“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

terça-feira, 30 de setembro de 2014

O sonho completo

      Desde cedo no cinema (os anos 10 e 20) o produtor adquiriu má reputação por, nos Estados Unidos, se opôr ao realizador, o criador do filme. Desde os anos 60 que tal foi desmentido em vários pontos do mundo, nomeadamente em Portugal graças a um grande produtor: António da Cunha Telles.
     Homem de invulgar cultura cinematográfica e sensibilidade para o cinema, o que o levou a fundar as Produções Cunha Telles que estiveram na origem da primeira fase da recuperação da dignidade do cinema português num momento decisivo para o país, ele foi, de facto, a eminência parda do Novo Cinema Português dos anos 60, que tornou possível.
                   
   Além de produtor também realizador, Cunha Telles foi a personalidade indispensável para que Paulo Rocha, Fernando Lopes e António de Macedo, mas também Faria de Almeida e Manuel Guimarães, dessem um moderno decisivo passo em frente no cinema portugês, num movimento em que os seus próprios filmes, "O Cerco" (1970) e "Meus Amigos" (1973), vieram mais tarde a ocupar lugar central. Mas desde cedo ele dedicou-se também à co-produção internacional (em filmes de Pierre Kast e François Truffaut, nomeadamente), conferindo uma outra dimensão à sua actividade.
    Ele continuou a ser uma personalidade muito importante como distribuidor com a Animatógrafo, que fez chegar a Portugal Sergei Eisenstein, Jean Vigo, Jean Renoir, Roberto Rossellini, Robert Bresson, André Malraux entre muitos outros. Depois do 25 de Abril um homem do cinema raro e muito influente, quer como produtor, co-produtor e produtor executivo, quer como realizador ("As Armas e o Povo", 1975, "Continuar a Viver ou Os Índios da Meia-Praia", 1976), quer como distribuidor. Mas foi ainda responsável do Instituto Português de Cinema (IPC) e da Tobis portuguesa. Já nos anos 90, enquanto continuava a trabalhar em pleno, mesmo como realizador (depois de "Vidas", 1984, "Pandora", 1993), produziu uma notável série de tele-filmes para um canal privado de televisão
                   
    Um bom filme não pode existir sem um produtor inteligente como António da Cunha Telles contra todas as adversidades foi e continua a ser, pelo que se existe uma poética da produção (e existe) ela passa por permitir fazer o que vale a pena ser feito por quem é capaz de o fazer no momento próprio, mesmo se misturada com a ingenuidade proveniente do entusiasmo pelo cinema e sobretudo quando associada ao propósito de fazer chegar os filmes aos espectadores, o que é o sonho completo do filme. Foi por isso inteiramente justificada a retrospectiva que, misturadas todas as funções, lhe dedicou este ano a Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema.
     Quem quiser estudar seriamente o cinema português e o cinema em Portugal nos últimos 50 anos tem de, forçosamente, passar pelo nome dele. Homem inteligente, culto e afável, que nunca pactuou com a mediocridade e com o seu exemplo criou escola, o António foi e continua a ser o grande senhor do cinema português, que daqui saúdo cordialmente, a quem agradeço o muito que todos, em gerações sucessivas, lhe devemos e a quem desejo mais filmes seus depois de "Kiss Me" (2004).

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Domínio absoluto

    Três anos depois de "J. Edgar" (ver "Controverso", de 17 de Março de 2013) Clint Eastwood apresenta agora "Jersey Boys" (2014), aparentemente um filme insignificante sobre um grupo de músicos dos anos 50, baseado num musical da Broadway. E digo insignificante porque, comparado com os seus outros filmes, esta espécie de musical serôdio parece carecer de dimensão. Mas digo aparentemente porque com um cineasta da dimensão dele deve estar-se precavido contra aparentes facilidades. 
                         jersey-boys-vincent-piazza-erich-bergen-john-lloyd-young-michael-lomenda
       A maneira como vejo este "Jersey Boys" é como uma homenagem do cineasta ao cinema americano dos anos 50, quer pelo seu tema, quer pela sua forma, quer pelas citações cinematográficas e televisivas que envolve (há dois planos na escadaria do barco que citam expressamente Douglas Sirk), o que faz com que seja tudo menos um filme inocente. Trabalhando sobre argumento de Marshall Brickman e Rick Elice, Clint Eastwood não se dispensa de apresentar uma história americana exemplar, com cada um dos membros dos "The Four Seasons" inteiramente tipificados e com um meio circundante, musical e extra-musical, ele também típico e de época.
      Com muitas "piscadelas de olho" para o interior do cinema americano, nomeadamente as suscitadas pela presença de Christopher Walken no elenco, este é um filme que se impõe, e impõe o seu realizador, pelo domínio total de todos os seus mecanismos, formais e narrativos. É, além disso, um filme que usa muito bem a fotografia insaturada (de Tom Stern) e a música omnipresente, terminando com um número musical dançado sobre o genérico de fim - um filme que na sua ingenuidade faz sentido na obra do cineasta. Mas tem de se reconhecer que ele aqui joga sem risco, como que para definir de forma mais clara o seu lugar na história do cinema, usando para o efeito alguma auto-complacência que se compreende.
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    Não me dispensarei, contudo, de dizer que em "Jersey Boys" Clint Eastwood pretende apresentar de si próprio uma imagem política e cinematograficamente correcta, o que, pese embora toda a admiração que o filme provoca, não deve impedir de identificar uma imagem conservadora da América, que o próprio filme suscita pela época em que decorre, longe de todas as suas polémicas passadas e presentes e até dos filmes anteriores do cineasta, o que resulta de, sendo um filme de época, como musical se pretender situar fora do tempo.
    Mesmo assim, para cobrir todo o espectro dos géneros o cineasta fez o musical que formalmente faltava na sua carreira (onde contudo havia já "A Última Canção"/"Honkytonk Man", 1982, "Bird - Fim do Sonho"/"Bird", 1988, e o episódio "Piano Blues" para a série televisiva "The Blues", 2003, que revelavam o seu amor pela música) e dá uma lição de serenidade e de domínio formal e narrativo. Com votos de que arrisque mais, como fez em "A Troca"/"Changeling", um outro filme de época, e "Gran Torino" (2008), por exemplo, continuo evidentemente à espera do seu filme seguinte (sobre Clint Eastwood, ver também "Sabedoria", de 11 de Fevereiro de 2012).

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Faz sentido

    Tendo-se estreado promissoramente no cinema com "O Último Combate"/"Le dernier combat" (1983) e "Subterrâneo"/"Subway" (1985), o francês Luc Besson tem prosseguido desde os anos 90 uma carreira internacional em que o seu melhor filme é "O Quinto Elemento"/"The Fifth Element" (1997), um filme de ficção científica, género pelo qual tem manifestado preferência.
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     Não surpreende, pois, que o seu mais recente filme, "Lucy" (2014), seja mais um filme de ficção científica, em que ele cruza o género com a personagem solitária que vem dos seus filmes iniciais, nomeadamente "Nikita - Dura de Matar"/"Nikita" (1990) e "Léon, o Profissional"Léon" (1994). Para mais, este é um filme que encara audaciosamente a ficção científica (o grau de exploração da capacidade cerebral humana), não mostrando medo do conhecimento.
      Com a protagonista, interpretada por Scarlett Johansson, perseguida por um gang taiwanês e disposta a experimentar em si própria possibilidades desconhecidas do cérebro humano, "Lucy" faz uma viagem arrojada pela história da humanidade e pelo seu futuro com recurso a efeitos especiais justificados e bem utilizados, procurando uma caução científica na figura do Professor Norman/Morgam Freeman. 
                   lucy-scarlett-johansson-morgan-freeman
    A partir de argumento seu, o cineasta mostra-se inteiramente consistente com a sua obra anterior, perante a qual "Lucy" faz sentido. A intromissão de sequências de humor, em Paris (a perseguição automóvel, o hospital), justifica-se, e o filme mantém até ao fim o mistério que contrói, sem preocupações de verosimilhança mas chamando a atenção para questões pertinentes: a investigação científica, o tráfico de drogas.
    Não sou um admirador incondicional de Luc Besson mas reconheço a sua marca pessoal neste seu novo filme, uma marca pessoal que existe e é de saudar. E juntar Scarlett Johansson e Morgan Freeman é uma boa ideia, que se mostra inteirmente justificada.

Dispersivo

      "Sacro Gra" (2013) é um documentário de Gianfranco Rosi sobre a circular que circunda a cidade de Roma e os seus habitantes. Com dois anos de filmagens e oito meses de montagem, o filme ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza do ano passado.                  
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    Este curto historial não me impressiona especialmente pois, apesar de apresentar uma visão panorâmica sobre os habitantes ao longo da circular e da ausência de música na banda-sonora (o que está bem), durante a primeira hora o cineasta procura as imagens mais belas, não as mais verdadeiras, as personagens mais típicas, não as mais autênticas, mantendo assim uma exterioridade quase indiferente aos dramas humanos que apresenta, como num retrato turístico do que em Roma o turista não vê.
     Porém, na última meia-hora, depois da sequência dos mortos e do cemitério, o filme alonga-se sobre o mais banal, pequeno e insignificante, e a câmara arrisca uma maior proximidade das personagens, o que, abstraindo mais do local, permite um maior distanciamento em relação ao meio descrito, na direcção de uma maior verdade em breves notações. Então sim, "Sacro Gra", postos de lado os aspectos formais mais vistosos, mesmo as boas ideias de montagem como colagem da parte anterior, e mantendo a ausência de música salvo no final, define e descreve uma paisagem humana mais tocante e verdadeira.                  
                     sacro-gra
      Assim Gianfranco Rosi ultrapassa na última parte a falta de personagem central que sirva de fio condutor e agarra o significado da própria insignificância individual, reduzida mas também ampliada na sua dispersiva existência dada de modo fragmentário.
      Falta, contudo, a este filme o lado de experiência vivida, que o poderia transfigurar e estava presente em "Roma de Fellini"/"Roma" (1972), o seu possível modelo fora do documetário, permanecendo a maior parte do tempo exterior e quase indiferente, salvo perante o obviamente mais chocante mas também o mais vistoso.      

terça-feira, 23 de setembro de 2014

O cante da terra

     Considero que continua a ser muito bom sinal a estreia de documentários no circuito comercial português. Do grande documentarista português, de origem brasileira, da actualidade, Sérgio Tréfaut, acaba de estrear "Alentejo, Alentejo" (2014), um filme muito bom sobre o cante alentejano.
                     
     No filme surgem grupos corais masculinos e um feminino em plena actuação ou durante ensaios (no cemitério, dois homens e duas mulheres) com toda a força interior que o cante alentejano transmite a partir de vozes profundas e graves, próprias de um povo diferenciado e consciente de si próprio, do seu passado, da sua cultura e da sua condição. Além disso, esparsos surgem depoimentos pessoais, sobre o cante e sobre o Alentejo, do maior interesse e dados de seguida, sem cortes; sequências em escolas com gente miúda que fala sobre a família, os mais velhos e os emigrados; planos da terra, de aldeias, que metonimicamente (a parte pelo todo) falam do meio - de forma justa em breve lapso de tempo dão o contexto telúrico e social.
       Mas o que sobretudo se destaca neste filme são o próprio cante e os próprios cantores, com especial atenção no final para aos cantores mais novos, que asseguram a continuidade da tradição. É que há alguma coisa de difícil e complexo neste cante apenas vocal que tem que ver com o próprio ser dos alentejanos, que através dele exprimem da melhor maneira a sua originalidade para quem os queira escutar.
                     
      E aqui faço questão de sublinhar que estamos, neste caso, perante verdadeira cultura popular, a cultura do povo, e não perante aquilo que os media por tal fazem passar mas que é cultura de massas. E fica muito bem ao cinema e a Sérgio Tréfaut abrir a cortina sobre uma prática cultural enraízada, que merece esta divulgação sem enfeites de modo a chegar-nos, em contexto, em toda a sua seca autenticidade.
      Todo o cometário social e político dos alentejanos passa pelo seu cante, o que de modo muito satisfatório "Alentejo, Alentejo" capta e apresenta para todas as audiências - e recordo que o cineasta tem tido, nos seus documentários anteriores ("Lisboetas", 2004; "A Cidade dos Mortos", 2009) a arte de mostrar o menos visível e menos conhecido. Aqui é a dignidade do próprio povo alentejano que com o seu cante nos chega. Motivo suficiente para que o cante seja objecto do mesmo apreço e protecção que Palestrina.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Desperdício

    "Villa Amalia" é um filme de Benoît Jacquot (2008) baseado no romance homónimo de Pascal Quignard que, lamentavelmente, falha a adaptação, falha o livro e falha o filme. Tratando-se de um cineasta de referência da sua geração no cinema francês (ver "Os esquecidos", de 7 de Abril de 2013) e de um escritor e pensador de referência das letras francesas, seria de esperar que o filme pelo menos mantivesse o tom acre e violento da protagonista, Ann/Isabelle Huppert, o que de maneira nenhuma acontece. 
                     Villa Amalia : Foto Benoît Jacquot, Isabelle Huppert, Jean-Hugues Anglade
      Visto esta semana no Arte, o filme revela um retraímento perante o material literário e narrativo de origem que como mero apontamento superficial o desfigura. O cinema, e em especial o cinema francês, tem destas infantilidades banais de transposição cinematográfica correcta e até chique que não adiantam nada em relação à literatura e se limitam a uma leitura superficial e bem comportada.
    Dir-me-ão que acontece a todos os cineastas em todas as cinematografias, e poderá ser verdade, mas não era de maneira nenhuma de acontecer a este escritor às mãos deste cineasta. Enchendo desnecessariamente a primeira parte, Benoît Jacquot desperdiça inteiramente a sua segunda parte, fundamental para a compreensão do acesso da protagonista à sua própria verdade como mulher e como pianista, inextricáveis, o que passa pelo desaproveitamento de Isabelle Huppert, que como pianista foi muito mais longe em "A Pianista"/"La pianiste", de Michael Haneke (2001).   
                     Villa Amalia : Foto Benoît Jacquot, Isabelle Huppert
       Prova de que, mesmo nas mãos de um cineasta cotado e com actores de primeira, o cinema pode ser uma simplificação e um empobrecimento da literatura às mãos de quem menos se esperaria. E por "Villa Amalia" compreendo o esquecimento em que, até tempos recentes, Benoît Jacquot caiu.

Grande fôlego

     O novo filme de João Botelho, "Os Maias - Cenas da Vida Romântica" (2014) segundo o romance de Eça de Queirós, é um óptimo filme que faz perfeitamente sentido na obra do cineasta português, sobretudo depois de "Filme do Desassossego" (2010). Justamente depois deste e de "4" (ver "Elogio do sensível", de 30 de Maio de 2013) fazem inteiramente sentido os cenários do pintor João Queiroz, excelentes, que visualmente, com o ponto de vista, definem o próprio filme.
                     "Os Maias - Cenas da Vida Romântica" de João Botelho
     A adaptação literal do famoso romance de Eça justifica-se plenamente, já que preserva o seu ponto de partida e amplia-o com os meios próprios do cinema. Fiel a um estilo e a um entendimento pessoal do cinema, João Botelho faz os antecedentes da narrativa surgirem no  início, a preto e branco, e a transição para a cor funciona plenamente.
     Mas devido à adaptação, feita pelo próprio cineasta, as personagens têm vida própria, evoluem, e as diversas situações do filme, conhecidas de todos, surgem com grande frescura e novidade. Sublinho especialmente a cena fundamental em que, perante Carlos e Ega, Afonso da Maia confirma a origem de Maria Eduarda, em que o tempo pára por arte do realizador, do escritor e dos actores, como pára no romance original.         
                    
     A concretização pictural dos cenários acompanha os cenários teatrais, o que leva "Os Maias" para um artificialismo que joga muito bem com o carácter realista do romance, assim respeitado, depurado e transformado de forma pessoal. No cast apenas considero discutível a opção por uma brasileira, Maria Flor, para Maria Eduarda, enquanto Graciano Dias como Carlos, Pedro Inês como João da Ega, João Perry como Afonso da Maia, Maria João Pinho e Adriano Luz como os Gouvarinhos são, com os restantes, inteiramente convincentes em interpretações superiores muito bem dirigidas, o que permite captar um tom de época por meios justos e justamente além do mero realismo, como apontamentos localizados no espaço e no tempo.              
     Mas há mais. A encantatória voz-off narrativa de Jorge Vaz de Carvalho, que ao ler o romance em ligação com a imagem junta tudo de uma maneira muito inteligente e apropriada em termos cinematográficos.Tal como existem as referências à pintura e à música da época, superiormente aproveitadas de modo a darem, elas também, o justo tom de época possível num filme, e que explicitam o trabalho do criador do filme.
                    
   Se puderem, não deixem de ver a versão longa, integral de "Os Maias", em que o filme surge em todo o seu esplendor cinematográfico pela mão segura e pela cabeça visionária de João Botelho, em todo o seu heterogéneo e perene sabor crítico: de crítica social, política e das mentalidades. Portugal esté na mesma, diz o cineasta, o que deve ser levado em consideração. Mas também sobre isso somos, como espectadores, convidados a tomar posição.

Na primeira pessoa

      Credenciado técnico de som, Joaquim Pinto realizou e produziu em Portugal três boas longas-metragens de ficção entre 1988 e 1992 ("Uma Pedro no Bolso", "Onde Bate o Sol" e "Das Tripas Coração") e partiu depois para o Brasil, onde realizou e produziu diversos documentários com Nuno Leonel. Dele nos chega agora um documentário de longa-metragem, "E Agora? Lembra-me" (2013), filme de uma outra ambição e de um outro alcance porque nele, na primeira pessoa do singular e filmando-se a si próprio, o cineasta conta a sua experiência de convívio com a Hepatite C e o HIV.
      Ora este é um filme que merece a nossa melhor atenção por ser construído no presente sobre os fragmentos da memória do cineasta, por ter uma utilização superior da linguagem cinematográfica e por ter como objecto uma experiência de sofrimento humano a que não devemos ser indiferentes, tanto mais quanto tem na sua origem o convívio com um vírus largamente espalhado na actualidade e muito perigoso.  
                     
   Com uma duração muito longa, "E Agora? Lembra-me" assume abertamente um registo diarístico, em que Joaquim Pinto vai desdobrando a sua memória de toda a sua vida, largamente identificada com o próprio cinema, com particular atenção aos tempos em que passou a conviver com aquele vírus e com os sucessivos tratamentos médicos a que ele o obrigou. E a apresentação da sua relação com Nuno Leonel vem esclarecer que entre os dois existiu e existe uma história de amor.
      Mas ao apresentar a sua própria vida como integrando uma história de amor o cineasta está a ser completamente sincero consigo próprio e com os espectadores, o que, completado pela sua (e de Nuno Leonel) reflexão filosófica, pelos frequentes grandes-planos de rosto seus e planos de pormenor de pequenos animais, enriquece sobremaneira o filme. Além disso, no seu recolhimento ao interior do país confronta-nos com a desertificação local deste, e ao alongar o seu olhar para a pré-história, para o cosmos e para a religião elabora uma cosmovisão pessoal, o que dá uma outra dimensão à primeira pessoa do singular utilizada.
                      E agora lembra me
     De caminho, Joaquim Pinto evoca grandes nomes da história do cinema, com muitos dos quais trabalhou e que conheceu, de que me permito destacar aqui Robert Kramer e João César Monteiro, o que torna o seu filme relevante também como convocação da história recente do próprio cinema. Além disso, conta a história do HIV, ainda hoje mal conhecida, o que torna o filme inteiramente exemplar.
       A mim o que me toca mais é, contudo, o assumir da primeira pessoa do singular por Joaquim Pinto, com os seus momentos mais confusos e mais emotivos, mesmo quando olha em volta de si, o que confere a este "E Agora? Lembra-me" o cunho pessoal de testemunho vivido. Ele continua a ser, agora mais do que nunca, um nome essencial do cinema das última 4 décadas, o que justifica inteiramente a retrospectiva que a Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema  lhe dedicou no início deste mês de Setembro.

sábado, 13 de setembro de 2014

O dom e o sinal

        Depois de um filme muito bom, "Blue Jasmine", 2013 (ver Blue Moon", de 21 de Setembro de 2013), Woody Allen precipitou-se no seu filme seguinte, "Magia ao Luar"/"Magic in the Moonlight", 2014, em que, depois de "Meia-Noite em Paris"/"Midnight in Paris", 2011 (ver "Um americano em Paris", de 12 de Agosto de 2012), volta aos anos 20, desta vez a partir de Berlim 1928 e centrando-se no Sul de França, na Côte d'Azur e na Provença. Longe de ser um filme menor, apesar da sua construção lenta, da abundância de diálogos e do tom misto de comédia romântica, é um filme abismado no desencontro e na beleza.  
                     Cinemascope – Magia ao Luar (1)
     Como pretexto narrativo minimal e esotérico, um mestre ilusionista, Stanley/Colin Firth, é desafiado a desmascarar uma jovem mulher, Sophie/Emma Stone, que se apresenta como espírita e medium junto de uma família abastada da Côte d'Azur. Ora sem fazer a defesa de tal prática, o filme acaba por confrontar o racionalista e snob Stanley com o facto de irracionalmente, depois de a ter desmascarado se apaixonar por Sophie.
     "Magia ao Luar" tem momentos muito bons, como o da avaria do carro e da trovoada, que culmina no observatório astronómico, aquele em que, com a tia Vanessa/Eileen Atkins na sala de operações depois de um acidente, Stanley dá por si a rezar por ela, ou a conversa dele com a tia no final, e Woody Allen volta a dar muito boa conta de si mesmo sem aparecer como actor, tornando o seu filme uma bela peça de ironia e de defesa mas também de crítica do espírito racional.
                   sauntering.jpg MAGIA AO LUAR FOTOGRAFIA
        Colin Firth está muito bem na interpretação de uma personagem autosuficiente e segura de si até ao excesso, algures num meio caminho entre Cary Grant e Rex Harrison, e Emma Stone muito feliz como pequena americana do Minnesota, à cabeça de um elenco inesperado mas muito bom, como é uso do cineasta. E fiquei desta vez agradavelmente surpreendido pela variedade de escolhas musicais numa banda sonora muito boa e muito bem utilizada.
        Com o seu ar despretensioso de quem se sente obrigado a continuar a fazer pelo menos um filme por ano, "Magia ao Luar" é um bom filme que não desmerece na obra do cineasta, em que faz inteiramente sentido. E o seu deslubramento pela beleza, juntamente com a subtileza da narrativa e o brio das interpretações, faz o encanto de um filme que não deve ser minimizado.

De olhos bem abertos

     O programa semanal Arte Reportage iniciou hoje, Sábado 13 de Setembro, a transmissão de uma série de 4 documentários sobre os Refugiados: "Réfugiés". Esta série tem a particularidade de cada filme ser da responsabilidade de uma personalidade do mundo das artes - o primeiro documetário, "Let my people go", é realizado pelo cineasta francês Régis Wargnier.
     Num mundo atravessado por conflitos graves, uns muito divulgados outros menos, saber mais e melhor, pela sua própria voz e pela daqueles que tentam acudir-lhes, sobre aqueles que se vêem forçados a deixar a sua terra e todas as suas referências para procurarem noutro lugar uma vida condigna, é uma questão que nos interessa a todos. 
                     ARTE Reportage
       Por isso recomendo esta série de documentários, transmitidos mensalmente até Dezembro próximo por um programa de referência no documentário numa estação televisiva de referência. Quem vive bem, no conforto ou no desconforto de uma civilização que lhe proporciona, pelo menos em espectáculo e entretenimento, aquilo de que precisa, tem o dever de estar atento àquilo e àqueles que não gozam do mesmo estatuto e dos mesmos benefícios.
      Para mais, o Arte decidiu muito bem escolher olhares qualificados, o que significa olhares únicos, para olharem para esta questão, pelo que estes nem sequer são documentários comuns. Para mais informações, consultem o site do Arte, em
www.arte.tv/fr
      Aconselho vivamente, até porque o Arte Reportage convida os espectadores... Mas vejam, pelo menos vejam e mantenham-se informados.

domingo, 7 de setembro de 2014

Como um sonho

     "Spring Breakers: Viagem de Finalistas"/"Spring Breakers" (2012) confirma Harmony Korine como um novo nome muito prometedor no cinema americano. Com inteligência, o cineasta, também argumentista, constrói um filme invulgar e cativante, desenvolto e muito bom.
                     Spring Breakers
     A viagem de finalistas que dá o título português ao filme é construída não só como a concretização de um sonho das protagonistas mas também como uma realidade que elas, com sucessivas defecções, vivem como um sonho. Assim a personagem de Alien/James Franco surge como uma peça central desse sonho a partir do momento em que elas são presas.
    Na viagem inabitual a um outro lado da América - o de "Scarface - A Força do Poder"/"Scarface", de Brian de Palma (1983), com Al Pacino -, cada uma delas sente a atracção por esse mundo mas cada uma delas, em momentos diferentes, acaba por dele sair - aliás, as duas últimas deixando atrás de si uma razia que só como sonho se compreende. Mas o próprio recurso inteligente à câmara lenta (retardador), assim como a música, muito bem escolhida e muito bem utilizada numa verdadeira montagem audiovisual, empurram o filme para um registo onírico que lhe quadra muito bem. 
                      
     Dessa maneira a viagem das protagonistas torna-se uma verdadeira "viagem iniciática", atraente e violenta, que se compreende e lhes fica bem com viagem de regresso, que encerra o sonho. Mas há alguma coisa no trabalho de Harmny Korine que faz com que neste filme tudo, cada personagem e situação, acabe por ocupar, sem forçar, o seu lugar próprio na narrativa visual e sonora transposta como sonho.
      Depois de ver "Spring Breakers: Viagem de Finalistas" percebo melhor o bom acolhimento que o cineasta tem tido junto da crítica internacional e numa distribuição comercial que deve continuar a chegar a Portugal.

Um ar de família

   "Americano" (2011) é a primeira longa-metragem realizada por Mathieu Demy, também argumentista, produtor (com a mãe, Agnès Varda, e a irmã, Rosalie Varda, como co-produtoras) e actor principal. A originalidade e o encanto do filme, com realização depurada, decorre de ele ser uma homenagem ao pai do cineasta, Jacques Demy (ver "Era Nantes e amanhecia", de 30 de Abril de 3013), concretamente aos seus filmes "Lola" (1960) e "Model Shop" (1968), este feito em Los Angeles.
                    
     Depois de saber da morte da mãe em Los Angeles, Martin/Mathieu Demy empreende a viagem de Paris para a Califórnia, onde é recebido por Linda/Geraldine Chaplin, que a contragosto o reencaminha para uma Lola/Salma Hayek, que terá sido amiga da sua mãe e posteriormente recambiada para o México. Entre artista de cabaret e prostituta, Lola não faz a vida fácil ao protagonista mas talvez o leve a compreender o amor de mãe, de que ele duvidava em relação à sua (surgem imagens de menor dimensão da infância de Martin com a sua mãe nova/Sabine Mamou, que são excertos da infância de Mathieu incluídos por Agnès Varda em "Documenteur", 1981, que cria esta personagem).  
                     Divulgação/The Grosby Group
     No enrolar e desenrolar de uma história centrada no passado, no presente Martin descobre os outros e descobre-se a si próprio num mundo que lhe é estranho, a que é exterior. E em cada gesto de uma, aliás talvez falsa, Lola, nós recordamos Anouk Aimé como Lola, ela também entre artista de cabaret e prostituta. Na sua própria incerteza, os diálogos entre Martin e Lola são luminosos - Salma Hayek, que foi Frida Kahlo em "Frida", de Julie Taymor (2002), está prodigiosa e o próprio Mathieu Demy mostra presença e dotes especiais como actor.
                    
    Com actores de excepção (Jean-Pierre Mocky faz o pai, Chiara Mastroianni a mulher, Claire, de Martin, Carlos Bardem interpreta Luis, o dono do Americano, o cabaret em que Lola trabalha), Mathieu Demy consegue situar o seu filme fora do espaço e do tempo, num ponto em que confluem toda a memória do cinema e a sua própria memória do seu pai, muito justamente convocado em forma de homenagem que mais ninguém, a não ser o próprio filho conseguiria construir sob a forma de alusão sem que passe por homenagem.
    Destas pequenas coisas, pessoais, inteligentes e sentidas eu gosto sempre muito. Tanto mais quanto, afastada a reverência e para a afastar, o realizador salpica o seu filme de traços de humor e de auto-irrisão, que juntamente com a sua arte de filmar as mulheres lhe conferem um afectuoso ar de família.