“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Uma ideia original

            
           Inspirar-se hoje em Jean Renoir (1894-1979), contudo um dos maiores, quando não o maior cineasta de todos os tempos, é uma ideia que não ocorreria a muitos, apesar de ele ter sido uma das influências maiores da “nouvelle vague” francesa. Foi, contudo, em “A Comédia e a Vida”/”Le Carrosse D’or” (1952) que Alberto Seixas Santos se inspirou para “E o Tempo Passa” (2010), o filme que assinala o seu regresso ao cinema pelo lado da fantasia, 11 anos depois da sua anterior longa-metragem, "Mal", 1999 (ver "Um requiem português", 30 de Março). 
           Seixas Santos é um homem de grande saber do cinema e um cineasta com um estilo depurado, muito elegante, que aqui assume uma leveza especial de acordo com o tema do filme. Ocupando-se de personagens que rodam uma telenovela e vivem uma vida que faz lembrar uma telenovela, o filme acompanha as possíveis intersecções entre esses dois níveis sobretudo a partir da personagem da actriz principal, Teresa Gaivão/Sofia Aparício, na sua dobadoira entre diversos pretendentes: um príncipe francês, um jovem estudante e um talhante. Outras personagens assumem relevo narrativo, como Renata/Isabel Ruth, a amiga mais velha de Teresa, as três estudantes, a outra professora, o que se vai articulando com grande suavidade e leveza em torno de uma protagonista que começa a sentir-se envelhecer e se sente partilhada entre um passado que passou, um presente incerto e um futuro que não sabe o que vai ser.
                      
            Agarrando no que aparenta ser mais superficial, como no seu modelo assumido o cineasta mostra a inocência feminina de um modo tão convincente quanto inevitavelmente contraditório, o que faz com que o filme acabe por desabar quase todo sobre a protagonista e a respectiva intérprete, embora existam apontamentos interessantes com Simão/Américo Silva, o talhante, com Renata, que figura o que a ela a espera, e com a outra professora, mais nova do que ela e, por isso, talvez com perspectivas ainda diferentes, que criam uma ideia de diversidade. Mas "E o Tempo Passa" capta de tal modo a passagem do tempo, emblematizada no envelhecimento, ou na ideia de envelhecimento de Teresa, que rapidamente percebemos que naqueles jogos de amor e de sexo todos, mesmo os mais novos dentro de algum tempo irão passar por aquilo por que ela está a passar. Entre telenovela e vida.
                      
               Mero assistente, Simão, o talhante, parece ser aquele que, com Renata, mais escapa à filmagem da telenovela, a que, contudo, assiste, e pela qual vai acabar por ser envolvido ao envolver-se nela. Talvez este filme fora do tempo, de uma grande inteligência fílmica, seja no fim de contas um filme sobre a ascensão imparável da televisão, que tudo domina nas vidas de todos nos nossos dias e a que não podemos já escapar. Se assim for, a vida como telenovela assume no filme a configuração da vida presente, o que até confere uma outra leveza a quem como tal viva a sua própria vida.  
              Desse modo, “E o Tempo Passa”, a quinta longa-metragem de Alberto Seixas Santos, é um filme deliciosamente tecido sobre a vida e a ficção, sobre a vida como ficção, mas também e inevitavelmente um filme muito bem urdido sobre a morte do cinema, pelo menos do cinema tal como o conhecemos durante mais de um século, em que a televisão assume o papel que o teatro tinha no filme de Jean Renoir e em que a deliberada recorrência dos espelhos, uma constante na obra do cineasta, vem manter presente que estamos perante reflexos, reflexos de reflexos, portanto perante a fantasia e não a realidade directa mas um reflexo dela que, contudo, nos permite compreender e avaliar como todos envelhecemos, apesar das aparentes provas em contrário, o que a morte de Renata vem inequivocamente confirmar – ali alguém morreu. O que, tudo junto, poderá mesmo explicar uma certa auto-complacência que o filme também revela.
              Dito pela candidata a um papel, o monólogo de Bertolt Brecht com que o filme termina vem, porém, dizer-nos que, tal como o espectáculo, a vida continua. Brecht hoje? Claro que sim. É apenas uma referência maior do teatro do século XX a jogar com uma referência maior do cinema do século XX - um século que, note-se, insiste em deixar marcas profundas neste início do XXI e, desse modo, em não acabar. É tudo muito rápido em "E o Tempo Passa"? É verdade, porque "o tempo envelhece depressa", título do excelente último livro editado em português de Antonio Tabucchi (Vecchiano, Itália, 1943 - Lisboa, Portugal, 2012), um pessoano assumido e convicto com provas maiores dadas a cuja memória aqui presto sentida homenagem.

A dignidade do cinema


Revelado com “La vie de Jésus” (1997) e “L’humanité” (1999), filmes interessantes sobre a juventude e a violência, Bruno Dumont é um cineasta que só agora começa a expandir o seu cinema. Depois de “Hadewijch” (2011), um filme já muito desembaraçado de uma certa sobrecarga que reinava nos seus filmes iniciais, “Fora, Satanás”/”Hors Satan” (2011) tem uma construção muito interessante e mais aberta, em que as personagens se desenvolvem de uma maneira solta, que as vai explicando e explicando o que acontece e lhes acontece, enquanto o filme se constrói com base num uso livre e elaborado da linguagem cinematográfica que cria o espaço do filme a pouco e pouco, com largo recurso ao fora de campo visual e sonoro, em que os planos de pormenor ganham importância sem prejuízo dos planos gerais, que continuam a ser muito utilizados.
Ora isso torna-se importante por fazer desenvolver uma narrativa com traços originais (o argumento é, como sempre, do próprio realizador) mas com referências muito precisas na história do cinema, a Carl Th. Dreyer e Robert Bresson, o que sem surpreender não surge como forçado, antes é assumido como uma referência próxima sobre a qual o cineasta trabalha. O filme é feito com actores escolhidos fora da profissão cinematográfica, o que faz lembrar Bresson, embora o trabalho que Bruno Dumont com eles desenvolve seja inteiramente novo, pessoal, apesar de também ele trabalhar sobre a inexpressividade dos seus actores e mesmo se a construção do filme em vários momentos apresenta traços bressonianos, sobretudo dos filmes tardios.
                  
A referência a Dreyer é diferente, pois vai buscar a ideia de “A Palavra”/”Ordet” (1955), a ideia do “milagre”, que aquele filme tratou superiormente, só que o faz no contexto inteiramente profano de um exorcista, um homem errante/David Dewaele que caminha acompanhado por uma rapariga/Alexandra Lemâtre de que ele assume a protecção, eliminando aqueles que a feriram. Esse um percurso muito bem dado em termos fílmicos, com a tal construção do espaço por pedaços que como fragmentos se sucedem e vão deixando explicado o que, sem ser mostrado acontece – e é a isto que eu chamo a influência do Bresson tardio, de “Le Diable probablemant” (1977) e “L’Argent” (1983). O homem vai assumindo a configuração de um homem livre de peias ou restrições de qualquer ordem, e é como tal que cumpre dois exorcismos e no final o milagre profano de ressuscitar a rapariga, após o qual prossegue sozinho o seu caminho. Assim é desenvolvido um tipo de personagem solitária que na obra do autor vem de "L'humanité" (Pharaon De Winter/Emmanuel Schotté), mas agora muito mais livre, embora desse mesmo filme se mantenha a ideia central do contacto físico.
Desta forma, Bruno Dumont, que se afirma ateu e foi professor de filosofia, subverte a herança que explicitamente assume para fazer uma obra original em que continua os seus filmes anteriores sem hesitar em fazer de forma inteiramente pessoal coisas anteriormente feitas por crentes. Esse um facto interessante mas que me impressiona pouco, como não me impressiona muito o cenário natural que é aquele porque é mesmo assim, natural e na natureza, como a narrativa e as personagens exigem. O que é mais curioso é como a forma assume o tema e as personagens, que são personagens comuns, para as descrever, descrever o respectivo percurso e nos deixar a todos perante o inexplicável e o vazio. Sem tergiversar, sem procurar elementos decorativos ou atractivos, em “Fora, Satanás” Bruno Dumont constrói de forma precisa um filme muito expressivo que diz fundamentalmente por imagens e também alguns sons o que tem para dizer, sem recurso aos artifícios da moda. Mesmo a referência crística, inevitável, só lá está para que tudo seja claro e funcione como deve, embora remeta mais para o Johannes de "A Palavra" de Dreyer do que para qualquer Cristo fílmico.
                                      
Muito compacto e concentrado nas suas personagens centrais, descreve com exactidão o que lhes acontece que as revela a elas e revela o mundo que habitam. Um relógio de pêndulo que se ouve fora de campo sem se chegar a ver é um dos sinais mais fortes de um filme que procura, pela sua construção fragmentária e elíptica, conservar o mistério daquilo que mostra e construir o mistério daquilo que deixa inexplicado. A própria forma elíptica como apresenta a violência, de que chega a mostrar os objectos e os efeitos sem a mostrar inteiramente, aponta para uma economia e um domínio da forma que a deixam intacta nas suas consequências – em especial a morte da rapariga. Nesse aspecto há como que um percurso para a ocultação, que nos vai preparando para o milagre final, que assim surge intacto na sua força narrativa e expressiva, já na ausência do seu profano autor – e o regresso a casa da ressuscitada está muito bem dado – de modo a criar distâncias em relação ao seu inevitável modelo de Dreyer,  contudo presente também no espaço exterior que, porém, aqui domina.
           Talvez se possa hoje aplicar a Bruno Dumont o que escreveu Gilles Deleuze: "Só a crença no mundo pode ligar de novo o homem ao que ele vê e ouve. É preciso que o cinema filme, não o mundo, mas a crença nesse mundo, a nossa única ligação. (...) Cristãos ou ateus, no nosso universo esquizofrénico nós temos necessidade de razões para acreditar nesse mundo." (1) Por isso, e até porque nada no filme remete explicitamente para uma marca religiosa no protagonista (há um pendente no início, em vez de uma cruz, e uma explícitada referência panteísta), é mesmo muito possível que o cinema francês, no seu melhor, como neste "Fora, Satanás" em que com grande frescura o cineasta trabalha permanentemente sobre a história e a memória do cinema, se continue a portar muito bem.


Nota
(1) Cf. Gilles Deleuze, "L'Image-temps", Les Éditions de Minuit, Paris, 1985, pág. 223, em que figura o itálico da citação. Na continuação do texto, o Autor fala na relação com a filosofia, de Pascal a Nietzsche, e no cinema em Dreyer, Rossellini, Godard e Garrel, para concluir: "A nossa crença só pode ter por objecto «a carne» (...) Nós temos necessidade de uma ética ou de uma fé, o que faz rir os idiotas; não é a necessidade de acreditar noutra coisa, mas uma necessidade de acreditar neste mundo, de que os idiotas fazem parte." (pág. 225) A tradução é minha e o último itálico é meu.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

As cativas


      A quinta longa-metragem de Bertrand Bonello, “Apollonide - Memórias de um Bordel”/”L’Apollonide (Souvenirs de la maison close)” (2011), vai à procura da "mais antiga profissão do mundo" em Paris da Belle Époque, assumindo as influências para tanto pertinentes da história do cinema – Max Ophuls, Luis Buñuel – para se situar do lado delas, para o que o realizador assume um ponto de vista exterior mas participante.
            O que nos tempos que correm poderia passar por uma exploração grosseira coloca a questão em imagens e palavras justas e certeiras, sem julgar ninguém mas mostrando como foi, como era quando as "casas" eram fechadas a partir de um momento, mostrado no plano final, em que deixaram de haver portas fechadas, tudo se passa em qualquer lugar. Mas o realizador também recusa o porno-chique que o tema poderia propiciar, em benefício de um rigoroso retrato de época sem complacências, mostrando o que dói onde lhes dói a elas, como o encaram também com naturalidade, como o pagam na carne. A personagem inicial de Madeleine/Alice Barnole vai servir de fio condutor de uma narrativa que o não quer ser, para ilustrar o limite a que cada uma das outras está também sujeita, e o regresso recorrente da sua história está muito bem visto, para que o momento fatal surja só no fim – depois as lágrimas do sonho dela, Buñuel de passagem, além da caixinha fechada, mais “Bela de Dia”/”Belle de Jour” (1967) do que “Un Chien Andalou” (1929) em todo o caso.
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              De resto o filme é o ambiente fechado habitado por mulheres jovens mais a patroa, de que só saímos passada uma hora para a paisagem campestre – “O Prazer”/“Le Plaisir”, de Max Ophuls sobre Guy de Maupassant (1952) – para aí regressarmos depois, com a câmara sempre no lugar certo para que tudo decorra com a maior evidência e simplicidade, com candura mas sem especulação, captando a sensualidade física envolvente, os corpos vestidos e despidos, imóveis e em movimento, os momentos de convívio em baixo, os de acção em cima (dados em elipse), os momentos de repouso. A vida é dura para todas, cada uma a encara à sua maneira sem prejuízo de uma proximidade e cumplicidade compreensíveis, mas todas ambicionam pagar o que devem para saírem dali. Nem os homens, que frequentavam o bordel para o que em casa ou noutro lado lhes era negado, ou então pelo convívio ou por mera boémia, são hostilizados, pobres criaturas eles como elas, todos humanos. Embora talvez demasiado contido, o filme assume com muita pertinência a influência da pintura impressionista da segunda metade do século XIX e a de Jean Renoir, nomeadamente do lado plástico e pictórico, mas também na definição física das personagens, e consegue atingir com brio o seu ponto de equilíbrio próprio. A normalidade da vida comum apenas vai ser interrompida pela chegada da nova, pela visita do médico, uma inspecção sanitária que vai trazer àquele meio o elemento antropológico de época, e depois pela ameaça de fecho da "casa", que pesa sobre a parte final. Deste modo, até a tentação do melodrama é muito bem evitada, para o que é decisiva a secura e sensibilidade do registo contido que, contudo, cria e respeita um tom de nostalgia romântica pelo fim de uma época memorável, que o filme muito bem reconstitui e preserva. Os interiores são muito bem explorados como espaços (os dois pisos), na luz e nas cores (com especial destaque para o negro) que conferem um lado pictórico às imagens, os movimentos de câmara e a montagem imprimem ao filme uma suavidade que se ajusta ao ambiente e às suas habitantes, o split screen é muito bem usado, sempre sem quebrar a ideia de clausura e sem procurar qualquer tipo de exploração, funcionando antes como resumos ou abreviações. 
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  Além de realizador e co-produtor, autor também do argumento e da música, que inclui escolhas modernas, Bertrand Bonello apresenta-se aqui como um cineasta com grandes qualidades – não conheço os seus filmes anteriores, que não estrearam em Portugal. Estamos, em “Apollonide -  Memórias de um Bordel”, na viragem do século XIX para o século XX, numa época em que a modernidade, que também foi marcada por esta realidade em casos bem conhecidos, já em transição se expande e exprime no seu melhor. Aliás, as prostitutas aqui tratadas são mulheres como as outras, com problemas semelhantes aos das outras e problemas específicos, embora seja bom não romantizar – o que este filme justamente não faz -, de que o cinema tem tratado como personagens em casos superiores, de Josef von Sternberg a John Ford e Fritz Lang, de Kenji Mizoguchi (“A Rua da Vergonha”/”Akasen Chitai”, 1956) a Vincente Minnelli e Billy Wilder, de Jean-Luc Godard a Rainer Werner Fassbinder, de Chantal Akerman a Jean Eustache (indispensáveis, pois libertos do romantismo anterior), de Arturo Ripstein a Pedro Almodôvar e sobretudo Hou Hsiao-Hsien (“Flowers of Shangai”, 1998), além dos já referidos.  
       Sendo sobre prostitutas e prostituição, “Apollonide” conta com actrizes e actores profissionais e não-profissionais notáveis, entre os quais os cineastas Noémie Lvovsky, Xavier Beauvois e Jacques Nolot, e é um filme todo ele construído como uma homenagem ao feminino, à mulher, esse eterno estranho e desconhecido fascinante objecto de desejo para os homens. E a construção do mistério feminino a partir de uma época muito precisa e de documentação sobre ela (por exemplo, as cartas no seu decurso lidas são verdadeiras, o que também acontece com o livro de que são lidos excertos), um mistério que a “mulher que ri” esclarece e comenta, é o maior trunfo do filme, que simultaneamente o distingue e o impõe – um mistério que em parte é fantasma masculino (a boneca, a gueixa) e que a mulher também explora e constrói, o que é precisamente o assunto que o filme muito bem trata e encena, sem escamotear os fantasmas femininos.                    
                       l apollonide souvenirs de la maison close 6 Lapollonide   souvenirs de la maison close film (Bande Annonce)
             Inequivocamente exploradas, e exploradas em termos de classe, em termos monetários e em termos de liberdade, o que o filme em vez de disfarçar evidencia desde o início no próprio fechamento permanente do seu espaço físico - a casa como habitáculo e dispositivo -, elas recomeçam cada dia para continuarem sempre, iguais a si mesmas, fiéis a si próprias, sabendo como sabem que estão a viver o fim de um tempo, sem saberem, porém, que para elas esse tempo não terá fim e virá a passar por condições muito mais severas - o muito justo plano final.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Oh, não, outro artista americano!

           Wes Anderson é um dos realizadores mais interessantes revelados no cinema americano desde o início do século - o filme que o revelou foi a sua terceira longa-metragem, "Os Tanenbaums - Uma Comédia Genial"/"The Royal Tanenbaums" (2001) - pelo que a estreia de "Moonrise Kingdom" (2012) merece toda a atenção. Ele não é, de facto, mais um numa lista de nomes velhos e novos que todos os dias nos chegam a assinar novos filmes, já que aquilo tem feito até agora revela uma frescura, uma novidade e um talento que não se encontram todos os dias no cinema.
           Tendo a consciência do meio com que trabalha e dos meios que este utiliza, não pretende filiar-se em qualquer tradição específica mas os seus filmes são sempre notavelmente modernos e com um inequívoco cunho artístico, que a produção massificada geralmente não tem. Se em alguém ele me pode fazer pensar é em Tim Burton, por muito diferentes que possam ser, e sejam um do outro.
                    
          Efectivamente, "Moonrise Kingdom" confirma o que os seus filmes anteriores prometiam como fábula moderna sobre os míticos sixties, cuja lenda americana desmonta para melhor a fundamentar. Assumindo à partida a falsidade do meio e a fantasia daquilo que com ele narra, o cineasta volta a investir em personagens típicas reconhecíveis para rodearem um par de jovens em fuga, como em Nicholas Ray ou Terrence Malick quando jovens, mas mais novos, espécie de rebeldes com pequenas causas, no caso a causa do amor. Perserguidos pelos que os tolhem, eles vão acabar por encontrar refúgio e protecção enquanto os pais dela, um polícia e uma assistente social, figuras-tipo e figuras típicas, os perseguem e, enquanto os perseguem se revelam e revelam a sociedade.
          De uma maneira leve, irónica e artística Wes Anderson vem chamar a atenção para os mais novos, para o que assume o lado mais expressivo da arte do cinema do lado do falso que é próprio das fábulas, dos contos de fadas, que aliás surgem muito a propósito no interior do filme, sem esquecer os adultos, instalados nos seus pequenos compromissos e nas suas limitadas vidas, o que pela maneira como é feito dá conta de uma nova sensibilidade de uma nova geração muito promissora do cinema americano. Do ponto de vista formal muito moderno, com planos frontais e frequente rejeição da comodidade do campo-contracampo, com os actores a olharem para a câmara e um narrador que fala com os espectadores, o filme estrutura-se musicalmente de um modo muito interessante e apelativo do genérico inicial ao genérico do fim, no que demonstra uma sensibilidade que inclui o lado sonoro sem receios e sem complexos, muito apropriadamente e com brio. A referência central é aí a música inglesa, Benjamin Britten, mas surgem também referências francesas  de época.
                     
         Contando com nomes conhecidos no elenco - Bruce Willis, Edward Norton, Bill Murray, Frances McDormand, Tilda Swinton, Harvey Keitel -, além dos jovens Jared Gilman e Kara Hayward, e com Roman Coppola como co-argumetista, o cineasta faz com eles nos cenários que escolheu o filme que quer da melhor maneira, passando por dos seus actores recolher figura e máscara inexpressiva, o que nos seus filmes é sempre muito importante, essencial mesmo, e é corroborado por "O Fantástico Senhor Raposo"/"Fantastic Mr. Fox" (2009), o seu surpreendente filme anterior, de animação. Chamo a atenção para que Anderson está sempre presente também no argumento de todos os seus filmes. Com "Moonrise Kingdom" ele continua a trazer algo de novo e refrescante ao cinema que funciona como alternativa séria, credível e muito bem vinda ao cinema oficial de Hollywood, numa altura em que este se tornou, de modo geral, eminentemente bocejante ou/e infantil.
        Outro artista americano? Oh, sim! E destes eu gosto. A este nível de fantasia pode reconhecer-se o cinema americano no seu melhor de inventiva e criatividade. De Wes Anderson, quanto mais melhor. É a leveza do filme na leveza dos tempos, tratando inteligentemente coisas sérias como se brincasse para que tudo seja claro, límpido e superior em termos fílmicos e em termos humanos, o que vem confirmar que uma nova geração muito interessante se está a impôr também no cinema americano.

Postal de Marselha

          Robert Guédiguian é um dos mais consensuais cineastas franceses da actualidade, com um percurso muito regular e filmes interessantes. O seu filme mais recente, "As Neves de Kilimanjaro"/"Les neiges du Kilimandjaro" (2011), vem, contudo, esclarecer aquilo de que se suspeitava anteriormente: Guédiguian é também, talvez desde o início, um cineasta morno, que faz filmes moralistas e bem intencionados, o que com o correr do tempo se torna cada vez mais notório.
        Neste seu último filme, com subtileza e inteligência, numa espécie de "back to the basics" ele coloca-nos perante um sindicalista instalado até ao fim na sua boa consciência que é levado a questionar-se a si próprio perante a atitude contra si empreendida por um companheiro de trabalho muito mais novo, o que leva a que ele e a mulher tomem contacto com realidades que de outro modo não conheceriam. Inspira-se para tal no poema "Les Pauvres Gens", de Victor Hugo, o que se compreende e lhe fica bem. Assim, onde se poderia esperar um questionamento da situação actual e dos seus causadores, deparamo-nos com um filme tranquilo de regresso à realidade e às origens de um pensamento em favor da solidariedade entre os mais desfavorecidos.
                               
         Nascido em Marselha e de origem arménia do lado paterno, Robert Guédiguian é um cineasta em que se sente o gosto de filmar a sua cidade e que criou ao longo dos anos a sua equipa, nomeadamente a sua troupe de actores - Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan -, com os quais continua a trabalhar de filme para filme, o que dá um ar de família e uma especial coerência aos seus filmes. Neste filme, porém, a sua complacência chega ao ponto de fazer planos que são "bilhetes postais" da cidade, o que obviamente o finlandês Aki Kaurismali não fez em "Le Havre" (2011), para o qual, no entanto, foi buscar Darroussin. Pode sempre argumentar-se que é a terra dele, mas mesmo assim, e até por isso, acho que ele aqui abusa.
         De facto, há que dizer que ele é um cineasta com um estilo demasiado conformista e complacente de filmar, sempre muito apoiado naqueles com quem trabalha e naquilo que filma, que não arrisca nem temática nem formalmente, demasiado defensivo e preocupado com a boa impressão que os seus filmes devem causar - conformista nos limites do academismo. Bem dada, uma ideia de regresso às origens passa, contudo, como o melhor do filme, o que só por si é importante e pode permitir mesmo considerar o aparente academismo formal de Guédiguian como um esboço de classicismo.
                   F213 AS NEVES DO KILIMANJARO 
           O cineasta já se tinha socorrido da tentativa de remake camuflado, com variações, em "O Exército do Crime"/"L'armée du Crime" (2009), a partir de ideia original de Serge Le Péron, um filme apesar de tudo estimulante em que mostra vitalidade e investimento afectivo, que se insere num projecto de recuperação do melhor do passado do cinema francês que atingiu também, e de forma mais clara, Alain Corneau (1943-2010) naquele que veio a ser o seu penúltimo filme, o que só demonstra a falta de ideias actuais sobre o presente e sobre o cinema, perante o que se procura o conforto de certezas passadas. Ingénuo e ainda limitado, esse é um filme limpo que anima e esclarece o seu cinema, lhe imprime as rugas que lhe faltavam e lhe ficam bem.       
        "As Neves de Kilimanjaro" é um filme simpático, sem rasgo nem riscos, que não tem novidade nem frescura, em que o cineasta continua a olhar para o umbigo em Marselha, instalado na reputação adquirida, sem ideias nem desejo de cinema. Bem intencionado, lúcido e moralista é o melhor que se pode dizer dele, o que não sendo mau nos dias que correm é manifestamente escasso - não conheço "Le voyage en Arménie" (2006) e "Lady Jane" (2008), que podem ser importantes para compreender a sua obra  mas não estrearam em Portugal. Talvez este seja o tipo de humanismo que transformará Robert Guédiguian num novo clássico do cinema, o que até lhe ficará bem. Agora é preciso merecê-lo. Não deixar que os amigos o canonizem em vida. Menos auto-indulgência e alguma má consciência só lhe fariam bem. 

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Aos meus amores

        Há muitos anos, Godard dizia que o cinema é "a verdade a 24 imagens por segundo", ao que Fassbinder respondia que o cinema é... "a mentira a 24 imagens por segundo". Algures, Truffaut escreveu que o cinema "é a arte de fazer fazer coisas belas a belas mulheres". Por mim não sei ("não me peçam definições"), mas estas são ideias sobre o cinema que me acompanham ainda hoje, quando o cinema vive uma revolução digital em fase muito avançada, porque me ajudam a pensá-lo. Permito-me sempre questionar "o que é a verdade?", "o que é a mentira?", e se elas interessam ainda hoje - questão que me tem sido colocada - e mais, se elas interessam no cinema em especial. Quanto à beleza, embora tente manter-me fiel à perspectiva antiquíssima que identifica a verdade, a beleza e a bondade, não me surpreende nada que ela seja exibida como bem único e supremo, dissociado de qualquer outro atributo - a quem interessam ainda a verdade e a bondade? Revejo-me, porém, sempre renovadamente na ideia de Truffaut das "mulheres belas a fazerem coisas belas", e aí o que me ocorre perguntar, jogando com os conceitos de Godard e de Fassbinder, é se a beleza das "coisas belas feitas por belas mulheres" é verdade ou mentira, questão que a ele penso não o ter preocupado. A mulher, a sua beleza e a beleza do que ela faz é uma questão que ainda hoje me deixa interdito, que tem a sua verdade própria, embora pense que como definição do cinema é curto, por muito justo que fosse para François. Por sua vez, e muito justamente, Serge Daney considerava que no cinema estava envolvida, pelo menos no travelling, uma questão de moral.
        A ideia que tenho, e tenho tentado fazer passar, sobre o cinema é de que ao longo do século XX os estúdios de cinema foram o equivalente dos grandes mecenas do Renascimento, o que penso ter sido mesmo a hipótese sobre a qual trabalhou Gilles Deleuze. Eu sei que o contexto foi outro, que as artes são diferentes, mas esta foi a ideia fundamentada que encontrei para tentar compreender o meu duradouro interesse pelo cinema, pelo que mais amo no cinema. Sei também, como aqueles que citei sabiam, que há coisas menoríssimas no cinema, que nem sequer valem a pena, da mesma maneira que sei que passaram por menores no cinema coisas efectivamente magníficas - veja-se a série B norte-americana -, tal como sei que hoje em dia poucos conhecem a fundo e a sério a história do cinema - e aí, como Daney, tento ver-me a mim próprio como um "passeur".
                                   Murmúrio do Mundo (O)
        Tem sido usado contra o cinema o argumento da "sociedade do espectáculo", de que ele participaria, entendido assim, ele também, como um mero meio escapista, um entretenimento inconsequente. Embora já o tenha usado, este argumento no fundo não me satisfaz, pois sei bem como todos nós precisamos de consolação, de alguma consolação, que uns encontram na filosofia, outros na religião, quase todos no espectáculo da própria sociedade, de que participam. Não tenho dúvidas em o conceder, apesar de compreender os inconsoláveis  e me contar, aliás em boa companhia, entre os que não procuram a consolação  Por isso não me fecho, ou tento não me fechar, no cinema mais indiscutivelmente artístico e permaneço, ou tento permanecer aberto às lições do século XX também nessa matéria, sabendo embora que os tempos não vão de feição para conceitos antigos, por muito interesse que possa ter, e efectivamente tem a ideia de inactualidade, anacronismo no contemporâneo (1), e que a chamada revolução digital, por alguns temida e anatemizada, tem dado frutos muito interessantes no cinema em prejuízo de virtudes antigas deste.
        O que tem então o cinema que mais amo, que não só não me impede de pensar, como dizia Artaud no seu tempo, mas me ajuda a pensar? Tem esta coisa simples, em que me fez pensar o último livro de Almeida Faria, "O Murmúrio do Mundo - A Índia Revisitada" - um livro mágico de um escritor prodigioso: faz-me ouvir o murmúrio do mundo. Talvez isto aconteça comigo por ser muito dado ao meu próprio rumor interior, o que me torna especialmente receptivo aos estímulos que me chegam filtrados pela arte dos grandes artistas que amo em qualquer sector artístico. No fundo, somos nós que reconhecemos (ou não) aquilo que é digno de apreço, porque nos fala, no mundo e na arte, sendo certo, contudo, que cada um de nós conhece só uma parte e alguma coisa inevitavelmente nos escapa sempre, embora com o tempo vamos conhecendo cada vez mais e melhor - o importante é não perdermos a memória nem desprezarmos o presente por princípio - e vamos desenvolvendo as indispensáveis relações. Mas também é certo que cada um de nós procura em cada obra de arte, incluindo no cinema, ou alguma coisa que nos conforte - o que, repito, acho legítimo - ou alguma coisa que nos inquiete, nos desafie. No que me diz respeito, seduz-me o que me permite aceder ao múltiplo e variegado murmúrio do mundo, sem conflituar com o meu rumor interior, independentemente da consolação que às vezes também me proporciona e a que não sou indiferente.
                                                                              
         Mas, dir-me-ão, hoje em dia ninguém se preocupa com essas questões. O que se procura é mesmo o convívio, o divertimento, a evasão, a interactividade. Sobre a tal beleza de que falei no início, discute-se agora a estética do feio (2), que o explica, enquadra e reabilita. Mas não quero ir tão longe, ou então quero mesmo ir mais longe para dizer que a arte e a beleza não são um exclusivo das boas consciências, um refúgio e um abrigo para elas, mas algo de eminentemente partilhável, apesar de, na arte como na vida, no cinema como na literatura, na música como na pintura os gostos se discutirem, contrariamente ao que diz um antigo adágio português.
         Assim, cada um de nós tem um núcleo essencial de preferências, artísticas e do mundo da vida, que vai desenvolvendo e aperfeiçoando ao longo da vida e que é capaz de expôr e defender, em que se revê a si próprio no que considera mais importante. Aqui deixo, por isso, a lista dos dez melhores filmes da história do cinema que fiz por ocasião do centenário do dito, em 1995:
1. Aurora ("Sunrise"), de Friedrich W. Murnau (1927);
2. A Regra do Jogo ("La Règle du Jeu"), de Jean Renoir (1939);
3. A Mulher Que Viveu Duas Vezes ("Vertigo"), de Alfred Hitchcock (1958);
4. O Mundo a Seus Pés ("Citizen Kane"), de Orson Welles (1941);
5. Gertrud ("Gertrud"), de Carl Th. Dreyer (1964);
6. O Atalante ("L'Atalante"), de Jean Vigo (1934);
7. Os Contos da Lua Vaga ("Ugetsu Monogatari"), de Kenji Mizoguchi (1953);
8. A Terra ("Zemlia"), de Alexandr Dovjenko (1930);
9. Aves de Rapina ("Greed"), de Eric von Stroheim (1924);
10. Libertação ("Paisà"), de Roberto Rossellini (1946).  
      Nunca a publiquei, rarissimas vezes a partilhei e sei que hoje não faria uma lista de preferências idêntica a esta. Mas porque a fiz com data, aqui a deixo. Devo, contudo, esclarecer que estes eram os dez melhores de três listas de cem - portanto, de uma lista de trezentos - filmes, e que o 11º nessa lista, hoje talvez o 1º, era 
11. A Desaparecida ("The Searchers"), de John Ford (1956).                                                                   http://www.coffeecoffeeandmorecoffee.com/archives/deuxieme%20souffle%202.jpg                               
         Mais esclareço que me lembro muito bem de quando vi esses (e muitos outros) filmes pela primeira vez e que o de Ford foi mesmo o primeiro filme que me lembro de ter visto - portanto primeiro até neste sentido. E também esclareço que ainda hoje me vejo como uma personagem de Jean-Pierre Melville - o Gu Minda de "O Segundo Fôlego"/"Le Deuxième Souffle" (1966), por exemplo -, cineasta que, recordo, morreu cedo (1917-1973) e se confessava influenciado pelas suas primeiras leituras: Edgar Allan Poe, Jack London, Herman Melville. Por sua vez, os anos 60 foram uma década prodigiosa no cinema, durante a qual conviveram com a "nouvelle vague" e os cinemas novos os últimos filmes de grandes clássicos vindos do tempo do mudo e do início do sonoro, dos melhores filmes dos modernos do pós-guerra e os primórdios do que viria a ser a Nova Hollywood. 
       Ninguém tem que concordar comigo, como eu não tenho que concordar com mais alguém, nem nisto nem em considerar, como considero, "O Murmúrio do Mundo" o melhor romance (a palavra pode ser limitadora) português desde o início do século XXI, pela escrita brilhante, serena e depurada, que trata muito inteligentemente a coincidência no mesmo espaço e tempo de diferentes figuras e figurinhas da História de Portugal a partir do que delas permaneceu, numa construção literária vária e superior que é também um regresso em prosa a Camilo Pessanha ("E a vista sonda, reconstrui, compara,/Tantos naufrágios, perdições, destroços!") e que foi o motivo próximo de ter escrito isto
        Eu sei que há a arquitectura nos filmes da trilogia de Antonioni, o acelerador de partículas do CERN, uma poética do desejo em Ingmar Bergman, alguns filmes com interesse feitos em 3D (embora os óculos me incomodem). Sei que há a world wide web, a globalização, Charlize Theron, "O Cavalo de Turim" e "Ultrage", o último filme de Takeshi Kitano que tem tido a sua estreia em Portugal sucessivamente adiada. Mas qualquer que seja a vossa atitude perante estas e outras coisas, devem ler este livro para compreender, a partir de uma escrita literária superior, o que é a vida, o que são o espaço e o tempo declinados em português, e que de grandes acontecimentos transformadores pouco permanece após cinco séculos de história para além de dispersas ruínas, de vagas marcas, da memória e da consciência do ser no tempo, em especial na criação literária e artística, que essa sim, continua a ser essencial.                              Charlize Theron
     Mas chamo também, e muito vivamente, a atenção para "O Efeito Pigmalião - Para uma antropologia histórica dos simulacros"/"The Pygmalian Effect. From Ovid to Hitchcock", de Victor Stoichita, uma edição portuguesa KKYM de 2011 de uma edição original da Chicago University Press de 2008, que é uma excelente surpresa no mercado editorial português. De uma grande erudição, este livro vem dar razão a Truffaut sobre o cinema.
      Não quero, contudo, deixar de reproduzir aqui a melhor definição do cinema que conheço: "Os filmes são como um campo de batalha: amor, ódio, acção, violência, morte. Numa palavra: emoção." (Samuel Fuller em "Pedro, o Louco"/"Pierrot le fou", de Jean-Luc Godard, 1965)

Notas
(1) Cf. Giorgio Agamben, "Che cos'è il contemporaneo?", Nottetempo, 2008 - edição francesa "Qu'est-ce que le contemporain?", Rivages, Paris, 2008. 
(2) Cf. "O feio para além do belo", Adriana Veríssimo Serrão et alii (organização), Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2012

Um mito das origens

        Inglês de nascimento, Ridley Scott não é um grande cineasta, embora tenha sido na ficção científica que ganhou essa fama, especialmente em "Blade Runner - Perigo Iminente"/"Blade Runner" (1982), que é efectivamente um filme notável, e em "Alien - O 8º Passageiro"/"Alien" (1979), talvez o seu filme mais famoso ainda hoje, com várias sequelas. De resto, os seus filmes fora desse género não têm, em geral, nada de especial, cumprem com correcção e competência, por vezes com interesse localizado, o que significa que ele é um realizador médio de Hollywood com filmes de grande sucesso, como "Gladiador"/"Gladiator" (2000), "Hannibal" e "Cercados"/"Black Hawk Down" (2001), que chamaram a atenção para o seu nome pelos temas respectivos, pela boa realização e pelo sucesso que tiveram. As expectativas subiram com "Prometheus" (2012), falsa prequela de "Alien" e, portanto, filme de ficção científica, ainda para mais em 3D. O resultado é francamente desanimador.
             
       Partindo do mito de Prometeu que, segundo a mitologia grega, depois de ter enganado Zeus lhe terá roubado o fogo, enfrenta um novo mito da ficção científica: o de uma raça extra-terrestre (e obviamente superior), que teria, ela sim, criado o homem. Uma expedição terrestre parte para os encontrar, o que é ponto de partida comum no género. Ora o filme agarra no lado pior de "Alien" e transforma a expedição científica numa experiência paredes-meias com o filme de terror, de que assume o lado mais repulsivo, o que não tem nada de especial, e mais histérico, o que se torna francamente desagradável, até porque é destituído de características humanas e utilizado como mais um ingrediente de um receituário de sucesso, talvez hoje em dia popular.
     Se o início e pretexto narrativo, as gravuras rupestres com 35.000 anos, é promissor, os desenvolvimentos vão de dificuldade em perigo, de problemas no interior da expedição aos problemas com a raça fundadora (e o meio em que ela se move), que depois de ter criado os humanos pretenderá agora (anos 90 do século XXI) destruí-los. Não quero discutir a teoria de base subjacente ao filme, mas o próprio filme, que me surge falso como judas, falso nas emoções que pretende criar e nos meios perfeitamente gratuitos, no limite do grotesco, que utiliza para as criar. Não vou utilizar meias-tintas: há muito mais verdade e emoção no computador HAL 9000 de "2001: Uma Odisseia do Espaço"/"2001 - A Space Odissey", de Stanley Kubrick (1968), do que em qualquer dos humanos deste filme, sempre à beira do risível; o pior filme de John Carpenter (escolham) é sempre infinitamente melhor em termos cinematográficos e éticos do que esta coisa que brinca de maneira rasteira com os sentimentos, as crenças e a eventual boa-fé dos espectadores. Roman Polanski ia muito mais longe de uma maneira muito mais elegante em "A Semente do Diabo"/"Rosemary's Baby" (1968).
                    'Prometheus': Ridley Scott paints corners of 'Alien' canvas
         Não quero especular excessivamente, mas talvez a tentação do 3D convide a que filmes como este sejam feitos e tenham, eventualmente, sucesso, passando como bom divertimento e, se calhar, até como divertimento adulto junto de um público pouco exigente. Percebe-se, aliás, que o cinema americano continua a experimentar esta nova tecnologia, talvez como resposta à crise do próprio cinema originada pela concorrência, aliás desleal, da internet, e que são feitos filmes com esse pretexto para testar as suas possibilidades e limites. Mas mesmo entendido como tal, como mais uma experiência em 3D, "Prometheus" não cumpre um programa narrativo minimamente consistente e coerente, sempre à beira da exploração rasteira dos medos mais primitivos dos espectadores, com permanente recurso a uma exacerbação chocante dos motivos narrativos e visuais que raia a simples demagogia grosseira. Nenhum filme se ganha apenas pelos valores de produção ou pelos efeitos visuais, e este também não. É preciso alguma coisa mais, que este não tem porque rejeita, para evidenciar o aparente arrojo visual, com desprezo e prejuízo de regras elementares que me basta qualificar como de bom senso e bom gosto numa época que tudo se julga  permitido.
          Repito: Ridley Scott não é um grande cineasta, é um realizador de sucesso. O seu melhor filme continua a ser "Blade Runner" e o pior filme de John Carpenter será sempre melhor do que "Prometheus". Ponto final.

Mais do que experimental

         O cinema tem trabalho recentemente as suas proximidades com a pintura, quer com o aparecimento dos meios digitais, como foi o caso, notável, de "A Inglesa e o Duque"/"L'anglaise et le duc", de Eric Rohmer (2001), quer sem recurso ostensivo a eles, como aconteceu com "A Ronda da Noite"/"Nightwatching", de Peter Greenaway (2007).
         Surge agora "O Moinho e a Cruz"/"The Mill and the Cross" (2011), filme do polaco Lech Majewski que visa explicitamente recriar um quadro de Pieter Bruegel, "Subida ao Calvário"/"The Procession to Calvary" (1564), a partir de uma investigação séria de Michael Francis Gibson e com largo recurso aos cenários pintados e aos meios digitais. Para isso acompanha o pintor/Rutger Hauer durante a criação do quadro e 12 personagens deste, para o que recria a Flandres numa época, o século XVI, em que era dominada pelos espanhóis. O resultado é um filme invulgar, que permite divulgar os resultados dessa investigação de maneira séria e reconstituir a criação artística e a vida numa época de graves conflitos religiosos e políticos. Aqui reside mesmo o melhor do filme, pois não é apenas a vida na Flandres que é reconstituída, é a própria cena do Calvário que é revivida nessa época, com o invasor espanhol/católico a fazer o papel dos romanos em terra de protestantismo - a reforma protestante iniciara-se no princípio do mesmo século XVI. Assim, o mistério reconstituído da cena figurada por Pieter Bruegel torna-se, ele próprio, o mistério construído pelo filme, de que o momento mais alto é a crucificação do Filho dada do ponto de vista da Mãe/Charlotte Rampling, embora tudo o que diz respeito aos conflitos, nomeadamente religiosos, da época, e à releitura visual, plástica e pictórica, da obra pelo cinema seja muito bom.
                                  
          Este um filme que interessa em termos de história da arte e de investigação sobre ela, bem como em termos de experimentação dos meios digitais no cinema. Em termos de história da arte existe, contudo, há vários anos uma série muito interessante do canal franco-alemão Arte, "Palettes", de Alain Jaubert, que tem uma ambição muito mais vasta, a de cobrir os principais episódios da história da arte a partir do estudo aprofundado de quadros exemplares, sem o recurso à reconstituição e com o mesmo propósito de divulgação de uma investigação séria e muito bem documentada - uma série neste momento disponível em DVD -, o que aqui refiro para mostrar de novo que a televisão, no seu melhor, vai à frente do cinema.
                        Lech Majewski's The Mill and The Cross
         Cumprindo o que se propôs, "O Moinho e a Cruz" é quase insusceptível de crítica, tem o seu encanto próprio, o seu interesse certo, não se propõe ser o que não é e atinge com brio o seu propósito. De facto, por baixo da interpretação fria de um quadro, surgem-nos intactos o mistério da criação artística a partir da perspectiva do pintor e o mistério da cruz a partir de uma época posterior, dois motivos fortes que, além dos conflitos de época, justificam este filme para além do seu lado experimental. 

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Uma questão familiar


         “Uma Separação”/”Jodaeiye Nader az Simin” é a quinta longa-metragem de Asghar Farhadi, realizador, produtor e argumentista, mais um filme iraniano muito bom - recebeu este ano o Óscar para o melhor filme estrangeiro - que vem chamar a atenção para uma cinematografia importante que nunca se resumiu a Abbas Kiarostami, e hoje menos do que nunca. Conhecem-se mesmo os problemas de cineastas iranianos com o actual regime de Teerão, que levaram à prisão de alguns deles, o que suscitou um vasto movimento internacional de indignação, solidariedade e protesto.
         O filme começa por um argumento muito bem imaginado a partir do quotidiano de um casal em vias de separação, Simin/Leila Hatami e Nader/Peyman Moadi, de que nos é dado mais o ponto de vista dele, um casal dividido pela atitude face ao futuro: emigrar, como por causa da filha, Termeh/Sarina Farhadi, pretende Simin, ou ficar, como pretende Nader por causa do pai doente e de idade avançada. A situação torna-se melindrosa e equívoca quando a empregada contratada para tomar conta do idoso dependente, Razieh/Sareh Bayat, é acusada de incúria e acusa Nader de, ao empurrá-la, a ter feito cair e perder o filho de que estava grávida.
                      
       Quando a acção do filme passa para a audição por um inquiridor, tendente a apurar responsabilidades e tentar, por isso, saber o que de facto aconteceu, o drama leva a que se confrontem duas famílias, já que Hodjat/Shahab Hosseini, o marido de Razieh, resolve intervir para pedir satisfações, sem que o espectador saiba do que aconteceu senão a parte que lhe foi mostrada – e a reconstituição com os intervenientes do que aconteceu, e vimos, é muito bem dada. Momento forte, decisivo, vai ser, contudo, aquele em que Razieh recusa jurar que as coisas se passaram como ela diz, momento muito bem tratado em termos fílmicos, que põe à prova as crenças religiosas arreigadas da personagem.
           Ora esta trama, muito bem urdida a nível de argumento, é muito bem encenada a nível de realização, que constrói muito bem o filme em termos de exploração dos espaços e do trabalho dos actores. E é mesmo a realização superior, que inscreve as personagens no espaço para depois delas questionar o que sabemos, que transforma “Uma Separação” num filme que excede as suas simples premissas narrativas e acaba por ser um muito interessante questionamento sobre a verdade e a mentira, as melhores intenções à parte. De facto, com meios escassos e em espaços limitados Asghar Farhadi consegue apresentar as personagens e os conflitos de maneira inteiramente convincente e sustentada em termos fílmicos, o que torna o filme num pequeno-grande achado, perfeito em termos dramáticos e em termos formais, com uma resolução plena de interesse, novidade e frescura, segundo a qual nem tudo o que parece é como parece ser, porque os indivíduos são, em si mesmos, seres complexos e não os simples desenhos  convencionais que querem aparentar ser. Por isso a verdade advém da parte da única personagem que, em toda a sua complexidade, a podia fazer aparecer, posto o que a última palavra do filme caberá à filha do casal em separação.
                     
            Deste modo, trabalhando sobre o cliché e contra o cliché, “Uma Separação” cumpre com um brio inesperado, invulgar, um programa narrativo simples, com uma realização superior sem arrebiques e actores notáveis mas com um segundo grau de leitura muito importante, já que encena de modo muito feliz as diferentes concepções da vida das diferentes personagens, representativas de diferentes atitudes relevantes presentes numa sociedade fechada como é na actualidade a iraniana, o que merece especial atenção e torna este filme ainda mais interessante e recomendável. Assim se demonstra mais uma vez como o cinema pode ser, tal como a arte, a consciência de uma sociedade, a consciência do mundo e do tempo.

Perdidos


         De Kelly Reichardt, de quem conhecíamos “Old Joy” (2006) e “Wendy & Lucy” (2008), estrou entre nós “O Atalho”/”Meek’s Cutoff” (2010), que é um filme extremamente interessante e muito bom.
            Com argumento de Jonathan Raymond, situa-se nas terras perdidas do Oregon durante o século XIX e acompanha uma caravana de pioneiros perdida no deserto, entregue primeiro nas mãos de um guia de que os seus membros desconfiam, Stephen Meek/Bruce Greenwood, depois nas de um índio/Rod Rodeaux. Para tomarem decisões, os Tetherow, os Galety e os White têm que discutir entre si e uns com os outros para decidir que rumo tomar, em quem confiar.
                               
         Situado em terras desabitadas, agrestes e inóspitas, o filme explora muito bem esse mesmo espaço, em que as personagens surgem frequentemente a grande distância, numa linha predominantemente horizontal durante a primeira parte do filme, que se torna mais irregular, montanhosa e rochosa, na segunda parte. Mas Kelly Reichardt é uma cineasta de grande sabedoria, que explora a distância a que filma em planos muito gerais com grande acerto, para dar com precisão o desnorte da caravana, explora o espaço do plano e o espaço fora de campo, utiliza movimentos de câmara apropriados e elegantes e tem uma grande precisão na iluminação diurna, que dá lugar a planos de elevada composição visual e pictórica, e nocturna, em que, à luz da lareira, do candeeiro ou da lua, surpreende com noites primordiais.
            Os conflitos que se repetem, primeiro com o guia, depois com ele e com o índio, entre ele e o índio, são sempre muito bem encenados em termos fílmicos, enquanto as personagens estão caracterizadas com grande rigor nos rostos, no vestuário, nos gestos e movimentos. E são essas personagens que, ora aproximando-se, ora afastando-se, ora correndo lateralmente vão definir o quadro humano de um filme de estranha beleza, que nos prende no seu movimento mínimo desde o primeiro encontro com o índio, na captura dele, que não é mostrada, na queda pela encosta da carroça que se solta, no confronto de Emily Tetherow/Michelle Williams com o guia quando este quer matar o índio.
                        
           Sabendo sempre o que e quem filmar, e de onde filmar, Kelly Reichardt constrói o seu filme com base em pequenos apontamentos reveladores, em diálogos esclarecedores, como o que discute as diferenças entre os homens e as mulheres, e em diálogos impossíveis, como os que são tentados com o índio. Por sua vez, a presença de ruídos, como o das rodas das carroças, e da escassa mas muito bem utilizada música vem aumentar o clima de isolamento e solidão de um grupo humano à deriva mas que não deixa de se mostrar fiel às suas crenças, aos lugares civilizados de que partiu e ao destino que pretende alcançar.
            Produzido num quadro de cinema independente, “O Atalho” de Kelly Reichardt é um filme de uma enorme beleza na sua austera gestão dos meios disponíveis e de uma enorme expressividade, que além do mais reúne os quatro elementos, a terra, o ar, a água, que a caravana procura, e o fogo, o jovem Jimmy White/Tommy Nelson, os animais e a prodigiosa paisagem desértica do Oregon. Com um grupo permanentemente ameaçado de um desnorte que não consegue ultrapassar, apesar de mantidos a maior parte do tempo à distância da caravana, e por isso mesmo, somos levados a, mantendo sempre a noção do espaço, apreciar o esforço épico daqueles pioneiros na sua luta elementar com a natureza e as adversidades, pela sua própria sobrevivência.
                      
            Deixados à deriva no final, com a partida do índio, é o vazio da solidão que os acolhe, e aí somos deixados, na vasta terra desértica, num muito bem medido movimento de abandono, pessimismo e sem qualquer comentário, já que as imagens falam por si mesmas. O desespero e a solidão dados plenamente e em surdina.
           No final aberto de "O Atalho" de Kelly Reichardt ressoa o final de "Procurem Abrigo"/"Take Shelter", de Bill Nichols (2011), o que diz bem do enorme interesse destes dois novos nomes maiores do novo cinema independente americano, em cujos filmes a incerteza é um ponto comum de enorme significado (ver " A tempestade", 24 de Maio).