme, como as mulheres bonitas e os belos carros faz parte do mito da personagem. Acompanham-no muito bem Monica Bellucci como Lucia, Léa Seydoux, Jesper Christensen mais a memória de M/Judi Dench e um pequeno rato que proporciona um dos melhores e mais reveladores "diálogos" do filme - além de Christoph Waltz, excelente como se exigia.
                     spectre2
     Há alguma coisa de estranha banalidade na perseguição final em Londres, com a queda de C/Andrew Scott também em puro Hitchcock não explorado, mas a questão das origens pessoais de James Bond, que ficara em aberto em "007: Skyfall", com a preservação de um segredo é retomada e concluída neste "007 Spectre", que torna Sam Mendes, com Terence Young, o melhor realizador a ter trabalhado nesta série. Gostei de tudo? Não, não gostei do genérico inicial (ver também "James Bond 50 anos", de 18 de Novembro de 2012).
     
      Nota
      (1) Cf. "Tudo O Que É Mau Faz Bem", de Steven Johnson (Lisboa: Lua de Papel, 2006 para a edição portuguesa).     

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Um olhar sempre curioso

    "In Jackson Heights" (2015), o mais recente filme do americano Frederick Wiseman, foi o único que consegui ver no DocLisboa 2015. Valeu a pena, como sempre acontece com os filmes do grande mestre do documentarismo. Menos "artístico" que os seus filmes anteriores, corre o risco de não interessar a distinta distribuição comercial portuguesa.
    Voltando às suas raízes americanas, Wiseman filma um local especialmente complexo de New York, situado no bairro de Queens, trazido para o título. Pessoalmente, faz-me lembrar na obra do cineasta "Public Housing" (1997) ou "State Legislature" (2007) pela sua dispersão em volta do mesmo local, sempre à procura de onde o mais importante acontece.
                    
    Passando por todas as etnias de um local multicultural e multiétnico - muçulmanos, judeus, hispânicos, católicos, indianos, de passagem negros e chineses -, o filme centra-se em algumas questões especialmente importantes na actualidade, como a imigração, a situação do imobiliário, a integração, a discriminação, sexual e no trabalho, e para isso dá a palavra, ou ouve a palavra dos participantes em eventos públicos. Mas escuta e mostra também americanos brancos que recordam o passado recente ou a sua juventude, o que torna o quadro aqui traçado particularmente rico e esclarecedor.
    Sempe na posição de observador não interveniente, Frederick Wiseman leva tão longe quanto possível a aproximação a uma realidade específica, mostrando-a de todos os ângulos sempre com o maior respeito. (Entre o público português da sessão a que assisti havia quem, tolo e parolo, risse, como se terá rido em momentos estratégicos dos filmes do cineasta que estrearam em Portugal, o que só percebo como necessidade de encontrar algum conforto e reconhecimento onde eles dificilmente se propiciam.)
                    
       Haverá sempre que ressalvar que Frederick Wiseman é o mais importante documentarista vivo e um dos maiores cineastas americanos da actualidade, o que este "In Jackson Heights" exuberantemente demonstra e confirma na sua muito longa duração, sempre em volta do mesmo local, um microcosmos de New York e da América. 
      O cuidado com que ele escolhe o que filmar, o tempo que demora com cada assunto específico sem receio de manter o plano fixo muito longo de quem fala, a estarrecedora arte da montagem de que volta a dar as melhores provas fazem deste seu mais recente filme um dos pontos culminantes de uma obra já muito longa e sempre a abrir para o presente e para o cinema.
                    
       Sou claramente a favor da distribuição comercial deste filme como do anterior "At Berkeley" (2013) em Portugal, para colocar ao alcance de todos o melhor do documentário contemporâneo, até para que se possa perceber que algum do melhor cinema continua a ser feito por americanos em todas as áreas, mesmo se não necessariamente em Hollywood. E conhecer os filmes de Frederick Wiseman permite conhecer a América por dentro, nas suas diferentes facetas, e algo mais sobre o resto do mundo, da vida e da arte.
        (Sobre o cineasta ver "Sobre arte", de 31 de Maio de 2015).

José Fonseca e Costa (1933-2015)

     Foi um dos nomes fundadores do novo cinema português dos anos 60/70 e um dos cineastas portugueses mais intransigentemente pessoais e melhor conhecidos do público por filmes de uma narratividade fluente com variados e picantes motivos de interesse.
                    José Fonseca e Costa Sem Sombra de Pecado cinemateca portuguesa
    Tendo-se estreado na longa-metragem de ficção com "O Recado" (1972), um filme declaradamente de resistência, a que se seguiu "Os Demónios de Alcácer Quibir (1977), também marcado politicamente, sobre o colonialismo, a sua obra veio a atingir expressão plena e maior divulgação com "Kilas, o Mau da Fita" (1980), com o seu gosto do musical, "Sem Sombra de Pecado" (1983), baseado no conto "E aos Costumes Disse Nada", de David Mourão-Ferreira, com o seu travo de melodrama, "Balada da Praia dos Cães" (1988), baseado no romance homónimo de José Cardoso Pires, com o seu turvo tom de policial e de político, "A Mulher do Próximo" (1988), com o seu tom de comédia de costumes. Nos anos 90 dirigiu "Os Cornos de Cronos" (1991) e "Cinco Dias, Cinco Noites" (1996), baseado na novela de Manuel Tiago/Álvaro Cunhal, que nas suas mãos encontrou rumo cinematográfico à altura.
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     Já neste século fez "Fascínio" (2003) e "Viúva Rica Soltera Não Fica" (2006), um filme com traços de memórias, com "O Recado" e "Cinco Dias, Cinco Noites" o meu preferido numa obra multifacetada em que não se contam filmes menores.
     Grande narrador, quase sempre ou argumentista ou co-argumentista dos seus filmes (só o não foi de "Os Cornos de Cronos", que teve argumento de Américo Guerreiro de Sousa), e grande director de actores, sempre com um assinalável brio cinematográfico, para o qual contribuíram repetidas colaborações de Acácio de Almeida e Eduardo Serra, os melhores directores de fotografia portugueses, José Fonseca e Costa marcou uma época muito importante no cinema português com filmes eminentemente partilháveis e do agrado do público. Sempre fiel ao seu próprio gosto, politicamente audacioso desde o início, ele soube manter ao longo de toda a sua vida uma coerência que ia de par com uma ponta de rebeldia e irreverência nos seus filmes, o que tornava cada um deles um especial objecto de culto por razões específicas.
                   A atriz Bianca Byington durante cena de "Viúva Rica Solteira Não Fica" (2006), dirigido por José Fonseca e Costa
       Com ele trabalharam alguns dos melhores actores portugueses de diferentes gerações: José Viana, Maria Cabral, João Guedes, Zita Duarte, Artur Semedo, Fernando Gusmão, Rogério Paulo, Raul Solnado, Carmen Dolores, Mário Viegas, Lia Gama, João Perry, Armando Cortez, Isabel de Castro, Henrique Viana, Virgílio Teixeira, Inês de Medeiros, Pedro Hestnes, Maria do Céu Guerra, Paula Guedes, Sinde Filipe, Vítor Norte, Laura Soveral, Canto e Castro, Paulo Pires, Cucha Carvalheiro (sua irmã, a quem neste momento expresso o meu muito sentido pesar), Rogério Samora e Diogo Dória, entre muitos outros - além de Lima Duarte, Victoria Abril, Assumpta Serna, Patrick Bauchau, Sergi Mateu, Fernanda Torres, Carlos Vereza, Bianca Byington -, o que foi muito importante para um cineasta que gostava dos actores. 
       Na saída de cena de mais um grande nome do cinema português, especialmente importante e influente, reconhecido internacionalmente, a minha sentida homenagem a José Fonseca e Costa e o conselho de que vejam todos os seus filmes - também as curtas ("A Metafísica dos Chocolates", 1967, foi o seu primeiro filme que vi), os documentários e os filmes para televisão - e aprendam com a sua dignidade a dignidade do cinema como arte maior, numa obra trabalhada pela ironia e imbuída de espírito crítico, em que se destaca uma poética dos actores.