“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Avé César

    Acaba de ser publicado o primeiro volume da "Obra Escrita" de João César Monteiro (Lisboa: Letra Livre, 2014), que é alguma coisa que, por pouco usual no cinema, eu não esperava. Ainda em sua vida, do autor tinham sido publicados diversos livros com textos seus sobre cinema, alguns dos quais fizeram época, livros esses editados pelas edições & etc e há muito esgotados. Por isso, quando se anunciou a publicação dos seus escritos era da reedição desses livros que eu estava à espera. Mas enganei-me.
   Muito embora possa parecer discutível, a opção editorial (com coordenação de Vitor Silva Tavares, que escreve a introdução) de dar a lume os guiões dos filmes do cineasta tal como ele os escreveu, para além de confirmar aquilo que dele já sabíamos, i. e., que ele era um grande escritor (o que mesmo os inimigos que cultivou lhe concediam), permite comparar o que escreveu com os filmes concluídos, agora disponíveis em dvd.      
                    
   Que João César Monteiro foi um grande cineasta, dos mais cultos, originais e melhores do cinema português, já o sabíamos e os seus filmes provam-no e confirmam-no. Esta edição vem confirmar as suas qualidades, a qualidade do seu trabalho para cinema, o que só era preciso para quem dela duvidasse, e vem sobretudo permitir e facilitar estudos completos mais desenvolvidos que cruzem filmes e fontes anteriores.
   Em todo o caso, esta publicação funciona também e até especialmente como homenagem ao grande homem de cinema, rebelde e inconformista, que ele foi, e é, só por isso, de saudar, agradecer e aconselhar vivamente. Neste primeiro volume são publicados os guiões, as sinopses e planificações dos seus filmes até "Silvestre" (1981). Com uma surpresa, os livros éditos e esgotados chegam no fim.
    Ave Caesar, morituri te salutant.

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

O sopro das origens

        Como prelúdio aos concertos da violoncelista marcados para hoje, 24, e Domingo, 26 de Outubro, foram ontem apresentados no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian dois filmes sobre Sonia Wieder-Atherton. Tratar-se-ia de um acontecimento promocional banal não se dera o caso de ambos os filmes serem realizados por Chantal Akerman (ver "Obsessões", de 27 de Fevereiro de 2012).   
      O primeiro, "Avec Sonia Wieder-Atherton" (2003), começa por mostrar a artista a falar sobre a história da sua ligação à música e sobre a sua arte, para depois a apresentar na execução de peças célebres, sozinha ou acompanhada. O que distingue este filme é a realizadora interpor entre os executantes e a sua câmara uma parede com aberturas rectangulares, através das quais eles são vistos enquanto tocam. Com a câmara em movimento, este dispositivo simples confere uma densidade especial ao espaço e permite descobrir melhor em filme quem toca e o que é tocado.                                  
                


      O segundo, "Trois Strophes sur le nom de Sacher" de Henri Dutileux (1989), encena o fundo do espaço onde a violoncelista, com rosto concentrado, grave, toca a solo. No fundo do cenário abrem-se duas janelas atrás das quais é visível uma representação com três personagens, um homem e duas mulheres que, porém, como num filme mudo não se ouvem. Mais uma ideia perfeita de uma cineasta superior, que sem distrair da música a capta em toda a sua originalidade e dramatismo.
       Nestes dois filmes a música, através de uma grande executante, e o cinema, através de uma grande cineasta, juntam-se para grandes momentos de cinema e de música, de uma forma que é raro acontecer. De facto, aí Chantal Akerman serve-se da música como motivo fílmico mas para melhor a servir. E, claro, se puderem assistam aos concertos de Sonia Wieder-Atherton na Gulbenkian.

domingo, 19 de outubro de 2014

Agora completo

   Composto de quatro curtas-metragens de 25 minutos cada uma, o filme "Quatro", de João Botelho (2014), apresenta uma outra ambição que a de cada uma delas isoladamente (ver "Elogio do sensível", de 30 de Maio de 2013). Pensado em função de pares de irmãos artistas, João e Jorge Queiroz, Pedro e Francisco Tropa, que se contam entre os mais importantes artistas contemporâneos portugueses, o filme completo, que passou fora de competição no Doclisboa 2014, dedica um trabalho fílmico próprio e diferente a cada um deles.
    O segmento 1, dedicado a João Queiroz, surge na montagem final mais compacto e apurado, evidenciando a presença elementar sobretudo da Terra - e é excelente o plano sequência muito longo que acompanha o artista a caminhar pela serra, como são muito bons os seus textos ditos por dois actores. O segmento 2, dedicado a Jorge Queiroz, é mais centrado no espaço expositivo, por isso mais de interior, mas não se dispensa de fazer ouvir o som da Água, que se vira no anterior, agora a pretexto da sua exposição "Debaixo das pedras da calçada, a praia!" (2012/2013), que deu origem ao livro com o mesmo título (Fundação Carmona e Costa/Documenta, 2012) de que são lidos por uma presença feminina excertos do texto de João Miguel Fernandes Jorge. No primeiro a música, no segundo uma cantora que se vê e é pretexto para um contracampo muito saboroso com o artista.17182263_yg6zA.jpeg
    Se em todo o filme João Botelho interroga e mostra a criação artística, é no segmento 3, sobre Pedro Tropa, pintor e fotógrafo, em que com a subida à montanha e o vento o elemento central é o Ar, que ao deter-se na revelação da fotografia seguida da passagem para uma pintura ele mais interroga o seu próprio meio, a sua própria arte: o cinema. E aqui ouvem-se várias vozes a cantar. Mas talvez que o segmento 4, dedicado a Francisco Tropa, escultor, em que o elemento central é o Fogo e na música surgem sonoridades diversificadas, da percussão a sons mais estridentes, seja o mais difícil. Com a passagem por Veneza e a composição da escultura de ossos no final, é toda a memória do cinema neo-realista italiano que é convocada, de Roberto Rossellini a Luchino Visconti.
  "Quatro" de João Botelho é, assim, um filme conseguido e muito bom sobre algo muito importante e mal conhecido na arte: a criação. Muito bem o cineasta não se põe a dissertar sobre a arte e a criação artística, antes mostra o acto de criação a acontecer, comentado por textos e música, e no final de cada segmento algumas das obras de cada um dos quatro artistas, com o que presta uma excelente homenagem aos artistas mostrados e à arte em si mesma, incluindo a arte do cinema (sobre João Botelho ver também  "Grande fôlego", de 19 de Setembro de 2014).

Tudo tem o seu tempo

    Depois de uma trilogia sob a forma de mini-séries para televisão, aliás muito boas, o alemão Edgar Reitz, um dos nomes mais destacados do cinema novo alemão dos anos 60, regressa ao tema e ao título num filme de longa-metragem muito longo, dividido em duas partes na sua exibição comercial, que como filme autónomo coroa o projecto de forma superior: "Heimat - Crónica de Uma Nostalgia"/"Die andere Heimat - Chronik einer Sehnsucht" (2013).
    Situado no século XIX, entre 1842 e 1844, numa aldeia da Renânia Palatinato, Schabbach de seu nome imaginário, o filme constrói-se a partir do diário escrito por Jakob Simon/Jan Dieter Schneider sobre os seus sonhos de um novo mundo nas Américas, proveniente das suas leituras, em contraste com a realidade em que vive: vida difícil, privações, fome, morte. Com dois irmãos, Gustav Simon/Maximilian Scheidt e Lena Zeitz/Mélanie Fouché, casada e com uma filha, o nosso sonhador vê-se apanhado na trama da realidade, que o faz trabalhar como ferreiro com o pai. 
                     Die andere Heimat - Chronik einer Sehnsucht
     Para fazer frente aos dois irmãos, o mais velho, Gustav, muito desembaraçado, o mais novo, Jakob, pouco habilidoso mas capaz de corrigir as invenções do outro, surgem duas amigas: Jettchen Niem/Antonia Bill e Florinchen/Philine Lembeck. Com grande atenção aos detalhes sociológicos e antropológicos de época, o cineasta estabelece todas as diferenças e proximidades sociais, sexuais e etárias, com plena individualização de cada personagem, de forma que este novo "Heimat", cronologicamente o primeiro, surge com grande vivacidade e pleno de contrastes no seu preto e branco que poucas imagens a cores, a maior parte delas localizadas, vêm pontuar.
    A intensidade dramática cresce na segunda parte, com o encontro de Simon com Franz Olm/Christoph Luser, que leva o primeiro a abrir-se mais para o mundo exterior. Começam então a desenhar-se planos para emigrarem para o Novo Mundo, simultaneamente com periódicas doenças da mãe dos três irmãos, Margarethe Simon/Marita Breuer, que durante as suas "ausências" tem sonhos de passado (os filhos mortos) e de futuro.
                                                  
    Edgar Reitz recupera aqui o melhor do cinema alemão num filme ambicioso, que demorou vários anos de filmagens e implicou a reconstrução inteira de uma aldeia, sobre uma época crucial da Alemanha do século XIX. Sem assomos de super-produção histórica, sempre rente às personagens e ao meio, com uma mise en scéne de grande precisão e de enorme beleza o cineasta constrói o passado próximo da Alemanha do Século XX, a que dedicara as anteriores mini-séries televisivas.
     Quase a finalizar o filme, a assombrosa sequência da partida de Gustav e Jettchen na carroça conduzida por Jakob, que não vai partir com eles, com o travelling para trás tirado da traseira sobre aqueles que ficam. Depois, enquanto esperam notícias dos emigrantes, a visita a Simon do senhor Alexander von Humboldt/Werner Herzog vem ligar tudo, todos os tempos, cada um no seu: o passado e o presente.
                             Die Andere Heimat Home From Home Still - H 2013
      É para que se façam também filmes como este que o cinema existe. Entre as histórias individuais dadas a partir do exterior e a saga de uma época, talvez aqui, nos rostos, nas situações, no quotidiano de uma aldeia imaginária, elucidativos também sobre a interioridade de cada uma das personagens, Edgar Reitz tenha ido mais longe do que alguma vez antes fora na tentativa de compreender e explicar a história do seu pais.

domingo, 12 de outubro de 2014

Um regresso desejado

   Iniciou-se na passada sexta-feira a continuação do ciclo "Harvard na Gulbenkian - diálogos sobre o cinema português e o cinema do mundo" que, com curadoria de Haden Guest e Joaquim Sapinho, teve a sua primeira série, dividida em seis capítulos, entre Novembro de 2013 e Março deste ano (ver "Cinema capital", de 24 de Novembro de 2013).  
    Neste seus novos seis capítulos, até Janeiro de 2015 esta importante inciativa propõe filmes de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, Agnès Varda, Matthew Porterfield, Catherine Breillat, Bruce LaBruce, Joaquim Sapinho, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, Tsai Ming-Liang, Claire Denis, Vítor Gonçalves, José Luis Guerín, Manoel de Oliveira e Aki Kaurismäki, mas também de João César Monteiro, Robert Bresson, António Reis e Margarida Cordeiro, entre outros.                       
                   
    Numa ideia de programação e debate muito importante, os filmes e os cineastas seleccionados são a garantia de que esta é uma iniciativa que merece prosseguir, de que é sem dúvida muito recomendável e, por isso, a seguir atentamente.
  Apenas pude ver um filme, "Putty Hill", de Matthew Porterfield (2010), um novo cineasta independente de Baltimore que aí apresenta uma boa ideia, a da morte de alguém novo, Cory, para o funeral do qual convergem família e amigos, que são ouvidos sobre a sua memória do falecido, uma ideia muito bem explorada em termos visuais e sonoros (o fora de campo, a música), com os depoimentos provocados por um entrevistador invisível e a exploração de espaços comuns (muito boa a festa de despedida) e de espaços pessoais (muito bom o final).
                   
  Matthew Porterfield é, pois, mais um nome a juntar ao novíssimo cinema independente americano, com um outro filme anterior a este, "Hamilton" (2006), e um outro posterior ,"I Used to Be Darker" (2013), que sempre com o realizador como argumentista ou co-argumentista (na autoria da história com Jordan Mintzer em "Putty Hill") significam o início de uma obra que vale a pena  acompanhar e só graças a esta iniciativa pudemos começar a conhecer.
    Daqui saúdo Haden Guest e Joaquim Sapinho por esta nova série de "Harvard na Gulbenkian", a segunda de um ciclo de programação que vem demonstrar que o que há a fazer em Portugal sobre o cinema e fora do país sobre o cinema português está a ser feito e muito bem feito (ver também "Como artista", de 9 de Março de 2014).

domingo, 5 de outubro de 2014

A vida moderna

    Cada vez mais um produto da cultura de massas e cada vez menos uma arte, o cinema reserva-nos ainda algumas surpresas que as reúnem, cultura de massas e arte. É o caso do novo filme do americano David Fincher, "Em Parte Incerta"/"Gone Girl" (2014), que procede a uma escalpelização da América actual semelhante à de David Lynch em "Twin Peaks", há mais de 20 anos.                     
                     Best: Rosamund Pike has arrived
    Este é um filme superior porque reúne em si o olhar desapiedado sobre a actualidade e uma narrativa com ecos da narrativa do cinema clássico americano, sem as cedências de género mas com o acréscimo de lucidês sobre a sociedade actual. Poderia passar por um woman's film mas excede-o, poderia passar por um filme policial mas contorna-o para se decidir por mais um filme pessoal que sai do receituário comum de Hollywood para se situar ao nível do grande cinema.
    Nick/Ben Affleck e Amy Dunne/Rosamund Pike são um casal comum, moderno dos nossos dias, que vai de New York para o Missouri onde ela subitamente desaparece, deixando que a suspeita sobre a responsabilidade do que lhe aconteceu recaia sobre o marido. A arte de David Fincher está em agarrar numa narrativa aparentemente banal pelo melhor lado, o da sua construção segundo dois pontos de vista diacrónicos, o de Nick e o do diário de Amy, passando inteiramente o odioso da situação para ele a partir do final da primeira hora.
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     O esclarecimento surge no final, deixando, porém, intacta a crítica do meio e dos media numa sociedade liberal em que tudo, até o impensável, é possível, sem para isso anular a individualidade de cada personagem. Baseado no romance de Gillian Flynn (edição portuguesa Bertrand, 2013), também autor do argumento, "Em Parte Incerta" define-se com a indefinição das personagens: Nick, comprometido com uma outra ligação, em permanente jogo com a imagem que dele a televisão dá; Amy voltada sobre si própria, o seu passado, em que esteve presente um seu antigo apaixonado, e o seu problemático futuro.
     Se a questão do cineasta continua a ser o tempo (ver "É o tempo, estúpido!", de 29 de Janeiro de 2012, e "O tempo outra vez", de 22 de Abril de 2012) é-o agora triplamente: porque o tempo é o presente, porque a montagem é em geral curta (como é habitual nos filmes de Fincher) e por isso abrevia, e porque a construção temporal do filme duplica as mesmas datas contadas do desaparecimento de Amy de perspectivas diferentes, como em "A Rede Social"/"The Social Network" (2010) já acontecia. Mas a perspectiva de David Fincher é a de que a vida é assim, a sociedade é assim, e, embora mantendo um olhar aceradamente crítico, de que é preciso conhecê-la nos seus próprios mecanismos sociais e aprender a lidar com eles.
                   
      "Em Parte Incerta" é um filme notável e terrível a que há que estar atento, muito bem construído mas sem que a sua construção faça esquecer as personagens e a narrativa que a justificam. E com ele, depois dos dois primeiros episódios de "House of Cards" (2013) o cineasta refirme-se como um dos nomes mais importantes do actual cinema americano.