“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 31 de maio de 2015

Tragédia e beleza

    "Timbuktu", de Abdelrrahmane Sissako (2014), é o primeiro filme deste cineasta da Mauritânia a estrear em Portugal. Sabia-se que ele é um cineasta importante mas nunca antes o pudéramos confirmar, o que agora acontece. Deste modo, a revelação acompanha a confirmação.
                     Timbuktu - Mundo Blá
     Passando-se nas proximidades de Timbuktu, o filme coloca frente a frente uma pacífica família, o casal Kidane/Ibrahim Ahmedi e Satima/Toulou Kiki, com a sua filha Toya/Layla Walet Mohamed e o jovem pastor Issan/Mehdi Ag Mohamed, e o grupo jiadista que domina a região e aí impõe a sua lei fundamentalista. Só que, muito inteligentemente, esse conflito, sempre presente e até de forma chocante dadas as proibições envolvidas, é tratado com ironia (a discussão sobre o futebol, o jiadista que não está à-vontade para o seu discurso perante uma câmara) e sobretudo mediado por um outro conflito, entre Kidane e o pescador que mata uma vaca sua e em seguida ele mata na mais bela cena do filme.
    No desenvolvimento dramático subsequente, que passa pelo pedido em casamento de Toya pelo chefe jiadista e pela morte de dois habitantes locais (por lapidação, nada menos), Kidane é condenado à morte e quando, no final, Satima vem ao seu encontro, são ambos mortos a tiro. 
                     Timbuktu - Mundo Blá
     O filme não se perde em grandes e rebuscadas questões cinematográficas, antes se estabelece entre a corça do início e do fim e Toya em fuga no final, numa expressão de liberdade ameaçada e ferida, o que enquadra a tragédia e prolonga o conflito em pura beleza primitiva para além da sua própria consumação.
       No pleno domínio dos meios do cinema, Abdelrrahmane Sissako é um cineasta que sabe o que quer e o que faz. Também co-argumentista de "Timbuktu", com Kessen Tall, ele sabe mostrar o lado humano de ambos os lados e a ultrapassagem dos limites de ambos os lados, sem desculpabilizar ninguém e levando o filme ao seu desfecho apropriado. Com uma realização sóbria e muito segura, este é um filme que nos faz desejar conhecer a obra anterior do cineasta - quando a distribuição cinematográfica e a edição dvd em Portugal entenderem que merecemos mais do que os clássicos mais óbvios.

Sobre arte

   O mais recente filme do documentarista americano Frederick Wiseman, "National Gallery" (2014), é mais uma obra-prima do cinema numa obra em que elas abundam com especial concentração nos anos mais recentes.
    Sem ter antes filmado a instituição museal, na sua linha de filmar as instituições americanas e, mais recentemente, também europeias o cineasta escolhe para o efeito a mítica National Gallery, em Londres, e pelas suas salas e corredores vagueia para detidamente mostrar pinturas, mas também para fazer ouvir comentários detalhados de quadros célebres. Como fizera nos anteriores "A Dança - Le Ballet de l'Opera de Paris"/"La danse" (2009) e "Crazy Horse" (2011), não deixa de incluir a discussão dos problemas de gestão da instituição, especialmente difíceis na actualidade.  
                      National Gallery - Examining Portrait of Frederick Rihel on Horseback by Rembrandt
     Mas o que mais impressiona neste filme é que ao filmar o museu Wiseman filma a arte de uma vez por todas, com um brio e um apuro que roçam a perfeição a esse nível ao alcance do cinema - só Peter Greenaway por caminhos ficcionais e Jean-Marie Straub/Danièle Huillet por caminhos documentais terão ido tão longe quanto ele aqui vai, ao nível de "A Arca Russa"/"Russkiy kovcheg", de Alexandr Sokurov (2002). De facto, ao mostrar os quadros no espaço museográfico e ao dar a palavra a curadores, guias e restauradores, "National Gallery" - sempre primorosamente iluminado, o que é uma questão essencial neste caso - oferece detalhes sobre a situação de cada quadro no tempo, na obra e na época respectivas, o que os cometários dos responsáveis do restauro situa perfeitamente em termos temporais, de degradação material e recuperação provisória.
     No filme entram também, e de forma decisiva, as outras artes - a arquitectura, a música, a poesia, a dança - além do próprio cinema (no outro filme que está a ser feito no museu durante a rodagem deste), o que constitui o seu acume em termos de perfeição e completude. Que os problemas de gestão do museu sejam aqueles não surpreende. Agora que a juventude não esteja ausente é significatico num filme que tem, muito justamente, o cuidado de mostrar sempre os visitantes.
                      national-gallery
     Frederick Wiseman não é um cineasta fácil nem nunca procurou a facilidade, tendo dedicado a sua obra cinematográfica justamente ao mais difícil, ingrato e espinhoso. Contudo, os seus filmes são sempre de uma grande beleza, como com este de novo acontece, e de uma grande justeza que na montagem finalmente se define.
   Sobre arte aconselho vivamente a série "Pallettes" do canal franco-alemão Arte, da responsabilidade de Alain Jaubert, que tem edição dvd. Mas aconselho neste momento sobretudo "Mirleos", de João Miguel Fernandes Jorge (Lisboa: Relógio d'Água, 2015), o mais recente livro de poesia de um dos melhores poetas portugueses contemporâneos, sobre o Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra.    
                     National Gallery exterior
       Porque estas coisas, mesmo sem que vocês dêem por isso, ligam-se todas. No Louvre está até 29 de Junho uma grande exposição sobre Nicolas Poussin (1594-1665), o grande pintor do barroco francês ao qual Louis Marin, entre outros, dedicou um estudo de referência que não está disponível em português - "Sublime Poussin" (Paris: Seuil, 1995). Embora alguns dos seus quadros estejam disponíveis on-line justamente no site da National Gallery, aqui
http://www.nationalgallery.org.uk/artists/nicolas-poussin
se puderem vão a Paris ver, porque a reprodução técnica não substitui o original.

domingo, 24 de maio de 2015

Toda uma vida

   O documetário de Manuel Mozos "João Bénard da Costa - Outros amarão as Coisas que eu amei" (2014) é um filme muito bom e importante em que, com apoio nos textos do João lidos pelo seu filho João Pedro, toda a vida dele é recordada.
    O João Bénard foi uma das grandes singularidades do primeiro século do cinema em Portugal e era importante que a sua memória fosse preservada e transmitida pelo cinema. A sua actividade de grande programador e grande crítico, a esse título grande autor e grande escritor, marcou mais do que uma geração, e urgia que pudesse ser recordada de forma fiel e sistemática pelo próprio cinema.
                    
   Ora Mozos não é um cineasta qualquer nem um documentarista acidental, tem muito boas provas dadas de persistência e amor ao cinema, o que a investigação investida neste filme e a forma como ele é construído confirma de forma exuberante. De facto, pelas imagens e palavras do próprio João Bénard da Costa é toda uma vida  apaixonada e todo um pensamento apaixonante que não se ficaram pelo cinema que nos são restituídos, com o comentário do belíssimo poema da Sophia dito pela Ana Maria.
    É urgente conhecer os escritos do João, que estão a ser sistemática embora parcialmente publicados postumamente, para bem compreender o cinema, de que ele foi um estudioso excepcional que este filme nos devolve íntegro e inteiro com imagens históricas e belas imagens, sobretudo da Arrábida e de Veneza, com a fotografia a cumprir a sua função de memória pessoal e os excertos dos filmes mais amados a entrarem no lugar certo, no momento certo.
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     Para quem, como eu, pensa que o documentário é mais impessoal do que a ficção no cinema, com a presença do próprio realizador no filme inculcando inteligentemente a ideia de diálogo "João Bénard da Costa - Outros amarão as Coisas que eu amei" de Manuel Mozos é o maior desmentido, da parte de quem conhece muito bem aquilo de que fala e ama o meio que utiliza (sobre João Bénard da Costa ver "Mestres de pensar", de 7 de Março de 2013; sobre Manuel Mozos ver "Tempo português", de 12 de Abril de 2015).
     É preciso continuar a amar o cinema e a poesia, porque a vida continua sempre. E o amor, a bondade e a beleza também.

domingo, 17 de maio de 2015

No fim o início

   O filme inédito póstumo de Paulo Rocha, "Se Eu Fosse Ladrão... Roubava" (2011), é o extraordinário testamento de um dos maiores cineastas portugueses de sempre.

                    Se Eu Fosse Ladrão, Roubava (2011) de Paulo Rocha
Aí ele reconstitui, com argumento e diálogos de Regina Guimarães, a vida de seu pai, Vitalino jovem a partir da morte dele (Chandra Malatitch e Luís Miguel Cintra), com um muito oportuno e justificado recurso a excertos de filmes seus, o que, embora ele já não tenha podido completar pessoalmente o filme, transforma este numa leitura final que o próprio Paulo Rocha propõe da sua obra.
    O mergulho no tempo assim proporcionado, com colagens fabulosas da Isabel Ruth de "Os Verdes Anos" (1963), a de "O Rio do Ouro" (1998) e a de agora, torna este um filme vertiginoso sobre o tempo e o cinema, sobre o tempo no cinema de Paulo Rocha, o tempo para os seus actores e espectadores. O diálogo castigado de Regina Guimarães, já sua cúmplice desde o filme de 1998, acrescenta um tom memorialista de época que enriquece "Se Eu Fosse Ladrão... Roubava" do lado de um verismo popular vagabundo, entre o rural e o urbano.
                   Foto 1
    Revermos os excertos escolhidos pelo cineasta de "Os Verdes Anos", "Pousada das Chagas" (1972), das duas Ilhas, a dos Amores e a de Morais (1982, 1984), de "Máscara de Aço contra Abismo Azul" (1989), "O Rio do Ouro", "A Raiz do Coração" (2000), constitui uma metaleitura com todas as ligações por ele propostas, de que destaco o recorrente "Leva-me daqui!", que rima bem com a personagem do jovem Vitalino, e a ligação de Isabel Ruth na actualidade com os bailes, o de "Os Verdes Anos" e o de "O Rio do Ouro", este com a canção que dá o título ao filme.
    Enriquecido também, e sobretudo, pelo momento em que Paulo Rocha se dirige ao espectador, "Se Eu Fosse Ladrão... Roubava" estabelece mesmo as ligações oportunas e pertinentes entre a vida do Vitalino passado e personagens e cenas-chave da obra de Paulo Rocha, que vista por ele e por ele comentada pode ser vista a uma outra luz: a da sua memória do passado familiar anterior ao seu próprio nascimento, muito bem documentada em fotografias de época.
                    pr dirigindo marcia breia
      Bem visto, este é um filme paralelo no seu propósito, embora não idêntico no seu resultado, a "Visita ou Memórias e Confissões" (1982), o filme de Manoel de Oliveira para ser mostrado apenas depois da sua morte. Em qualquer caso eloquente e esclarecedor, o que juntamente com a sua beleza visual, que alterna, mesmo na reconstituição, o preto e branco e a cor, constitui o seu mérito maior, na afirmação de uma pureza pessoal que Oliveira ali também para si reivindicava.
       A operação Paulo Rocha agora em curso (e já não era sem tempo), juntando o início e o final da sua obra, está apenas no princípio daquilo que lhe é devido: a sua obra toda disponibilizada em sala e em dvd. Às distribuídoras e editoras cabe cumprirem a sua obrigação (sobre o cineasta ver "Sob o mesmo signo", de 12 de Fevereiro de 2012, e "Dois cineastas maiores", de 31 de Dezembro de 2012).

sábado, 9 de maio de 2015

O ritmo de tudo

    "Éden"/"Eden" (2014), a quarta longa-metragem e o mais recente filme de Mia Hansen-Love, este ano homenageada no Indie Lisboa, é uma obra muito apreciável por, ao revisitar a geração francesa dos anos 90 e acompanhá-la durante 21 anos, conseguir captar de modo muito feliz a sua vitalidade e o seu entusiasmo, deixando-nos assim um retrato em movimento dela. Sem moralismo ou falsos pudores.
                    Eden, Mia Hansen-Løve
     Ocupando-se mais de DJs do que de músicos, o filme de Mia Hansen-Love trata em todo o caso de música e estilos musicais e consegue a façanha notável de criar um ritmo musical próprio, que é forte e envolvente sem minimizar as suas personagens, antes acompanhando-as na sua actividade e nos seus dramas comezinhos mas importantes do quotidiano, próprios da idade e da época. Compreensivo e empático embora, o olhar da cineasta sobre as suas personagens é também crítico.
     O maior limite de "Éden" é o de não afirmar uma diferença geracional própria além da que decorre dos factos da vida e dos ambientes, do ritmo musical e vital. Fora disso, esta juventude aqui mostrada é igual a qualquer outra em qualquer outro tempo e lugar. Mas o ritmo do filme, que lhe advém da música e da montagem, justifica plenamente a sua conclusão.
                     Eden
     Obtida a colaboração de grandes nomes da música contemporânea em pequenos apontamentos, a cineasta consegue, entre Paris e New York, onde decorre um segmento importante do filme, dar mais uma prova muito positiva do seu grande e original talento. E da falta de carisma dos actores retira o carisma do filme. 
       Com argumento co-escrito com o seu irmão Sven, "Éden" é um filme sobre o ritmo, da música, da vida e do filme, sobre o tempo que passa a correr e já passou, deixando como marca as suas sugestões próprias (sobre Mia Hansen-Love ver "Amanhã à mesma hora", de 29 de Agosto de 2013).    

quarta-feira, 6 de maio de 2015

A flor da magnólia

     Entra-se por um longo travelling para a frente em "Visita ou Memórias e Confissões" de Manoel de Oliveira (1982), o filme que ele rodou em 1981 e destinou a ser mostrado só após a sua morte, o que agora sucedeu. Visita à casa no Porto em que ele com a família habitou durante 40 anos até ter tido que a vender, entrado o portão, e sem corte, chega-se a uma magnólia e as vozes (Diogo Dória e Teresa Madruga) dizendo um belíssimo texto escrito por Agustina Bessa-Luís começam a tomar corpo no filme.
    Apresentada a casa em momentos de cinema que se contam entre o melhor que o cineasta fez, Manoel de Oliveira filma-se a si próprio falando para a câmara depois de surpreendido a escrever à máquina. Entre regressos recorrentes das duas vozes ele fala de si e dos seus, do seu trabalho, dos seus projectos. E há então algo de comovente em vê-lo e ouvi-lo falar de si, das suas memórias e confissões pessoais, sobre um dispositivo em que as fotografias antigas a preto e branco são visivelmente projectadas por ele contra a câmara num excelente exercício cinematográfico de quadro dentro do quadro. 
                    
     Mas há também a outra casa, a de sua mulher, Maria Isabel, no Douro, onde também viveu e trabalhou e que também visitamos, com a referência ao local em que trabalhava e a personalidades internacionais do cinema que aí o visitaram, assim como há a passagem pelas prisões do fascismo deste homem de cinema, reconstituída de forma muito feliz com a cumplicidade do escritor Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013), seu companheiro de infortúnio nesses dias - são planos secos e rápidos, como num curto filme de reconstituição dentro do documentário.
      O filme inédito de Manoel de Oliveira feito para os que lhe sobrevivessem, para a posteridade, é uma obra absolutamente fascinante e superior, feita para o cinema sobre uma vida dedicada ao cinema. A entrada é assombrosa, as vozes que pairam cativantes, as palavras dele claras e precisas, sinceras e inéditas elas também, a presença e a palavra de Maria Isabel indispensável, a referência à sua amizade com Paulo Rocha imprescindível, as imagens a preto e branco que incluem fotografias e filmes um grande achado muito bem explorado. E Beethoven fica ali muito bem.
     Eu que nunca tinha querido ver "Visita ou Memórias e Confissões" vi-o agora e fiquei encantado, pois além de ser uma ideia original é um excelente filme que nos devolve vivo o imenso cineasta que ele foi, acrescentando-lhe surpreendentemente, de modo definido e definitivo, a obra (sobre o cineasta ver "Por Manoel de Oliveira", de 15 de Março de 2015, e "Poética de Manoel de Oliveira", de 5 de Abril de 2015).

domingo, 3 de maio de 2015

O tesouro da alvorada

   Passou no 12º Indie Lisboa o último filme de Eugène Green, "La Sapienza" (2014), um filme em que ele recupera em Itália do seu infeliz filme português, "A Religiosa Portuguesa"/"La Religieuse portuguaise" (2009), em que, forçando tudo, tentava enfrentar, num tom essencialmente turístico, o mito sebástico. Embora se compreendesse a intenção, o resultado era muito mau.
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   Ocupando-se agora da arquitectura do barroco italiano, Eugène Green consegue não desmerecer dos seus primeiros filmes, bastante bons, baseados no plano fixo frontal : "Toutes les nuits" (2001), "Le monde vivant" (2003), "Le pont des Arts" (2004). Com uma narrativa minimal mas decente - um arquitecto, Alexandre/Fabrizio Rongione, e a mulher, Aliénor/Christelle Prot, são um casal em crise que decide uma viagem a Itália onde conhece dois irmãos, Goffredo/Ludovico Succio e Lavinia/Arianna Nastro, esta sofrendo de um mal estranho -, "La Sapienza" desenrola o seu projecto com a filmagem de obras de referência da arquitectura barroca italiana, entre Borromini e Bernini, sem se afastar da sua proposta estética.
     Pode-se considerar irritante a insistência do cineasta não só no plano fixo frontal mas também na geometria dos planos e nos diálogos solenes, que parecem querer preencher algum vazio existencial. Pesem embora as ingenuidades em que voluntariamente cai, movendo-se na fronteira entre o excesso e o ridículo "La Spienza" consegue firmar-se na margem estreita que os separa para se impor como obra invulgar, exigente e conseguida, onde o seu filme anterior claudicava.
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     Com momentos de grande beleza visual, o filme consegue envolver-nos no seu dispositivo e no seu ritmo quase encantatório, deixando-nos entregues a uma experiência nos limites da beleza e da história, com a inversão de papéis entre mestre e discípulo em viagem - durante a qual visitam a famosa igreja romana que dá o título ao filme - enquanto Aliénor fica a fazer companhia a Lavinia que recupera, e, interpretada pelo próprio cineasta, a referência à antiquíssima cultura dos caldeus a chamar a atenção para a actualidade e a caducidade de tudo. Os actores são bressonianamente impassíveis mas os seus corpos e rostos falam, enquanto a câmara, sem evitar os planos mais aproximados, estabelece uma distância deles sempre justamente regulada. Eugène Green sai, assim, com "La Sapienza" do limbo em que a sua experiência portuguesa o tinha mergulhado para esta sua "viagem a Itália".
    Claudio Monteverdi é muito bem utilizado num ambiente que ressuma barroco por todos os póros. Um filme que ingenuamente acaba bem, o que é sempre uma variante bem-vinda em tempos confusos e pessimistas.