“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 31 de dezembro de 2016

Palavra final / The End

    Após cinco anos de publicação ininterrupta num modelo que privilegiou o cinema sem esquecer as outras artes e a poesia, é tempo de pôr fim a este blog segundo o seu formato e modelo estabelecido. Aqui foram publicadas com esta 679 entradas, por regra pautadas por um princípio de actualidade que, preterido pela pertinência, nem sempre foi seguido.
   Os resultados, que se traduzem em mais de 93.000 visitas, deixam-me satisfeito e por eles devo um agradecimento a todos os meus leitores e aos seguidores do blog em especial.
   Embora possa considerar que o seu modelo não está esgotado na sua utilização casuística, Some like it cool acaba aqui. Apesar disso ele continuará permanentemente acessível na sua integralidade no sítio onde sempre esteve: aqui. Onde poderão continuar a lê-lo, consultá-lo e deixar os vossos comentários. Nele ficaram expressos critérios, gostos e preferências que constituem uma boa "impressão digital" do seu autor.
   Acontece, como curiosidade, que comecei a publicar sobre cinema em 1986, há exactamente 30 anos, com um artigo sobre os dois primeiros filmes de Emir Kusturica, e cumpro o final deste ciclo escrevendo sobre o seu mais recente filme. No dicionário dos cineastas foi ele o kafkiano K que me calhou em simetria.
    
   Do mesmo autor surgirá no próximo ano um outro blog, Some like it hot, que fará questão em se apresentar logo no seu início, previsto para os primeiros meses de 2017 em
http://carlosmsmeloferreira.blogspot.pt/  
                                                   
                                                  Feliz Ano Novo para todos.

O falcão e a serpente

   Estes são dois animais que fazem parte do bestiário de "Na Via Láctea"/"On the Milky Road", o mais recente filme de Emir Kusturica (2016), passado durante a guerra que acabou por separar em países soberanos aquilo que tinha sido após as guerras mundiais do Século XX a Jugoslávia. Este é, pois, um filme, um grande filme sobre uma guerra que, perante a posterior sucessão de outras, tendemos a esquecer já, mas que foi aquela que, terrível, tocou ao cineasta, natural de Sarajevo.
                     On The Milkey Road Na mlijecnom
    Dando vasão ao seu talento vulcânico, Emir Kusturica constrói um filme sobre o caos em que um pastor interpretado por si próprio acaba por fugir, depois do fim da guerra, com uma refugiada italiana, Mónica Bellucci, deixando assim para trás os dois irmãos que lhes estavam destinados para casamento, uma vizinha e amiga do primeiro e o irmão desta, militar regressado do Afeganistão.
   O que no cineasta tem sido identificado como "realismo mágico" com traços surrealistas ganha ou recupera aqui uma nova dinâmica explosiva, situando o filme na Krajina, efémera "república sérvia" encravada na Croácia onde decorreram crimes atrozes durante a guerra, com cuja memória, incluindo a da intervenção das forças da ONU, ele assim ajusta contas. E aqui há que perceber a posição pró-sérvia de Kusturica.
                     On the Milky Road il nuovo film di Emir Kusturica con Monica Bellucci
  Quem esperasse um Emir Kusturica cauteloso e equilibrado, como surgia em "Promessas"/"Zavet", 2007 (ver "Uma provocação de Kusturica", de 18 de Dezembro de 2016), sem dúvida um filme menor, ficará surpreendido com o seu regresso ao melhor do seu talento e da sua obra, magmática e proteiforme nos seus melhores filmes. 
    Com a presença elementar da natureza - esplêndida a mancha vermelha de sangue na água -, planos assombrosos - o travelling para cima que termina sobre o abismo -, um tratamento vívido da guerra e dos seus horrores até ao final, soberbo, com os protagonistas acossados no meio de um rebanho cercado por um campo de minas, e um trabalho com os actores, em que se inclui, em que puxa pelo seu melhor, o cineasta, que volta a trabalhar sobre argumento seu, dá aqui de novo a justa medida do seu enorme talento.
                     RkCNt
      Só no epílogo, o pastor que interpreta é esmagado por um movimento ascendente de câmara enquanto arruma pedras no solo. O amor pelo qual lutara não tinha vencido mas ele não fora destruído. "Na Via Láctea" é um dos grandes filmes de um grande cineasta e um dos melhores filmes do ano. 

     Nota
   Sobre o cineasta ver, por exemplo, "Le lexique subjectif d'Emir Kusturica - Portrait d'un realisateur", de Matthieu Dhennin (Lausanne: L'Âge d'Homme, 2006).

Os filmes de 2016

  Num annus horribilis para a música, com a morte de David Bowie (1947-2016), Prince (1958-2016), Leonard Cohen (1934-2016) e George Michael (1963-2016), para além das mortes no cinema aqui assinaladas  - a de Alberto Seixas Santos (1936-2016) no cinema português - é de destacar a de Gene Wilder (1933-2016), actor, argumentista e realizador americano afamado nos anos 70/80 na comédia.
   Com um panorama de continuada banalização do cinema, a minha escolha dos melhores filmes do ano, com a precaução de avisar como costumo fazer que não vi tudo, não é difícil mantendo-se inteiramente pessoal. E coloco à cabeça um filme que ainda não teve estreia comercial entre nós mas vi este ano.
                     Ta'ang
   1. Ta'ang, Wang Bing (2016);
   2. À Sombra das Mulheres/L'Ombre des femmes, Philippe Garrel (2015);
   3. A Academia das Musas/La academia de las musas, José Luis Guerin  (2015);
   4. O Filho de Saul/Saul fia, László Nemes (2015);
   5. Cemitério do Esplendor/Rak ti Khon Kaen, Apichatpong Weerasethakul (2015);
   6. Sítio certo, hora errada/Ji-geum-eun-mat-go-geu-ddae-neun-teul-li-da, Hong Sang-soo (2015);
   7. Se as Montanhas se Afastam/Shan he gu ren, Jia Zhang-ke (2015);  
   8. Na Via Láctea/On the Milky Road, Emir Kusturica (2016);
   9. Ela/Elle, Paul Verhoeven (2016);
   10. Os Oito Odiados/The Hateful Eight, Quentin Tarantino (2015).
   Espero que, como de costume, não concordem comigo e façam cada um a sua própria escolha.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Os irmãos Waldemar

     Na saga sueca "L'héritage empoisonné"/"Tjockare än vatten" (2014 para a primeira época), são três os filhos e herdeiros de Anna-Lisa Waldemar/Stina Eckblad: Oskar/Joel Spira, Lasse/Björn Bengtsson  e Jonna/Aliette Opheim. O pai, Mauritz Waldemar/Fredrik Hammar, desapareceu e a herança consta, envenenada porque condicionada ao bom entendimento entre os três, da pensão com o nome da família.
    Com argumento de Henrik Jansson-Schweizer, Niklas Rockström e Morgan Jensen, realização de diferentes nomes entre os quais Anders Engström, fotografia de diferentes directores entre os quais Nille Leander e música de Fläskkvartetten, passa-se numa ilha e só se torna policial progressivamente e a partir do ponto de vista dos suspeitos, no que reside a sua originalidade maior. 
                           
  Nas paisagens belíssimas muito bem exploradas do arquipélago de Âland, na Finlândia, declaram-se e desenvolvem-se paixões primitivas, emerge o sentimento de culpa, revela-se a traição e um grupo amador ensaia e representa "O Ginjal", de Anton Tchékhov, com a participação de Joanna, que é actriz. "L'héritage empoisonné" tem a melhor qualidade da televisão sueca e do policial escandinavo, às voltas com a antropologia social e humana.
   Quinta-feira à noite no Arte, que sem ter ainda concluído a primeira época anuncia já a segunda.

Alguns livros de 2016

     Num ano de abundante publicação de livros portugueses sobre cinema e áreas afins não é fácil dar conta de tudo em pouco espaço. Faço o possível por destacar o mais importante, observando que este ano foi particularmente fértil em livros sobre a escrita do cinema e o  argumento.
    Na Sistema Solar/Documenta assinalo a publicação dos excelentes "A escrita do cinema: Ensaios", com organização de Clara Rowland e José Bértolo (ainda com data de 2015), e já no final do ano "Fotogramas - Ensaios sobre fotografia", com coordenação e organização de Margarida Medeiros. De Sérgio Dias Branco saiu nesta editora "Por Dentro das Imagens - Obras de cinema. Ideias de cinema", que inclui textos anteriormente publicados do autor, e de Tomás Maia "O Olho Divino - Beckett e o Cinema", que resgata do esquecimento uma relação muito importante lembrada por Gilled Deleuze em "A Imagem-Movimento". Ainda na mesma editora, saiu de Sousa Dias "O riso de Mozart - música pintura cinema literatura" e este autor é responsável pela nova tradução portuguesa de "A Imagem-Tempo", de Gilles Deleuze, publicada ainda em 2015.
                                       Imagem da capa                                  
   Nas Edições Colibri destaco "Cinema El dorado - cinema e modernidade", de Fernando Guimarães, que apresenta, refundidos, os textos de artigos e comunicações do autor, "Mulheres Fatais, Detetives Solitários e Criminosos Loucos" e a 2ª edição do "Manual de Guionismo", ambos de João de Mancelos, e ainda com data de 2015 "Cem Dias À Sombra da Torre de Babel do Século XXI - Novas Crónicas Pedagógicas", de Christopher Damien Auretta, um autor erudito que não se esquece neste seu novo livro de voltar a dedicar um largo espaço ao cinema. De António Júlio Rebelo saiu também nesta mesma editora "A Maldade no Cinema de Ingmar Bergman", que adapta e acrescenta um trabalho académico.
   Nas Edições 70 saíram, já no final do ano, "O Trabalho no Ecrã. Memórias e Identidades Sociais Através do Cinema", com coordenação de Frédéric Vidal  e Luísa Veloso, e "Literatura e Cinema. Vergílio Ferreira e o Espaço do Indizível", de Luís Miguel Cardoso. Na Bertrand foi publicado "Como Ver Um Filme", de David Thomson, e na Objectiva "Woody Allen, O Último Génio", de Natalio Grueso.
                                            
   Na Texto & Grafia saíram "O Exercício do Argumento", de Jean-Claude Carrière e Pascal Bonitzer, um livro já antigo (1990) mas muito bom, "O Cinema Pornográfico", de Julian Sarbois, oportuno, e a 3ª edição de "A Audiovisão - Som e Imagem no Cinema", de Michel Chion. Na Cotovia saiu "Falso Movimento: Ensaios sobre escrita e cinema", com organização de Clara Rowland e Tom Conley. A Angelus Novus publicou "O Cinema que Faz Escrever: textos críticos", uma selecção de escritos do francês Serge Daney (1944-1992).
   De Antóno Pedro Vasconcelos saiu "A Companhia dos Livros" (Lisboa: Sociedade Portuguesa de Autores Edições, 2016) e o livro de conversas com José Jorge Letria "Um cineasta condenado a ser livre" (Lisboa: Guerra & Paz, 2016). De Jorge Leitão Ramos foi publicado "José Fonseca e Costa - Um Africano Sedutor" (Lisboa: Guerra & Paz, 2016).
                                        FAMÍLIA AEMINIUM by Pedro Costa and Rui Chafes
    A Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema dedicou catálogos valiosos a Henrique Espírito Santo, José Fonseca e Costa (1933-2015) e Alberto Seixas Santos (1936-2016), no prosseguimento de uma louvável  linha editorial voltada para o cinema português que ameaça tornar-se linha única, o que não é saudável. Pelo seu mérito especial devo aqui mencionar "Pensar História da Arte - Estudos de Homenagem a José-Augusto França", com coordenação de Pedro Flor (Lisboa: Esfera do Caos, 2016), que colige as principais comunicações ao IV Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Historiadores da Arte (Novembro de 2012), e "Teoria do Acto Icónico", de Horst Bredekamp (Lisboa: KKYM, 2015).
   Destaque para os três volumes de "You're Living For Nothing Now", um belo projecto de fotografia de André Príncipe (Pierre von Kleist editions, 2016). Mas o livro do ano foi para mim "Família Aeminium", de Pedro Costa e Rui Chafes (Pierre von Kleist editions, 2016), um livro belo e sombrio sobre a exposição de ambos com o mesmo título (ver "O espaço e o seu uso", de 14 de Dezembro de 2015). Do primeiro saiu também o livro "Cavalo Dinheiro" que acompanha a edição dvd do filme. Sobre ambos ver "Relações fortes", de 19 de Dezembro de 2016.

Debbie Reynolds (1932-2016)

    A mãe de Carrie Fisher não resistiu ao desgosto da morte da filha e partiu no dia seguinte, ela que tinha tido o seu tempo de fama e glória nos anos 50 do século XX em que disputou com Doris Day o maior destaque nas interpretações femininas no musical e na comédia romântica.
                     
   Foi em "Serenata à Chuva"/"Singin' in the Rain", de Stanley Donen e Gene Kelly (1952), que atingiu maior notoriede, ao lado deste e de Donald O'Connor num musical de referência, mas voltou a trabalhar com Donen em "Casanova Júnior"/"Give a Girl a Break" (1953) e multiplicou-se durante os anos 50 em filmes de Frank Tashlin, Norman Taurog, Richard Brooks e Blake Edwards ("A Ingénua e o Solteirão"/"This Happy Feeling", 1958), entre outros.
   Em 1956 tinha contracenado em "Vem a Meus Braços"/"Bundle of Joy", de Norman Taurog, com Eddie Fisher (1928-2010), com quem tinha casado no ano anterior e de quem teve Todd Fisher e Carrie Fisher. E a sua carreira prosseguiu com sucesso nos anos 60, passando depois a trabalhar sobretudo para a televisão. Aqui a recordo como grande figura do cinema clássico americano na sua fase final.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Contos de Verão

   "Os Belos dias de Aranjuez"/"Le beaux jours d'Aranjuez", de Wim Wenders (2016), baseado em peça teatral de Peter Handke, é um filme centrado nos diálogos entre entre um homem e uma mulher, Reda Kateb e Sophie Semin, num jardim de Verão, diálogos supostamente sugeridos por um escritor, Jens Harser, que escreve dentro de casa.
                     
   Perante a câmara, que outro manteria estática, o cineasta multiplica os floreados movimentos de câmara por causa do 3D que aqui, depois de "Pina" (2011) volta a utilizar. Embora perceba penso que nada adianta o processo e a mobilidade da câmara quando o que está em causa é um diálogo, fastidioso, com alguns momentos em que evoca os filmes de Ingmar Bergman e de Alain Resnais quando eram novos e com remissões cinematográficas óbvias, talvez inacessíveis aos espectadores imbecilizados em tempos de pós-verdade.
   Sem surpresas, o filme evolui ao sabor das palavras que estabelecem variações sobre o pico do Verão e sobre o amor no passado que resultariam melhor sem o 3D e com a câmara fixa, quando assim o filme funciona para suposto espanto dos espectadores supostamente encantados, que perdem os diálogos por causa das imagens vistosas. Mas percebe-se que para o cineasta esteja aqui fundamentalmente em causa prosseguir a sua experimentação com uma nova tecnologia do cinema, o que é respeitável.
                      os belos dias de aranjuez leffest
   Por mim nada adianta, antes se perde, pese embora a relação com o escritor que ora segue ora antecipa as palavras, sem outro derivativo que não seja a música ocasional, o jardineiro/Peter Handke, um ou outro passante e a presença física e vocal de Nick Cave.
  Com um final resolvido com facilidade, em "Os Belos Dias de Aranjuez" passa por proeza técnica e experimentação o que se resolveria melhor sem tanto querer dar nas vistas. Sobre Wim Wenders, que deu o seu melhor nos seus filmes iniciais, até "O Estado da Coisas"/"Der Stand der Dinke" (1982) quando muito, ver "O poder da imagem", de 12 de Abril de 2015.   

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

O nº 100

   Saiu este Inverno o nº 100 de Trafic révue de cinéma (Paris: P.O.L., 2016), uma revista de referência criada em  1991 por Serge Daney (1944-1992) e Jean-Claude Biette (1942-2003).
   Trata-se de facto de mais do que uma simples referência, pois é o local em que cabe uma alargada e exigente análise teórica e crítica do melhor, tantas vezes também o mais esquecido, da história centenária do cinema, que tem regularmente incluído o cinema português.  
                                                                
  Como o nº 50, este é número especial, temático e comemorativo, com colaboração especialmente cuidada e numerosa, que inclui estudos de autores de referência sobre filmes, cineastas e autores de referência, sobre temas e textos de referência, com a qualidade e a pertinência crítica e reflexiva a que a revista nos habituou. Sobre "o ecrã, o escrito" é sempre sobre o cinema.
   Ao respectivo comité de direcção, actualmente composto por Raymond Bellour, Sylvie Pierre Ulmann, Patrice Rollet e Marcos Uzal, ao seu director, Paul Otchakovsky-Laurens e a todos os seus colaboradores os meus sinceros parabéns pela longevidade da Trafic e por este número em especial, com o incentivo a que prossigam sempre com a mesma qualidade, exigência e rigor, neste momento incomparáveis em revistas de cinema de periodicidade trimestral.  
   A propósito deste número, que comemora também o seu 25º aniversário, a Trafic estará na Cinemateca Francesa, 51 rue de Bercy, em Paris, no dia 9 de Janeiro de 2017 para uma sessão especial, como se pode ver aqui
http://www.cinematheque.fr/cycle/seances-speciales-74.html

Carrie Fisher (1956/2016)

   Foi acima de tudo a Princesa Leia Organa do nosso encantamento na saga "Guerra das Estrelas"/"Stars War", criada em 1977 por George Lucas, nos seus três primeiros e dois mais recentes filmes, o último ainda por estrear. Contracenando com Harrison Ford, Mark Hamill e Alec Guiness, aí ela foi a estrela feminina do seu tempo e de várias gerações.                         
                    Carrie Fisher as Princess Leia in a gold bikini
  Mas não se limitou a isso, pois trabalhou também, por exemplo, com Woody Allen em "Ana e as Suas irmãs"/"Hannah and Her Sisters" (1986) e David Cronenberg em "Mapas para as Estrelas"/"Maps to the Stars" (2014). O seu desaparecimento precoce priva-nos do convívio no cinema com uma grande actriz que se tornou mítica e era também uma mulher admirável.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Em quadro teatral

      "O Vendedor"/"Forushande", o mais recente filme de Asqar Farhadi (2016), volta a encerrar um problema familiar com resolução dilemática, como vem sucedendo na obra deste cineasta iraniano.
                     
       Enquadrado pela representação teatral de "Morte de um Caixeiro Viajante", de Arthur Miller, em que o casal protagonista, Emad Etesami/Shahab Hosseini e Rana Etesami/Taarneh Alidoosti, participa, o filme envolve o assalto à nova casa deles e a agressão de que nessa ocasião Rana é vítima. Encontrar o culpado é a principal preocupação de Emad, enquanto ela lida com a difícil situação para si própria resultante.
      A questão está bem resolvida com a identificação sucessiva do dono e do condutor da carrinha naquele dia, e o que então se passa constitui a parte decisiva do filme em que o agressor, para esclarecer o que se passou, e a agredida são colocados perante dilemas diferentes, enquanto um resto, um resíduo final dilemático fica para ser resolvido por Emad.
                     
    Este "O Vendedor" resolve-se a partir do argumento do próprio cineasta, dos actores e da realização, não ingénua e sem pressas que prolonga o interesse enquanto alarga e alonga o próprio filme e os seus diferentes mistérios. Dessa forma acontece entre as personagens aquilo que tem de acontecer, como se sem intervenção exterior, como pura adveniência de diferentes verdades em cada uma delas.
     O cineasta volta a entregar-nos um filme exemplar em que são postas em confronto diversas responsabilidades, diferentes pontos de vista e diferentes propósitos. A mediação teatral envolve um certo distanciamento sem anular a proximidade com o conflito encenado. Sobre Asqar Farhadi ver "Uma questão familiar", de 5 de Julho de 2012, e "A vida e a morte", de 31 de Dezembro de 2013.

Fazer ler

    Seguindo-se a "O cinema da poesia" (Sistema Solar/Documenta, 2012), o livro de Rosa Maria Martelo "Os nomes da obra - Herbero Helder ou o poema contínuo" (Lisboa: Sistema Solar/Documenta, 2016) prossegue o rumo temático do anterior num estudo alargado aplicado a Herberto Helder. Que eu saiba, o primeiro depois da morte do poeta após o nº36/37 da revista Relâmpago (Abril/Outubro 2015).
   Trata-se de uma temática que me diz muito: pelo enfoque e pelo poeta. A autora, porém, agarra-se à obra herbertiana com um fôlego de exegeta, com um projecto hermenêutico cerrado que envolve a comparação de textos, de poemas e de livros, que abre caminho para outros estudos futuros.
    Por aquilo que aqui nos dá Rosa Maria Martelo é credora do meu maior apreço como estudiosa e investigadora exigente. A sua leitura sistematiza, arruma e reflecte sobre uma obra magmática e proteiforme, instável e mutável, que se conta entre o mais importante que foi produzido pela poesia portuguesa ao longo da sua história.  
                                    
  O estudo exaustivo do que sai e do que entra de edição para edição, entre as recolhas de poesia toda ou de poemas completos como tal intitulados, passando pelo ofício cantante e as súmulas e abrangendo, embora em menor medida, os passos em volta e photomathom & vox, o que varia ao longo do tempo na escrita do poeta, o que ele subtrai e acrescenta está aqui encetado da melhor maneira, séria e rigorosa, que vai de par com a chamada de atenção para a relação directa dele com o cinema e  para as imagens verbais do seu "cinema da poesia".
  Retomando textos já publicados, aqui amplamente reformulados e articulados, sem se desviar do seu rumo a Autora desfaz en passant ideias menos favoráveis que surgiram em certa "crítica" a propósito dos seus últimos livros. A própria Rosa Maria Martelo se encarregará, espero, de prosseguir esta espécie de "poema contínuo" analítico e reflexivo sobre o texto poético deste poeta radicalmente diferente de todos os outros.
  Sobre Herberto Helder ver "Pessoa e o cinema", de 21 de Outubro de 2012, "Pontifex Maximus", de 30 de Maio de 2013, e "Obscuro sempre", de 27 de Março de 2015.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Diante da imagem

   Luzes, pequenas luzes no escuro atravessam lentamente um espaço negro na imagem num ecrã pequeno. Pontos luminosos indeterminados quando vistos à distância, como se fossem peixes no mar. Aproximo-me devagar e as coisas revelam-se com nitidez: são lanternas na cabeça de gente que se move no escuro. Não tão lentamente como me tinha parecido, pelo contrário.
   O que será que se movimenta no escuro em volta, no pequeno ecrã e na sala, pergunto-me.
   "A 5100 metros (16.700 ft), o extenso acampamento mineiro Andino em La Rinconada, no canto sudeste do Perú, pertíssimo da fronteira com a Bolívia, é o local mais elevado habitado no globo terrestre, albergando uma população de cerca de 30.000 indivíduos, na sua maioria desesperadamente pobres."
   Sabendo-o agora pergunto-me como será viver a tal altitude e percebo que aquela escuridão em volta é como uma pele que envolve ossos, vísceras da terra, que se acomodam a tudo em desconforto e grande privação: os seres que se movem sobre um solo irregular .
   "O plano fixo, sem som, filmado em La Compuerta, um dos principais acessos às bocas das minas, é uma assombrosa e misteriosa realidade etnográfica, onde um fluxo constante de mineiros, comerciantes e famílias, irrompem pela escuridão, desaparecendo no dentro e fora de campo. Uma ilusão que leva os homens à autodestruição, movidos pelos mesmos interesses, utilizando as mesmas ferramentas e os mesmos meios dos tempos antigos na contemporaneidade."
    As luzes e os vultos, os seres sobre cujos capacetes estão as luzes aparecem e desaparecem por todos os lados, numa caminhada sem fim que se renova, recomeça sempre como se voltasse ao princípio mas é sempre nova: em frente, subindo e descendo, surgindo para logo a seguir desaparecer.
                       
   "Mount Ananea (5853)" é uma instalação de Salomé Lamas, escrita, fotografada e realizada por ela para a Fundação de Serralves (2015), até 9 de Fevereiro de 2017 patente na Galeria Miguel Nabinho, em Lisboa, que contém excertos rodados "durante a fase de pesquisa e desenvolvimento (Setembro/Outubro 2014) da longa-metragem "Eldorado XXI" (2016)", Grande Prémio do Porto/Post/Doc de 2016, com estreia em Portugal prevista para Janeiro de 2017 - uma boa notícia.
   O plano fixo, sem som, faz-nos questionar sobre um formigar misterioso, funcionando como enigma, desafio lançado no presente ao espectador no seu conforto, também intelectual e moral. "Quase todas as minas e os mineiros lá são 'informais', um termo que os mais críticos consideram um eufemismo para ilegal. (Outros) preferem o termo 'artesanal'. As minas, ou o que quer que lhes chamemos, são pequenas, numerosas, não-regulamentadas, e, regra geral, imensamente inseguras." (William Finnegan in The New Yorker, 20 de Abril de 2015).     
   O efeito de concentração no espaço e de movimento contínuo desenrola-se  ao longo de 20 minutos, vídeo, HD transferido para  filme 16mm, cor, sem som, em loop, num ecrã pequeno, em que a concentração espacial, o movimento contínuo, o contraste das luzes que atravessam as trevas e percorrem o espaço impressionam e desconcertam, primeiro, cativam depois.  
   Que fazer com este filme em que passam diante de nós mineiros, comerciantes e famílias não identificados nem individualizados que não seja reconhecer a beleza de tudo e tentar descobrir um sentido onde ele não existe de forma patente. São formas, cores, luzes e muitas sombras com gente lá dentro. Sem narrativa, o efeito obtido é sobretudo estético. Com o conhecimento do que está em causa é também económico, social e político além de etnográfico.
   "A maioria (dos trabalhadores) não tem salários, muito menos benefícios, mas trabalham com um antigo sistema de trabalho chamado cachorreo. Este sistema é normalmente descrito como trinta dias de trabalho não remunerado, seguidos de um dia frenético em que os trabalhadores ficam com o ouro que conseguirem recolher para eles mesmos." (William Finnegan, citado).
   "Mount Ananea (5853)" está agora em Lisboa, o que me dá muito jeito porque não a vi em Serralves. Claro que Salomé Lamas é uma artista visual, performer e cineasta de quem toda gente fala, que está na moda, pelo que aqui se vê justificadamente, e vos interessa conhecer. Já responsável pelo documentário "Terra de Ninguém" (2012) e inúmeros outros trabalhos de performance e instalação, Salomé Lamas é muito definidamente um nome a reter e a seguir com toda a atenção.