“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Direcção: Suécia

          Sempre tive uma grande curiosidade pela Suécia e a sua cultura, com a qual travei contacto precoce através dos primeiros filmes de Ingmar Bergman que pude ver e me despertaram a curiosidade. Depois conheci August Strindberg, Selma Lagerlöf e um pouco Pär Lagerkvist, mais tarde o cinema sueco, que foi tão importante em especial no tempo do mudo: Victor Sjöström, Mauritz Stiller e Greta Garbo, Gustaf Molander e Ingrid Bergman, Alf Sjöberg, Bo Widerberg, os filmes iniciais de Vilgot Sjöman, dos anos 60, além do próprio Ingmar Bergman, que continuei a acompanhar, sempre e até ao fim (ver "Eles, os modernos", 22 de Janeiro de 2012). Mais recentemente, são muito conhecidos os livros da trilogia "Milleninum", de Stieg Larsson (1954-2004) e os filmes, suecos e em língua inglesa, nela inspirados (ver "O tempo outra vez", 22 de Abril de 2012).
              Desde o final do ano passado que a minha curiosidade pela Suécia foi acicatada de novo pela leitura de Henning Mankell, grande escritor de literatura policial mas cujo talento, como o dos verdadeiramente grandes, se expande melhor fora do género - ou, para ser mais preciso, nos romances sem Kurt Wallander - embora o que me despertou a curiosidade tenha sido o título do seu último livro, "Um Homem Inquieto" (Lisboa, Presença, 2012), e agora mesmo pela leitura, em francês, de Tomas Tranströmer, Prémio Nobel da Literatura em 2011 e que é um poeta extraordinário. Fico sempre muito divertido quando este prémio apanha desprevenidas as editoras portugueses, que apostam nas suas edições correntes nos nomes considerados mais famosos e mais falados e depois são apanhadas descalças, como aconteceu neste caso - para mais o de um poeta.
                            
            Depois do Nobel foi já feita uma edição bilingue de "50 Poemas" de Tranströmer (Lisboa, Relógio d'Água, 2012, com tradução e nota introdutória de Alexandre Pastor), e traduzido «"As minhas lembranças observam-me", seguido de "Primeiros Poemas (inéditos)"» (Lisboa, Sextante, 2012, com pósfácio de Pedro Mexia), mas só agora consegui chegar à edição francesa de "Baltiques - Oeuvres complètes 1954-2004" (Paris, Gallimard, 2004/2011, com tradução e prefácio de Jacques Outin, nota prévia de Kjell Espmark e posfácio de Renaud Ego) e assim dar-me conta da verdadeira dimensão deste poeta.
            No prefácio desta edição, Tranströmer é qualificado como "poeta do silêncio", mas há que compreender que esse silêncio é, na sua poesia, captado a partir do exterior, da vida e do mundo, para o que se torna necessária uma grande disponibilidade, uma muito especial sensibilidade e uma inteligência aguda. Um poeta que ouve esse silêncio e sobre ele escreve, um silêncio, múltiplos silêncios no meio do ruído, dos ruídos do mundo, pode, como é o caso, pressentir e entrever o que ao comum dos mortais escapa e, ao dizê-lo ou confessar-se incapaz de o dizer, surpreender, intrigar e fascinar.
          Ora esse silêncio povoado ele vai procurá-lo e encontrá-lo na sua terra e no mundo pelo qual viajou, estabelecendo relações preferenciais e privilegiadas com a neve, a montanha, a floresta, os fiordes e o mar, mas também com a arte, a arquitectura, a pintura e, especialmente, a música, na busca de um outro lado das coisas que elas, na sua comum aparência, escondem. Tomas Tranströmer é, de facto, um dos maiores poetas da segunda metade do Século XX e do início do XXI, uma voz de uma limpidez cristalina e inequívoca, que não engana nem se engana na procura de um outro lado escondido no tempo e no espaço. Perseguido pelo sonho e acompanhado pela ideia da morte, com recurso a palavras secas e a construção de uma linguagem precisa, um domínio pleno da metáfora e da elipse, ele cria uma poesia exacta e luminosa, que enuncia e anuncia uma perspectiva original, metafísica e cósmica, a partir do sensível. Depurados, e com o decorrer do tempo cada mais reduzidos ao essencial, os seus poemas são uma verdadeira maravilha.
                      Datei:Henning Mankell01.jpg
       Tendo chegado a ele depois de ter descoberto o melhor de Mankell, que é um grande conhecedor da natureza humana, do seu país e do mundo actual, e um grande escritor, aumentou o meu interesse e a minha curiosidade pelo Norte da Europa, por essa paisagem natural e urbana da Suécia, pelo seu povo e pela sua cultura que, distantes embora, nos conhecem e não nos são estranhos. Depois de ter lido Tranströmer na língua de Paul Éluard e Yves Bonnefoy, preciso de conhecer a Suécia, um país que tem escritores e artistas que não brincam com a vida nem com o que fazem, descobrem um mundo em que se descobrem e que nos revela, dizem coisas que me interessam e não encontro em mais lado nenhum.uma mundivivência especial, uma atitude própria perante a vida e o mundo, uma história, lendas, mitos e sagas, uma notória seriedade, uma integridade intelectual escandinava, em geral, e sueca, em especial, que não teme, antes enfrenta o lado mais sombrio da vida e do mundo e que não devo deixar escapar-me por mais tempo. 
       Entretanto, vou continuar a ler Henning Mankell, em português, nos intervalos e reler Tranströmer, em francês, logo que possa, enquanto tento indagar mais sobre a cultura sueca, incluindo o seu cinema actual, do qual, assim de repente, só tenho presentes Lukas Moodysson - "Lilya Para Sempre"/"Lilya 4-ever" (2002) - e o muito interessante Tomas Alfredson - "Deixa-me entrar"/"Let The Right One In"/"Lât den rätte komme in" (2008) e "A Toupeira"/"Tinker Tailor Soldier Spy" (2011). Ficarei deliciado por continuar a ser ainda hoje surpreendido por um país cuja cultura me atrai, e que, por isso, como país chama por mim e quero conhecer. E mesmo ao lado fica a Finlândia de Aki Kaurismäki.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Alto risco

      A terceira longa-metragem realizada pelo actor Ben Affleck, "Argo" (2012), é um bom filme, com o interesse especial de ser baseado em factos reais.
       Sem qualquer pretenciosismo estético, o filme conta da melhor maneira, de forma escorreita e desenvolta, a história que tem a contar, por forma a prender e manter até ao fim o interesse do espectador. Um outro motivo de especial interesse de "Argo" é envolver na sua narrativa a própria indústria do cinema, pois a missão que o protagonista, Tony Mendez/Ben Affleck, tem a cumprir implica fazer passar os seis reféns que vai tentar libertar por uma equipa de filmagens, o que torna o filme uma reflexão sobre o próprio cinema, que se vem juntar à reflexão política sobre a história que ele, mesmo sem forçar, também proporciona, de modo tanto mais interessante e pertinente quanto ela pode ser relacionada com a actualidade.
                       Argo          
          Este é um filme que tem quase tudo aquilo que fez a notoriedade do cinema norte-americano: acção, mas acção controlada, simplicidade de meios, uma intriga que envolve alto risco, a separação clara entre os bons e os maus, sem escamotear as dificuldades que os primeiros têm de enfrentar e vencer do seu próprio lado, a criação de momentos de forte tensão dramática. Com estas características, "Argo" é um bom filme de acção, inteligente e seguro, que não deixa de defender a América e os seus valores de maneira clara e convincente, mesmo sem a presença de um inimigo, de um adversário individualizado na narrativa, o que nas circunstâncias acaba por o beneficiar. Envolvendo Hollywood e o cinema, é um filme sobre a representação, o faz de conta, pois tanto o protagonista como os reféns que ele se encarrega de tentar libertar têm de se fazer passar por outros, por quem não são, para o sucesso da missão, o que constitui um suplementar motivo de interesse. 
                       Argo
           Mas além disso o herói é um homem solitário que, desde o aparecimento da  primeira ideia do plano até ao final da sua execução, vai ter que procurar e encontrar os apoios de que necessita, o que é característico do cinema americano pelo menos desde o western mas é também típico das ficções políticas dos anos 70, o que se torna particularmente interessante visto os acontecimentos de que o filme se ocupa se situarem temporalmente em 1979. O olhar sobre Hollywood é sem contemplações mas também seguro dos verdadeiros valores da amizade e da cooperação, mesmo quando os poderes institucionais falham, e o olhar sobre as instituições não as poupa, como é devido e também típico do filme político dos anos 70.                                                                 
       De resto, o filme tem actores muito bons que actuam sempre no registo certo, particularmente quando ironizam sobre Hollywood - notáveis Alan Arkin como Lester Siegel e John Goodman como John Chambers - e sobre os bastidores das instituições políticas, e é irrepreensível do ponto de vista técnico, com destaque para a fotografia, sempre justa e precisa, de Rodrigo Prieto, a montagem de William Goldenberg, que aumenta a dinâmica e o interesse da narrativa, assegura o ritmo do filme e a melhor resolução dos momentos de maior tensão, e para a música, de Alexandre Desplat, muito apropriada e inteligentemente utilizada
                      Argo
           "Argo" é, pois, um bom filme, perfeitamente à altura da tradição dos clássicos e modernos do cinema americano, e Ben Affleck mostra ser, além de um bom actor - está muito bem como herói tranquilo numa missão muito arriscada -, um bom realizador, com ideias próprias e interessantes. A presença de George Clooney como co-produtor, ao lado do realizador e actor principal e de Grant Heslov, é um elemento não negligenciável, que transmite confiança e garante independência.

Poéticas do tempo

          O grande cineasta moderno grego Theo Angelopoulos (1935-2012), que foi um mestre na conjugação de um olhar sobre a história e do uso do plano-sequência muito longo, com lentos e elaborados movimentos de câmara, fez de "A Poeira do Tempo"/"I skoni tou hronou" (2008), o seu último filme concluído, um filme admirável, que culmina uma obra superior brutalmente interrompida. O plano-sequência muito longo não foi, no caso dele, um mero requinte formalista, antes esteve de acordo com uma abordagem do passado, da história, sobre a qual permitia um olhar demorado e atento, propício à reflexão.
                  Theo Angelopoulos
     O filme mais conhecido de Angelopoulos, que o tornou famoso, "A Viagem dos Comediantes"/"O thiasos" (1975), permitiu-lhe um uso muito apropriado e já sistemático do plano sequência longo e elaborado numa Grécia em crise, partilhada e dividida entre o final dos anos 30 e o início dos anos 50. Mas já aí, e por intermédio do teatro, a história da cultura grega permitia a tentativa de analisar e esclarecer um passado mais recente, o tempo da II Guerra Mundial. Essa reflexão foi prosseguida em "Alexandre, O Grande"/"O Megalexandros" (1980) e em filmes como "Um Táxi para Cítara"/"Taxiditi sta Kythira" (1984), "O Passo Suspenso da Cegonha"/"To meteoro vima tou pelargou" (1991) e "A Eternidade e Um Dia"/"Mia aioniotita kai mia mera" (1998), que lhe permitiram questionar a história, antiga e moderna, do seu país e a actualidade do final do século numa zona, os Balcãs, dividida e atravessada por conflitos graves, enquanto "O Apicultor"/"O melissokomos" lhe proporcionou uma homenagem, sentida e comovida, à sua terra. 
                     http://www.oribatejo.pt/wp-content/uploads/2011/02/filme-a-poeira-do-tempo.jpg
       A relação de Theo Angelopoulos com o próprio cinema no interior de um filme tem um primeiro momento decisivo em "O Olhar de Ulisses"/"To vlemma tou Odyssea" (1995), que é um filme fabuloso, e vai prosseguir com o seu derradeiro filme concluído, "A Poeira do Tempo", o segundo filme da trilogia iniciada com "The Weeping Meadow"/"To livadi pou dakryzei" (2004), de que já não pôde fazer o terceiro. Ora o que é muito curioso é que, sempre a lidar com a história, do seu país e do mundo, o cineasta extremava no primeiro filme da trilogia o uso do plano-sequência muito longo, utilizando-o até ao excesso, enquanto que em "A Poeira do Tempo" faz um uso muito mais leve e equilibrado dele, de forma a retirar-lhe a solenidade que nos seus filmes anteriores lhe estava associada e a tornar perfeitamente claro o filme e as suas personagens, num tom mais leve do ponto de vista fílmico, na abordagem da Europa e do mundo desde os anos 50 até ao final do Século XX.
                      "A Poeira do Tempo", último longa de Theo Angelopoulos, abre o programa hoje à noite
             Com uma grande variedade de personagens e situações, e a partir de um filme que está a ser feito, o cineasta coloca o filme que está a ser feito no interior do seu filme, e o respectivo realizador, A/Willem Dafoe, a dialogar com os seus próprios pais, Eleni/Irène Jacob e Spyros/Michel Piccoli, que são as personagens do seu filme, cuja vida ele procura descobrir e reconstituir a partir da vida e dos amores dela. Cobrindo diferentes gerações e, consequentemente, diferentes momentos históricos e diferentes atitudes perante a vida, "A Poeira do Tempo" é talvez o filme que melhor resume a relação de Angelopoulos com a história e com o cinema e aquele em que ele atinge um estilo mais depurado, mesmo na liberdade com que faz encontrarem-se personagens de tempos diferentes, e em momentos diferentes das suas vidas, num mesmo espaço e em espaços diferentes - o que significa colocar o realizador, A, no interior do seu próprio filme.
       Além disso, ou por isso mesmo, surge com inteira justificação narrativa a alusão a "Alemanha Ano Zero"/"Germania, anno zero", de Roberto Rossellini (1948), entendida como perfeitamente natural na filha de A que, à deriva com o divórcio dos pais, vai justamente parar à Alemanha, onde o pai e os avós a vão procurar e encontrar - e toda essa secção do filme está muito bem resolvida com planos-sequência em movimento de câmara, que situam, relacionam, separam e aproximam as personagens. Mas esta alusão é concluída com a personagem de Jacob/Bruno Ganz - actor que foi um dos anjos, Damiel, de "As Asas do Desejo"/"Der Himmel über Berlin", de Wim Wenders (1987) -, que vai acabar por não aguentar a relação com a ideia da terceira asa e fazer o que a pequena Eleni acabara por não fazer. No final, e saltando uma geração à deriva, avô e neta partem de mãos dadas, mas ao nosso encontro.
                      TRILOGIA II: A POEIRA DO TEMPO              
           O tempo de que o cineasta grego, sempre argumentista dos seus filmes, se ocupou foi, assim, duplo: o da história e o da duração dos planos, e em ambas as questões ele soube construir poéticas próprias, da história e do tempo, que no seu último filme atingem um equilíbrio justo, conseguido e perfeito, para o qual a música do seu compositor habitual, Eleni Karaindrou, dá um contributo muito importante. O tempo ficou reduzido a poeira, como os sonhos das personagens do filme dentro do filme e de "A Poeira do Tempo" a desfazerem-se e desvanecerem-se, mas o cinema de Theo Angelopoulos fica como um testemunho notável sobre a Grécia e o Século XX e, pelo seu alcance temático e a sua estética ousada e muito bem defendida ao relacionar a dilatação do espaço e do tempo com a observação analítica da história, como uma peça absolutamente imprescindível do cinema moderno europeu
        "J'ai l'impression qu'on essai d'être sujet de l'Histoire mais que, finalement, on en est l'object." (Theo Angelopoulos, em entrevista concedida em Atenas, em 2 de Agosto de 2008, à revista francesa Positif, que a publica no seu nº 624, de Fevereiro de 2013, em que lhe dedica um dossier muito importante).

Nota
Sobre a História do Século XX é neste momento fundamental conhecer o historiador inglês Tony Judt (1948-2010), de que se encontram disponíveis em português, nomeadamente, "Pós-Guerra: História da Europa Desde 1945", "O Século XX Esquecido" e "Pensar o Século XX" (co-Timothy Snyder) - Lisboa, Edições 70, 2006, 2009 e 2012, respectivamente.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Inadmissível

         O canal cultural franco-alemão Arte, que aqui tenho referido elogiosamente, prestou na noite de ontem, Segunda-Feira, 18 de Fevereiro, um péssimo serviço aos seus espectadores e ao cinema ao apresentar o excelente documentário "Three Sisters"/"Sam zimei", do chinês Wang Bing, numa versão reduzida a menos de metade da sua duração total, que é superior a duas horas e meia. A versão, autorizada não sei como nem por quem, que sob o título "Seules dans les montagnes du Yunnan" o Arte apresentou tem 73 minutos, o que significa uma amputação e uma desvirtuação do filme que é inadmissível em quaisquer circunstâncias perante a integridade da obra cinematográfica. De qualquer obra cinematográfica.
                     
                      threesisters
        Desconheço as razões deste estranho acontecimento, tanto mais quanto se trata de um filme belíssimo de um cineasta neste momento consagrado, como aqui já escrevi (ver "Documentário épico", 4 de Novembro de 2012). Nunca ninguém está autorizado à redução de um filme, muito menos um canal como o Arte, que tem especiais responsabilidades culturais, já tem apresentado outros filmes do mesmo cineasta em condições normais e tem para com o cinema uma atitude em geral correcta e até apreciável do ponto de vista da programação. A apresentar este filme deveria fazê-lo com respeito da sua integridade e integralidade, com o devido destaque, e até promover a seu respeito uma mesa-redonda com críticos e especialistas no documentário, no cinema chinês e em Wang Bing.   
                     
        A programação do Arte anuncia que este canal vai mostrar de novo "Three Sisters"/"Sam zimei" na noite do próximo Sábado, 23 de Fevereiro, com o mesmo título francês e a mesma duração, o que torna as coisas ainda mais criticáveis e incompreensíveis. O procedimento deste canal relativamente a este filme releva de uma prática censória inaceitável, e é, por isso, censurável e completamente de rejeitar. A redução de um filme como este, cuja duração própria no original para cinema faz parte indeclinável da sua originalidade e do seu fascínio, a um formato tipo reportagem televisiva desvirtua-o completamente e é, por isso, lamentável e ineceitável. O que significa que, na actualidade, mesmo um canal prestigiado como o Arte deve ser encarado com precaução.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Sem saída

       O mais recente filme de Paul Thomas Anderson, "The Master - O Mentor"/"The Master" (2012), só poderá surpreender quem só agora acedeu à sua obra. De facto, a personagem maior do que a natureza, neste caso Lancaster Dodd/Philip Seymour Hoffman, vem pelo menos do anterior "Haverá Sangue"/"There Will Be Blood" (2007) e destina-se a conferir uma figura que seja um ponto de atracção sólido à narrativa e ao filme. Sendo uma personagem controversa, assume a sua pretensa superioridade perante os mais a partir de uma determinada doutrina, que pretende sobrepor-se às demais e a todos os outros, o que, tanto quanto sabemos, não é incomum na América.  
                            
       Situado no pós-guerra, em 1950, e considerado como inspirado na história de L. Ron Hubbard, fundador do culto da cientologia, "The Master - O Mentor" tem em Freddie Quell/Joaquin Phoenix o seu verdadeiro protagonista, aquele que, no fim da II Guerra Mundial, quando o desemprego atingiu os soldados regressados da guerra, vai entrar na órbita de Dodd e submeter-se à sua seita. Tornado um mero instrumento, submetido e fanatizado, ele acompanha o seu líder sem nunca verdadeiramente lhe fazer frente, salvo quando ambos são presos. Paranóico e errático, Freddie sujeita-se, aplaude, agride, submete-se a experiências, enquanto o seu mentor progride e prospera, sem nunca sabermos ao certo até que ponto se levam a sério e respeitam um ao outro. Por sua vez, o mar, a hipnose, a sessão de cinema, a corrida solitária de moto no deserto introduzem no filme um inequívoco lado onírico, que nega o seu realismo de primeiro grau, puxando-o mais para o lado de "Embriagado de Amor"/"Punch-Drunk, Love" (2002). E quanto mais não seja por aí, mas também pelo alcool e pela linha do horizonte (o limite visual do plano), Freddie foge, escapa-se ao domínio do mentor, que aparentemente aceita.     
          Centrado e concentrado nestas duas personagens, Lancaster Dodd e Freddie Quell, o filme tem uma progressão dramática que acompanha a deslocação espacial das personagens, mas nos seus momentos mais fortes centra-se mesmo nelas, nas personagens, nos actores e nas actrizes - com destaque, entre estas, para Amy Adams como Peggy Dodd e para a chegada de Laura Dern como Helen Sullivan ao universo do cineasta -, em diálogos simples e directos que se pretendem reveladores. Nessas circunstâncias o cineasta faz um grande e apropriado uso do primeiro plano e do grande-plano, sem prejuízo do que, na linha do seu trabalho anterior, volta a recorrer às desfocagens do fundo ou do primeiro plano, introduzindo desse modo um elemento visual específico e relevante na parte puramente visual do filme e na sua narrativa.
                           
         Não apenas por isso, mas por uma mise en scène que utiliza muito bem o fora de campo, as recorrências de espaços e personagens, uma composição do plano, quase sempre fixo, que o torna mais expressivo, e também devido a actores extraordinários, Paul Thomas Anderson, como sempre também argumentista, faz deste seu novo filme mais uma peça para a sua decifração da América, perfeitamente consistente com o que fez antes. Ele é, como Gus Van Sant, um poeta de um país contraditório e desconhecido de si mesmo, que para o abordar se serve de meios cinematográficos novos, nomeadamente na construção visual do espaço e da narrativa, de uma narrativa que, como o filme, não se limita a um primeiro grau, imediato, antes se desenvolve sobre o realismo pelos meandros do inconsciente, aqui usando também como pretexto a viagem no tempo.
         A sua poética é, assim, uma poética do espaço, do plano e da montagem, e uma poética da descoberta, uma vez que ele não parte de certezas mas pretende aceder ao conhecimento e à revelação dos aspectos mais duros da América por meios cinematográficos próprios, sem complacências nem idealismos mas usando o cinema como instrumento de procura e de descoberta, de questionamento e de assombro. E uma vez terminado o filme, como durante ele, o mistério, tanto de Dodd como de Quell, persiste
                   
       Aparentemente situado na descendência de Eric von Stroheim e Orson Welles (ver "Paul Thomas Anderson: O Enigma", 20 de Janeiro de 2012, e "Mosaico vivo", 30 de Março de 2012), Paul Thomas Anderson não se deixa classificar facilmente, já que está a reinventar o cinema e a descobrir o seu país com uma poética inquieta e inquisitiva, que não se dá nem nos dá tréguas, antes nos inquieta e surpreende - e ainda bem que assim é. Superar o confronto final, que era decisivo em "Haverá Sangue", de forma inconclusiva, poderá deixar o espectador perplexo em "The Master - O Mentor", que pela sua própria irresolução, com Freddie à deriva, impõe como desenlace uma personagem sem saída, tal como se apresentava no início do filme, que assim assume uma circularidade muito interessante, depois de cumprido um percurso narrativo e dramático revelador
                    
       Num filme em que Freddie Quell faz lembrar as personagens à deriva, presas de si mesmas, que Marlon Brando interpretou no pós-guerra, precisamente durante os anos 50, nomeadamente em filmes de Elia Kazan, Joaquin Phoenix tem uma composição extraordinária, frente a um Philip Seymour Hoffman soberbo.
     Consta que o cineasta vai abordar agora uma obra de Thomas Pynchon: "Inherent Vice" - "Vício Intrínseco" na edição portuguesa (Lisboa, Bertrand, 2010). Nada de mais natural. A expectativa aumenta

A história e a lenda

           O anunciado “Lincoln” (2012) de Steven Spielberg é um filme histórico feito para a história, em jeito de homenagem ao grande presidente americano do século XIX, o presidente que pôs fim à escravatura e à guerra civil americana (1861-1865). Centrado precisamente nessas questões, em especial na primeira embora elas estivessem ligadas -  a abolição da escravatura foi objecto de aceso debate político em Washington durante o mês de Janeiro de 1865, para a aprovação da 13ª Emenda constitucional numa Câmara dos Representantes dividida, em que o Partido Republicano, o do Presidente, teve que, com ele, manobrar habilmente na demanda dos votos que lhe faltavam para atingir a maioria exigida, de dois terços -, o filme procura retratar o político e o homem, bem como o meio em que ele trabalhou e viveu nessa época, para dele fazer um retrato completo e à sua altura.
                     Lincoln movie wallpapers (1)
           O projecto era ousado e de grande responsabilidade, mas todos sabíamos que o cineasta estava à altura do desafio que a si próprio colocou. Apenas aguardávamos, com alguma expectativa, o resultado. A verdade histórica é respeitada, como se impunha, e a oportunidade usada para fazer a exaltação do Presidente nos momentos mais decisivos, mas também mais conturbados, da sua vida política, que acabaram por corresponder ao final da sua vida. Ao fechar o filme em Washington, Steven Spielberg assume uma opção difícil, a que procura manter-se fiel, por forma a dar-nos o clima, político mas também familiar, em que Lincoln então se moveu. As únicas saídas desse espaço são para ir ao encontro dos delegados da Confederação que se deslocam para conversações. Clara e com bons resultados, até devido à extensão do filme penso que uma tal opção faz sentir a falta de um contraponto ao Presidente e a Washington, que permitisse aproximá-lo de nós em vez de o "embalsamar", como faz (1).           
            São, a meu ver,  descabidas, embora compreensíveis, as comparações com outros filmes que trataram da figura de Lincoln, já que Spielberg trabalha sobre eles para fazer o seu próprio filme, levando o seu respeito ao ponto de não mostrar o assassinato do Presidente, bem cedo objecto de vinheta histórica em “O Nascimento de uma Nação”/”The Birth of a Nation”, de David W. Griffith (1915). E relativamente a “A  Grande Esperança”/”Young Mr. Lincoln”, de John Ford (1939), a sua opção revela-se a oposta: em vez do jovem advogado em início de carreira, ocupar-se da fase final da sua vida.
                    
           Toda a parte visual do filme, a reconstituição histórica a que ele procede, está, como era de exigir e de esperar, muito boa, e funciona muito bem devido à fotografia de Janusz Kaminski, aos cenários e aos figurinos, estes de Joanna Johnston, e graças às excelentes interpretações, de que destaco Daniel Day Lewis como Abraham Lincoln, Sally Field como Mary Todd Lincoln e Tommy Lee Jones como Thaddeus Stevens, este extraordinário de expressão (os olhos), nomeadamente na cena em que tem de assumir um compromisso na Câmara dos Representantes – um compromisso decisivo. A música, de John Williams e com escolhas surpreendentes, tem um papel muito importante no lado expressivo do filme.      
        Mas se "Lincoln" está à altura da biografia do 16º Presidente dos Estados Unidos da América, que pretender traçar, não deixa por isso – e talvez para isso – de adoptar um tom excessivamente solene que, na falta de um contraponto exterior, "mumifica" Lincoln sem alcançar os termos mais profundos da sua personalidade e dos seus dilemas interiores, que só o exterior, as questões objectivas com que ele se debateu, poderiam claramente elucidar. Demasiado respeitador e preso à lenda, que contribui para aumentar, este é um filme em que o cineasta se leva de novo excessivamente a sério, para bem do cinema e da sua própria reputação - é exemplar do estilo de Spielberg -, correndo assim o risco de transformar a personagem de Lincoln em mais um e. t., sem embargo do que este é o retrato oficial de uma geração daquele presidente.
                     Tommy Lee Jones en "Lincoln", de Steven Spielberg    
          É inegável o interesse das fotografias de escravos mostradas no filme, como a elegância das elipses do resultado da votação e do assassinato do Presidente, mas essas são questões elementares para um cineasta como Steven Spielberg. Agora o retrato que fica é aquele que resulta da interpretação, notável, de Daniel Day Lewis, que por si mesma chega para o retrato oficial de uma geração. O contraponto em falta, que poderia enriquecer este filme, terá de ser procurado em "A Conspiradora"/"The Conspirator" (2010), de Robert Redford, mas a sua falta em "Lincoln" faz lembrar o extraordinário pequeno episódio de John Ford em "A Conquista do Oeste"/"How The West Was Won", "A Guerra Civil"/"The Civil War" (1962). Todavia, para ser inteiramente justo com este filme, devo reconhecer que ele tem curiosos apontamentos fordianos (Robert Lincoln/Joseph Gordon-Levitt, o filho mais velho do Presidente; certas atitudes deste e de Stevens; os representantes hesitantes; o General Ulysses S. Grant/Jared Harris), que o cineasta não explora até ao fim, talvez com receio de alienar, se o fizesse, a sua marca pessoal. Contudo, ficam para a história a vinheta da rendição do General Robert E. Lee/Christopher Boyer em Appomattox e o leito de morte de Lincoln, seguido do discurso da sua segunda investidura, à laia de elogio fúnebre (2).         
          Obviamente que este é, mesmo assim, um filme que aconselho, até porque compreendo que o neo-academismo deste americano bem comportado que é Steven Spielberg vai fazer história. Vale como lição política, sobretudo por ser sobre um homem de convicções profundas cujas opções e decisões marcaram o seu tempo e o futuro, e em todo o caso foi também sobre a Bíblia de Lincoln que Barack Obama prestou juramento na tomada de posse do seu segundo mandato, e para os americanos actuais - e para o mundo - vai ser este o retrato, oficial, que  dele fica.
                     Cena do filme
          Empenhado na hagiografia, demasiado bem comportado e em pose para a história e para o futuro, "Lincoln" de Steven Spielberg não frustra as expectativas e é um bom filme, como era de esperar e exigir. Obra digna de um cineasta respeitável, fica, mesmo assim, aquém daquilo que se poderia, apesar de tudo, desejar.

Notas
(1) O filme tem argumento de Tony Kushner, parcialmente baseado em "Team of Rivals: The Political Genius of Abraham Lincoln", de Doris Kearns Goodwin, a que se supõe tenha permanecido fiel.
(2) Sobre a história da América e este período em particular, ver "Uma História dos Estados Unidos da Amárica", de Philip Jenkins, neste momento disponível em português (Lisboa, Texto & Grafia, 2012).

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Um outro samurai

        Johnnie To é o actual grande mestre do filme de gangsters no cinema de Hong Kong. Mal conhecido em Portugal, o Indie Lisboa 2008 dedicou-lhe uma boa retrospectiva, que permitiu ficar a conhecer quase todos os seus principais filmes e descobrir que ele é, no seu melhor, também devedor de uma inspiração em Akira Kurosawa.          
        "Vingança"/"Vengeance"/"Fuk sau" (2009) é talvez o ponto mais alto da sua obra até agora, o filme em que ele faz desembarcar no seu universo peculiar, em Macau, um francês, Francis Costello/Johnny Hallyday, que consigo para o filme e o universo do cineasta traz a memória de Jean-Pierre Melville, via nomeadamente "O Ofício de Matar"/"Le Samuraï" (1967), filme que em certos momentos e em certos aspectos cita expressamente e em que já Jim  Jarmush se inspirara para "Ghost Dog - O Método do Samurai"/"Ghost Dog: The Way of the Samurai" (1999) - no filme de Melville, Alain Delon interpretava Jeff Costello, embora aqui Johnny Hallyday faça lembrar mais Yves Montand, nomeadamenet em "O Círculo Vermelho"/"Le Cercle rouge" (1970) do mesmo grande cineasta francês.
                      
        E que estranho filme é este, em que o protagonista, querendo vingar o grave ferimento da  sua filha, Irene Thompson/Sylvie Testud, e a morte dos seus netos e do marido dela, vai desencadear uma guerra entre tríades, de Macau e Hong-Kong, para, em pleno combate, ele próprio, que tem uma bala alojada no cérebro, perder a memória e não saber já sequer o que quer dizer vingar-se. O combate entre as tríades prossegue sem ele, até que, graças ao nome do responsável pelo que aconteceu à filha, George Fang/Simon Yam, escrito na sua arma, e ao efeito de uma série de choques de automóveis que, em fuga, provoca, recupera o suficiente a tempo do embate final. 
                     Vengeance
         O que faz de Johnnie To um cineasta notável é o facto de ele ser um estilista do cinema, da mise en scène e da montagem, o que se manifesta neste filme por uma câmara ora fixa, em diferentes escalas mas com um uso notável do grande-plano e do plano de pormenor, ora em movimento mas num movimento inteligente, que abre espaços para se deter sobre alguém ou alguma coisa relevante, criando assim uma geometria do plano que a montagem se encarrega de ligar de forma ritmada e tensa. Desse modo o seu estilo integra um género clássico de que, em termos modernos, se apropria, faz seu com características narrativas e formais próprias, com a sua assinatura - "Triângulo"/"Triangle"/"Tie saam gok" (2007), filme co-dirigido com  Ringo Lam e Tsui Hark, tinha sido um interregno interessante.
          Mas "Vingança" é um filme notável, com diversos momentos muito bons, como o encontro de Frank com o trio que o vai ajudar, nos corredores do hotel, a ideia de fotografar os seus membros para os identificar, o duelo entre as tríades no meio do vento, da poeira e dos papéis que voam, que decorre já sem ele, a noite de lua cheia em que o mesmo Frank ajoelha na areia e pede a ajuda de Deus, enquanto os fantasmas dos ausentes vêm ter com ele, o duelo final entre ele e Fang, com pormenores muito bem achados - os colantes.
         Longe dos caminhos mais frequentados pelo cinema do género de  Hong Kong, muito importante desde os anos 80 do século XX, embora colhendo dele códigos e maneiras, mas depurando-os, o cineasta tem traçado um percurso original e pessoal que faz dele o melhor cineasta de Hong-Kong e do filme de gangsters actual, ombreando quando não excedendo os melhores cineastas americanos que se lhe dedicam - James Gray, Michael Mann. E ele filma a um ritmo de vários filmes por ano, o que, tendo-se estreado em 1980, faz dele um cineasta com uma obra já muito vasta e apreciável.   
                    An Official Website for Johnnie To's Vengeance! 
          É claro que se justifica uma maior divulgação do cinema de Johnnie To em Portugal, já que ele é um dos grandes cineastas contemporâneos a nível mundial, que por isso não merece em caso algum ser tratado como mais um exotismo asiático, mesmo num país periférico com o nosso, que não se pode dar ao luxo de ignorá-lo ou de minimizá-lo.

A fuga

             O mais recente filme do alemão Christian Petzold, "Barbara" (2012), com argumento do próprio cineasta e de Harun Farocki, trata de uma maneira subtil de um assunto delicado, situado na antiga Alemanha de Leste, que existiu no pós-guerra até à queda do muro de Berlim, dividindo a Alemanha, a Europa e o mundo. Essa é uma memória delicada que o cinema alemão tem sabido tratar com inteligência, de modo a contribuir para cicatrizar feridas em vez de as agravar.
                     
         Petzold é um bom  cineasta, seguro e ciente das histórias que quer contar, das personagens de que se ocupa, dos meios cinematográficos ao seu dispor, de modo que não toma este seu último filme como pretexto para um libelo acusatório contundente, antes assume-o como um meio de compreensão do que, a nível humano, esteve em causa numa Alemanha dividida. Assim, a personagem que dá o nome ao filme é uma mulher que tenta fugir, como muitos outros tiveram de fazer, do apregoado "paraíso", e para tal estabelece os contactos necessários sem abandonar a sua vida profissional como médica.  
                     Barbara - Directed by Christian Petzold      
          Com uma planificação simples e segura e actores no seu melhor, o cineasta consegue, sem carregar as tintas, dar conta de um universo concentracionário, em que todos estão sob vigilância do estado policial, a partir da sua terrífica e omnisciente polícia política. Assim, as inevitáveis cumplicidades como as instaladas resistências mostram como foi possível viver sob um tal estado de coisas, de que os aspectos mais terríficos são apenas sugeridos. Aí reside mesmo a subtileza deste filme, que o torna mais contundente sem o querer parecer.
          Ao longo do filme, Barbara/Nina Hoss descreve em dois tempos um percurso até ao mar, primeiro frustrando a proposta de passeio de André/Ronald Zehrfeld, o médico com quem trabalha, depois seguindo até ao fim, mas acompanhada pela jovem fugitiva de um campo de concentração, então dito "de reeducção e de trabalho", a quem dá o seu lugar na fuga preparada. Tudo se torna claro com este final, em que alguém se sacrifica – é sempre preciso que alguém se sacrifique – para que quem está pior possa beneficiar do esquema montado. Quem fica regressa inevitavelmente ao mundo de compromissos e humilhações, em que se vivia e foi necessário viver até ao fim. Pequenos sacrifícios e pequenas humilhações? Com a sua actriz Christian Petzold assume com brio um julgamento sereno do que então esteve em causa, sem complacência mas também sem evitar o lado humano do outro lado, com o qual era preciso conviver.
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         Senhor de uma mise en scène elegante, que explora os espaços exteriores em profundidade e na horizontal, o cineasta fecha o filme em espaços clausurais sempre que narrativamente necessário – a casa, o hospital –, jogando para isso com a desfocagem do fundo do plano sempre que entende, sem perder o sentido da arte como meio de expressão e de evasão – a pintura, a música -, com o que aproxima as personagens em vez de as afastar. Sem estardalhaço mas em trabalho claro sobre os dados mais evidentes, Christian Petzold cria um filme que, quase em surdina, se impõe por si mesmo, pelas suas personagens, pelas situações que encena e recria mas também pela sua forma cinematográfica. E Nina Hoss é uma actriz extraordinária (ver "O encenador", 21 de Setembro de 2012).

Glacial



      “O Dia Antes do Fim”/”Margin Call” (2011), a primeira longa-metragem de J. C. Chandor, realizador e argumentista, é um filme fundamental sobre a eclosão da crise em que a América mergulhou em 2008. 
      Construído sobre o espaço fechado de uma grande empresa financeira, entre as suas personagens, que em diferentes níveis de responsabilidade e decisão trabalham para ela, vemos chegarem os sinais que anunciam um colapso iminente, assistimos aos esforços para, aos diferentes níveis, lhe fazer frente, às tomadas de decisão, à passagem à execução, tudo perfeitamente orquestrado para que o filme funcione com a precisão de um thriller. Há responsáveis? Há vítimas? Como somos prevenidos em dado momento por uma personagem, "a gente real”, “the real people” está lá fora, e como percebemos bem não há espaço ou lugar para o factor humano - os avisos da aproximação do problema tinham sido feitos e tinham sido ignorados.
                    
            Tudo apreciado perante os dados disponíveis, a decisão tem de ser tomada em nome dos interesses da empresa, sem lugar a outras considerações, por gente que é como nós, que embora não nos represente é parecida connosco ao ponto de podermos pensar que, não fossem eles mas outros, não fossem nem uns nem outros mas nós, as decisões teriam de ser tomadas. Responsáveis? Vítimas? Àquele nível, em que a crise surgiu e rebentou, a questão é sistémica e repete-se, com maior ou menor regularidade, com maiores ou menores consequências dentro do sistema.
      Eric Dale/Stanley Tucci, que detectou o problema, afasta-se enquanto pode. Sam Rogers/Kevin Spacey, o veterano director executivo, sabe que não pode impedir a máquina de funcionar e quando, no final, tenta sair, não consegue porque precisa do dinheiro. Frio e fleumático, John Tuld/Jeremy Irons toma aquela que considera a melhor decisão e espera ser obedecido. São todos tão sábios, tão senhores das regras e dos mecanismos do sistema, que não têm espaço para protestar, barafustar, opor-se, e é nessa medida que o filme funciona como um thriller: frio e implacável.
                     Penn Badgley as Seth Bregman, Zachary Quinto as PeterSullivan, and Paul Bettany as Will Emerson in MARGIN CALL,written and directed by J.C. Chandor.
          O factor humano torna-se negligenciável, quantas pessoas vão sofrer com esta crise também – Eric Dale conta a história da ponte que construiu, quantas pessoas passaram a poupar quanto tempo por causa dela. Não há, naquele caso, uma obra a mostrar, os números de um lado e do outro são sempre aleatórios e contabilizáveis de diferentes maneiras. Há sempre vencedores e vencidos nas crises periódicas do sistema, desde que ele existe, como John Tuld diz a Sam Rogers.
          Todos ganham muito dinheiro, e mais ganharão aqueles que ficaram com a resolução satisfatória do problema, além do que a saída da crise trará muito mais oportunidades. É assim mesmo, como todos sabemos. Ora o mérito do filme está em não procurar escapatórias, desculpas para ninguém, e encarar friamente os homens que friamente se debatem naquele espaço fechado em que, passada uma hora do filme, surge a bandeira americana nas paredes de uma sala de comando.
                    Jeremy Irons as John Tuld in MARGIN CALL, written anddirected by J.C. Chandor.            
            Assim vai a América, criando novos problemas para depois os resolver, assim ela faz andar o mundo. Podemos perguntar-nos se o sistema, o sistema capitalista em que esta crise ocorre, é justo, mas essa é outra questão. Todos percebemos que, para as personagens do filme, a questão não é essa, mas sobreviver à crise enfrentando os problemas. São como máquinas que decidem friamente o que têm a decidir, doa a quem doer, faça as vítimas que fizer, e J. C. Chandor não faz do seu filme um libelo acusatório, nem contra as suas personagens nem contra o sistema, preferindo mostrar como este funciona/funcionou com aquelas personagens, que agem de acordo com os seus próprios interesses e com os seus próprios códigos de comportamento. E não podemos deixar de admirar lógica, a fria racionalidade que no próprio sistema, apesar de tudo, se esconde e lhe permite funcionar.
         O único toque humano é dado pelo final, com Sam Rogers a cavar no jardim da sua ex-mulher a cova em que vai enterrar a sua cadela, o único ser a que estava afectivamente ligado – e Kevin Spacey é de novo extraordinário a interpretar a personagem com um lado mais humanamente reconhecível do filme, ao nível que antes dele era o de Jack Lemmon.  
                    Demi Moore & Simon Baker
              Claro que há também os outros filmes, que procuram tratar a crise e os problemas que dela derivam do lado humano daqueles que com ela mais sofrem, e que são sempre muito importantes (ver “A tempestade", 24 de Maio de 2012). Mas ser capaz de fazer este “O Dia Antes do Fim” e ser capaz de vê-lo friamente, como ele se oferece, é decididamente uma prova de fogo para o novo cineasta e para o espectador.
            Com um justo tratamento do espaço, com a câmara sempre muito próxima dos rostos dos actores, todos eles perfeitos no registo de fria sobriedade e de fria consciência do perigo e da responsabilidade de cada personagem (com fotografia, ela também glacial, de Frank DeMarco), com uma montagem seca e precisa (de Pete Beaudreau) e na quase total ausência de música (de Nathan Larson), este é um excelente primeiro filme que olha de frente o que tem para mostrar, diz o que tem para dizer sem rodeios nem contemplações. A cada um de nós fica atribuído o papel, indeclinável, de julgar os acontecimentos e eu, pelo menos, penso que não devemos alimentar injustificados complexos de superioridade, mas perguntarmo-nos o que faríamos no lugar daquelas personagens. E, claro, devemos também julgar o sistema, acresentando aquilo que cada um de nós dele sabe da sua própria experiência. A tomada de consciência, para que o filme contribui, é muito importante. De resto, o mundo continuou a girar, àquele nível uns ganham e outros perdem, muitos são sacrificados entre "a gente real" mas é sempre preciso continuar, nas condições que existirem, sem esmorecer. E estamos todos tão terrivelmente sós!