“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Vasco Graça Moura (1942-2014)

      Um grande senhor da cultura portuguesa em poesia, ficção e ensaio, que aqui recordo e a
cuja memória na despedida presto sentida homenagem:  
                              
                                      
          "é uma porção de terra rodeada
           de amor por todos os lados?
           uma porção de amor rodeada
           de terra por todos os lados?
           rodeada de água? 
           rodeada?
           ah, todo o amor é árduo a humano trato
           e se interroga e ninguém
           é uma ilha
           onde se caça. apenas
           se conhece asperamente
           seu rodeado mapa de coral. apenas
           contra a morte
           a ilha, a redondilha."

           Vasco Graça Moura, o atoll dos amores, in "Os Rostos Comunicantes", 1984.

Outro filme histórico

    Também na edição deste ano do Indie Lisboa pude assistir pela primeira vez a "3X3D", de Peter Greenaway, Edgar Pêra e Jean-Luc Godard (2013), uma segunda encomenda da Capital Europeia da Cultura - Guimarães 2012, que como a anterior (ver "Um filme histórico", 15 de Março de 2014) dá conta do investimento deste importante evento cultural na área do cinema. E considero este um filme histórico por ser a primeira experiência em 3D dos cineastas convidados.  
                     3X3D peter greenaway 2
    Quero começar por observar que a sala do Campo Pequeno em que o filme passou me pareceu pequena para o processo, gerando mesmo ocasionais problemas com a projecção, especialmente sensíveis no primeiro segmento, o de Peter Greenaway, justamente o mais inventivo em termos visuais por sobrepor imagens diferentes, e também textos escritos, distribuídos por diferentes zonas do ecrã. Ora "Just in Time" é um mergulho assombroso na história da própria cidade de Guimarães e na de Portugal, feito em termos de grande imaginação e criatividade visual e sonora numa duração muito breve. Aí nos ressurge um grande cineasta no seu melhor, justificando inteiramente o uso do 3D, em que a sua é mesmo uma das melhores  experiências que conheço.
                      3x3d
      Edgar Pêra faz uma brincadeira visual muito aproprida e muito ao seu estilo, em que, a preto e branco e brincando com a cor, revisita a história do cinema e constrói a história do seu espectador - o seu segmento intitula-se "Cinesapiens". Ele é um dos mais desembaraçados e inventivos cineastas portugueses da actualidade e faz um uso inventivo e divertido do 3D num espaço a maior parte do tempo fechado, com recurso ao seu actor-fétiche, Nuno Melo. Que eu saiba, este é o primeiro trabalho neste formato feito por um cineasta português, e ninguém melhor do que Edgar Pêra o poderia fazer, sempre com a sua irreverência de dizer coisas sérias com ar de brincadeira.
    O segmento de Jean-Luc Godard, um cineasta lendário, constrói-se como uma espécie de apostilha ao seu "Histoire(s) du Cinéma" (1988-1998), pois faz larga alusão cruzada à história do cinema e à história do próprio Século XX. Se o 3D não lhe é indispensável, com grande talento o cineasta usa-o de forma experimental e por vezes conseguida sobre um pano de fundo de "Les 3 désastres", como de intitula o seu segmento. E ver hoje aqules cineastas e aqueles excertos de filmes é memorável e histórico, em 3D ou sem ele.
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     Foi para mim, em qualquer caso, uma descoberta ver como estes três cineastas trataram o 3D, pelo menos no caso de Peter Greenaway de uma forma inteiramente nova. Felicito, pois, João Lopes, responsável pela programação da Capital Europeia da Cultura - Guimarães 2012 na área do cinema, e o produtor Rodrigo Areias pelos filmes que proporcionaram, e faço votos para que também este filme tenha a divulgação que sem dúvida merece.

O sonho inquieto

     Durante o Indie Lisboa 2014 pude assistir a dois filmes de realizadores asiáticos que particularmente admiro: "Blind Detective"/"Man Tam", de Johnnie To (2013), que é um divertimento inteligente de um grande cineasta (ver "Um outro samurai", 7 de Fevereiro de 2013), e "Nobody's Daughter Haewon"/"Nugu-ui Ttal-do Anin Haewon", de Hong Sang-soo (2013), que é um grande filme de um grande cineasta (ver "Pintor de nuvens", 4 de Novembro de 2012, e "Três vezes Anne", 10 de Junho de 2013).
                       
       Com assombrosa subtileza, o cineasta sul-coreano constrói o seu filme como sonho da sua jovem personagem, e em termos narrativos e fílmicos desdobra-o em duplicações a partir da sequência central, dada em plano fixo muito longo, do jantar da protagonista com os colegas e o professor com quem teve um caso, situada no final do primeiro terço do filme: duas visitas ao forte, que ambas se desenrolam em poucos planos longos e ambas acabam com o mesmo plano longo do professor sentado, visto de costas e em lágrimas, mas também um segundo professor que trabalha na América, em San Diego, e que pede a Haewon que o acompanhe.
                      haewon
    Num filme que começara sob a égide da figura feminina, a mãe de Haewon de partida para o Canadá, e com a flagrante ausência da figura paterna, o homem mais velho que o professor é assume explicitamente a função e o lugar da figura paterna omitida, com extrema, exacta pertinência dada na duplicação de figuras.
    De construção rigorosa, muito inteligente e muito segura, "Nobody's Daughter Haewon" é uma verdadeira pérola na obra do mais importante cineasta sul-coreano da actualidade, com uma permanente atenção aos pormenores quer na imagem quer nos diálogos (e o argumento volta a ser do próprio cineasta) e um recorrente apelo a cumplicidades distantes: Jane Birkin no início, conversando com a protagonista sobre a sua filha, Charllote Gainsbourg, Martin Scorsese ao telefone com o professor que trabalha na América.
                     
        Para completar o quadro, Haewon é aluna de uma escola de cinema e o professor é tratado também por "realizador" durante o jantar com os alunos, além do que se repete a cena no exterior da livraria e ao longo de todo o filme são evidenciados na imagem os livros. Com sobriedade cinematográfica e grande sabedoria, Hong Sang-soo termina o seu filme com o regresso à protagonista adormecida que desperta, deixando pelas suas palavras inequívoco que o que vimos foi o sonho dela. 
        Este é, portanto um dos melhores filmes de um dos melhores cineastas da actualidade. E o Indie Lisboa, que daqui saúdo, é o único local em que filmes como estes podem ser vistos em Portugal.

domingo, 20 de abril de 2014

A sagração da Primavera

   Alain Resnais foi um dos mais importantes cineastas de toda a história do cinema (ver "Poética de Alain Renais", 30 de Março de 2014), de uma impressionante modernidade até ao seu último filme, "Aimer, boire, chanter" (2014), que permanece inédito em Portugal, um país cuja distribuição cinematográfica continua a ser amnésica e oportunista. Concluído pouco antes da sua morte e justamente apreciado internacionalmente, esse é um filme de assombrosa celebração da vida no que ela tem de mais elementarmente importante, o que até compreendo num homem de 91 anos.
                     Aimer boire et chanter - 2
    Calibrado entre pares, entre casais, como lhe aconteceu desde os anos 80, "Aimer, boire, chanter", de novo baseado em peça do inglês Alan Ayckbourn que já estivera na base de "Fumar"/Não Fumar"-"Smoking/No Smoking" (1993), um filme fundamental na sua obra, constrói-se sobre uma personagem ausente e invisível, Georges, a quem foi diagnosticado um cancro com a perspectiva de poucos meses de vida. E é em favor dessa personagem ausente que, além de si próprias, todas as personagens presentes trabalham, com actores excepcionais, durante os ensaios de uma peça a que nunca assistimos, o que é fundamental no cinema onde o invisível corresponde, por definição, a cada um de nós, espectadores.
     Apeteceria, por isso, chamar begmaniamente a este filme "Durante o Ensaio", não se dera o caso de o ensaio não ser mostrado a não ser na repetição de alguns diálogos. O que interessou Resnais foram as personagens, sobretudo as personagens femininas, cada uma delas com alguma relação com Georges em algum momento das suas vidas. Não conhecendo a peça original, admito que nela tudo isto já estivesse contido. 
                      Aimer boire et chanter - 3
   Mas o que me deixa abismado neste filme é a sua concentração num mesmo espaço, que funciona como os bastidores do palco, onde as personagens são filmadas em geral à distância salvo quando lhes é dedicado um primeiro plano confessional. Sobre os seus próprios sentimentos, contra um fundo neutro, cinza. Ora partindo de um dispositivo teatral, levado às suas últimas consequências mesmo de variação de cenários propostos no mesmo espaço, Alain Resnais enxerta-lhe a linguagem do cinema com uma presteza extraordinária e uma pertinência notável, enquanto as suas personagens discorrem sobre a vida, o amor, a morte - a memória, o tempo, mas também e sempre o corpo.
    Por mim não conheço cineasta francês ou mesmo europeu mais moderno do que Resnais foi no seu último filme. E chamo vivamente a atenção para o excelente dossier que os "Cahiers du Cinéma" lhe dedicam no seu nº 699, de Abril de 2014, "Alain Resnais à jamais", em especial para os excelentes ensaios de Joachim Lepastier e Cyril Béghin, e para a sua última entrevista na "Positif" nº 638, também deste mês.      
                     
   Saudando afectuosamente Sabine Azéma por todas as suas actrizes, todos os seus actores e colaboradores, e prometendo regressar a ele logo que possível, aqui deixo este apontamento breve mas muito sentido sobre um gigante do cinema que muito apreciei e continuo a apreciar com conhecimento de causa. Porque ele é "Renaissance", como muito bem intitula Stéphane Delorme o seu editorial nos "Cahiers". Sempre em celebração da vida, dos sentimentos, dos encontros e desencontros, do amor.

O regresso de um artista

   Depois de "Moonrise Kingdom", 2012 (ver "Oh, não, outro artista americano!", 18 de Julho de 2012), estreou há pouco o mais recente filme de Wes Anderson, "Grand Budapest Hotel"/"The Grand Budapest Hotel", 2014, que o confirma como um dos cineastas mais originais e importantes do actual cinema americano - não conheço as curtas-metragens que terá feito entre estas suas duas últimas longas.
                    Wes Anderson’s THE GRAND BUDAPEST HOTEL First Clip
   Inspirando-se declaradamente nas obras de Stefan Zweig (1881-1942), um escritor austríaco muito importante na primeira metade do Século XX, Wes Anderson parte de uma história sua em co-autoria com Hugo Guinness e de um argumento seu para uma narrativa intrigante, curiosa e pitoresca situada em 1932 num país indefinido da Europa Central para que desde o início o dispositivo narrativo (alguém que conta acontecimentos que viveu na sua juventude a um interlocutor curioso que os desconhece) desperta a atenção. O dueto de protagonistas da história narrada está muito bem visto, entre o misterioso M. Gustave/Ralph Fiennes, o dono do hotel, e o muito jovem Zero/Toni Revolori que se revela ser o próprio narrador, Mr. Moustafa/F. Murray Abraham, quando jovem aprendiz.
  No desdobrar de personagens típicas ao longo dos acontecimentos em que eles se vêem envolvidos, muito comprometedores para M. Gustave a partir da morte de Madame D/Tilda Swinton, uma importante cliente do hotel de 84 anos (e a caracterização da actriz é excelente) com quem ele estava envolvido, o filme surpreende por ter em pequenos papéis secundários ou de mera caracterização grandes actores do cinema americano e europeu que todos conhecemos e reconhecemos. Esse é um jogo muito bem construído em "Grand Budapest Hotel", a que todos os actores se prestam com grande generosidade e que acaba por enredar ainda mais o mistério que rodeia M. Gustave, porque dele distrai.
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     Com cenários variados e guarda-roupa primoroso, Wes Anderson recupera uma época hoje em dia pouco conhecida, a década que precedeu a II Guerra Mundial, com ligeireza vienense que remete, no cinema, para Max Ophüls (1902-1957) - Madame D pelo seu nome confirma-o - sem esquecer a importância do prório Stefan Zweig, numa novela do qual Roberto Rossellini (1906-1977) se baseou para um dos seus filmes mais controversos dos anos 50, "O Medo"/"La paura" (1954), com Ingrid Bergman.
   Sem poupar nas personagens, nem nas mortes, nem nas intrigas (além de suspeito de assassínio M. Gustave é suspeito de ter roubado um quadro muito valioso), nem nas peripécias, nem nas surpresas, o cineasta aproxima-se da caricatura sem nela em geral cair, ficando-se pelo desenho das personagens em silhuetas de época e assim construindo um filme dinâmico e ligeiro cheio de charme e bom gosto que, porém, não hesita na caricatura quando apropriada, como acontece no veloz tiroteio final.
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     Para cohecer e poder amar o cinema americano de hoje no seu melhor é preciso ver "Grand Budapest Hotel" de Wes Anderson, um dos melhores cineastas-criadores da actualidade que seria de muito mau gosto ignorar na multiplicidade dos seus talentos artísticos - apenas chamo a atenção para a curiosíssima mistura musical de Alexandre Desplat - num filme atravessado pela morte de forma feliz e vivificante, rodado na Alemanha na sua totalidade. Com ele, possuidor de um estilo original próprio mesmo quando trabalha sobre terrenos conhecidos, o cinema continua a ser uma grande arte, não solene nem ostensiva, de maneira extremamente simples e inteligente.    

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Mais que sumptuoso

     "Anna Karenina" é a quinta longa-metragem  de Joe Wright (2012), um realizador inglês que começou no cinema com adapatações conseguidas, "Orgulho e Preconceito"/"Pride & Prejudice" (2005), baseado em Jane Austen, e "Expiação"/"Atonement" (2007), baseado em Ian McEwan, ambos com Keira Knightley que aqui regressa no papel da protagonista.
                    
     Levar ao cinema uma obra-prima da literatura russa e mundial da segunda metade do Século XIX não se antevia tarefa fácil ou então poderia ser considerado fácil de mais se encarado apenas do lado da reconstituição de época. O cineasta sai-se bastante bem por adoptar o recurso sistemático à cena teatral, ao palco visto à distância desde o início e com recorrências regulares mesmo quando não seria de esperar, como a corrida de cavalos, e no equilíbrio assim criado o filme impõe um certo distanciamento que quebra a fascinação imediata por personagens e uma narrativa conhecidas, ao mesmo tempo que inculca a ideia de que "o mundo é um palco".
     Sem afastar inteiramente o lado faustoso, sumptuoso mesmo do seu filme, antes jogando com ele, Joe Wright centra-se muito bem nas personagens de maneira a conferir-lhes toda a credibilidade que a narrativa literária lhes atribui, remetendo para ambientes sociais precisos restituídos, eles também, com rigor. Nestas condições, tudo se jogava ainda e sempre, como é de uso  no cinema inglês, no trabalho dos actores, que estão todos eles muito bem com destaque para Keira Knightley, que encarna com o rigor exigido a complexidade psicológica de Anna Karenina, Jude Law excelente como Karenin, e Aaron Taylor-Johnson como Conde Vronsky.    
                    
   Com audácia fílmica e equilíbrio, o cineasta consegue ultrapassar a simples leitura melodramática de base e aproximar-se da tragédia passional de uma mulher casada que se apaixona por um homem mais novo, uma paixão socialmente condenada. Podia ter ido mais longe se tivesse arriscado ainda mais? Talvez, mas tal como está "Anna Karenina" de Joe Wright é um bom filme, tanto melhor quanto evita o excesso melodramático preferindo-lhe uma contenção de tom que, ao mostrar, seduz sem esmagar, o que é sempre o risco na adaptação de obras célebres ao cinema.
     Assim se confirma a boa impressão que o cineasta tinha deixado ficar com os seus dois primeiros filmes, especialmente com uma certa subtlileza no segundo, uma subtileza que aqui volta a ter lugar graças ao argumento de Tom Stoppard sobre o romance de Leon Tolstoi, às felizes e ousadas opções cenográficas do realizador e à montagem, de novo inventiva no limite do excesso. Apesar disso, de tão controlado e fiel ao romance original este é um filme que confere excessiva rigidez às personagens e situações, com a rapidez da montagem, que aumenta com o avanço da narrativa, a compensar o recurso ao teatro por forma a quase fazer esquecê-lo, originando um padrão tão diversificado que se torna ligeiro em prejuízo do aprofundamento de certos momentos cruciais.
                    
      Mas se na Anna Karenina de Keira Knightley há algo que nos fala ainda hoje para além do tempo, do espaço e da história é porque Joe Wright e a sua equipa tiveram o mérito de respeitar uma obra ímpar da literatura mundial, emblemática do final da Rússia czarista. Entre o distanciamento e a montagem no limite tudo se torna, talvez, mais claro: para ela era "demasiado tarde", como para os heróis dos filmes de Luchino Visconti, e o plano final, estarrecedor, estabelece o comentário da Lei do Pai a fazer ainda hoje.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Testemunho exemplar

      O cambodjano Rithy Panh é um nome de referência do documentarismo contemporâneo e o seu mais recente filme, "A Imagem Que Falta"/"L'image manquante" (2013), o primeiro da sua autoria a ter estreia comercial em Portugal, é uma obra fascinante, pessoal e poderosa que me causou a mais viva impressão.
    Em primeiro lugar, o cineasta abraça toda a subjectividade decorrente de enfrentar a sua infância no seu país de origem, quando este foi tomado pelos Khmers Vermelhos e o regime dictatorial de Pol Pot, que veio a estar na origem de terríveis privações e do monstruoso genocídio de uma população em nome de uma ideologia. Ao olhar para trás a partir do seu próprio ponto de vista o cineasta proporciona pontos de referência sólidos decorrentes de uma experiência pessoal, o que torna o seu filme um testemunho especialmente credenciado e poderoso, que o comentário off dito por Christophe Bataille expressa muito bem.
                    STRAND RELEASING / “A Imagem que Falta”, filme de memórias do genocídio do Khmer Vermelho, emprega figurinos de argila em dioramas
   Em segundo lugar, e como é natural num documentário sobre uma época precisa, Rithy Panh socorre-se apropriadamente de excertos de filmes dessa mesma época, nomeadamente de documentários de propaganda, que vêm dar figura e rosto às personagens e personalidades que viveram os acontecimentos.
  Mas há um terceiro ponto que a meu ver surge como fundamental, que é a figuração do infigurável mediante o recurso a pequenas figuras de barro, que no início e durante o filme vemos serem criadas. Na sua progressivamente maior definição visual, essas figuras miniaturais representam pessoas concretas mas representam também todas as outras envolvidas na situação, criadas e recriáveis a partir do mesmo barro. Assim nos surgem sucessivamente a mãe que é denunciado pelo filho, o pai e a mãe do próprio cineasta com a carga afectiva que para o cineasta-narrador assumem, a mulher que morre por não conseguir ter um parto, entre outras. E ao vermos essas figuras assim representadas vêmo-las a elas e vemos todas as outras.   
                   
        Mas, com o persistente recurso a imagens documentais e a imagens do cinema, Rithy Panh consegue dar-nos o rosto risonho da propaganda e os rostos verdadeiros das vítimas indefesas, não deixando qualquer margem para dúvidas sobre a origem ideológica do regime mortífero de Pol Pot nem sobre a sua origem política. Além disso, permite-se e muito bem mostrar excertos dos horríveis filmes de ficção da época a que as populações eram obrigadas a assistir, pondo assim em causa a imagem do cinema de que justamente se serve para o seu filme. Mas a inclusão da história do "operador de câmara desobediente" funciona plena e exemplarmente quanto ao poder dessa imagem do cinema.
     Por fim, ao colocar as figurinhas dos seus pais a interrogá-lo na actualidade sobre o seu próprio trabalho o cineasta descreve um percurso completo, circular, que o questinar de si próprio e do seu trabalho cumpre de forma exemplar.
                    Cine Cultura estreia documentário 'A Imagem Que Falta'
   No prosseguimento de uma obra muito importante, em que são de destacar "La terre des âmes errantes" (2000), "S-21: La machine de mort Khmère rouge" (2003) e "Dutch, le maître des forges de l'enfer" (2011), além de filmes de ficção, "A Imagem Que Falta" é um filme indispensável até porque, muito justamente, aponta para que a imagem que falta do seu título é, naturalmente, impossível de encontrar.
   Que as figurinhas de barro criem no filme um efeito de distanciamento surge num documentário como insólito mas deliberadamente procurado e aumenta o inegável impacto emocional do filme, que advém de ele mostrar a verdade que a propaganda escondia, uma verdade que, sendo humana é também ética e política. Por outas palavras, esse é um distanciamento que, em vez de afastar, aproxima, e que o questionar do cinema completa. De Rithy Panh queremos mais, queremos conhecer tudo, pois trata-se de um cineasta notável cuja obra urge conhecer na íntegra.

A troca

   A sétima longa-metragem do francês Emmanuel Mouret, "A Arte de Amar"/"L'art d'aimer" (2011), é um filme plenamente convincente do seu talento. Também argumentista, o cineasta encena o que me apetece chamar, a partir de Eric Rohmer, "um conto moral" com a inspiração de Jean-Luc Godard.
                     vlcsnap-2012-09-09-21h02m48s144
   O que aí está em causa é a troca de identidade mas também física entre duas mulheres, duas amigas, Amélie/Judith Godrèche e Isabelle/Julie Depardieu, junto do apaixonado da primeira, Boris/Laurent Stocker. Outras personagens preenchem o quadro narrativo, mas este acaba por se concentrar nesse estranho triângulo, suscitado por Amélie e aceite por Isabelle no desconhecimento de Boris.
  Emmanuel Mouret tem talento e subtileza na construção não apenas narrativa mas visual e sonora do seu filme, que nos deixa mesmo estarrecidos pela sua simplicidade, candura e evidência. Explorando muito bem os momentos de hesitação que, em suspensão, pairam entre as suas personagens, ele consegue tornar cativante uma comédia com todos os mecanismos à mostra, mantendo-nos sempre interessados e comentando filosoficamente o que acontece com expressões lapidares, tipo "comédias e provérbios" de Eric Rohmer, inseridas no filme à maneira dos capítulos dos filmes de Godard.
                     813502 l art d aimer emmanuel mouret LArt daimer (Emmanuel Mouret, 2011)                     
   Não, nada é evidente onde tudo é evidenciado contra o desconhecimento de Boris, e a ideia de duas mulheres assume ressonâncias hitchcockianas em termos muito simples e... bem, embaraçosos. E se Paris é a cidade é porque ela continua a ser a capital de um certo entendimento do cinema em termos sempre novos, renovados.
   A voz-off narrativa preenche muito bem a sua função, as actrizes jogam-se em semelhança na sua diferente identidade até chegarem à indiferente natureza feminina, eminentemente trocável em nome da arte de amar, perante a qual os homens são cegos. Falta alguma coisa ainda em "A Arte de Amar" de Emmanuel Mouret? Falta, a meu ver, a presença da morte, para quebrar o tom de comédia que o filme faz questão de exibir. Salvo isso, e mesmo assim respeitando a vontade do realizador, estamos entendidos quanto a mais este nome a ter em conta no actual cinema francês.