“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Elogio do sensível

       "João Queiroz, pintura" é uma das quatro curtas-metragens de "4", de João Botelho, ainda em finalização, sobre quatro grandes artistas portugueses contemporâneos, e é por si mesmo, nos seus 25 minutos de duração, um filme admirável.
        Fiel a uma inspiração straubiana, que aqui converge com "Cézanne" (1989) e "Une visite au Louvre" (2003), de Jean-Marie Straub e Daniéle Huillet, o cineasta entrega-se a um exercício criativo, mais que a um exercício de estilo, ao filmar a pessoa, as palavras e os quadros do pintor, que parte de uma relação sensível com a natureza, com os objectos, com a vida para a sua criação, e não apenas de conceitos, que em vez de premissas, apesar de surgirem antes no filme são pontos de chegada. Para captar a percepção que está nas próprias coisas, na sua natureza sensível e perceptível, João Queiroz aconselha o contacto táctil, sensorial, com o que vai pintar, para que essa sensação passe para o que vai representar pictoricamente. "Pintar do natural não é copiar o objectivo, é dar forma a sensações." (1). Sabendo embora que o motivo fundamental não é, por isso mesmo, visível na representação visual.
                     
          Além de ser, e de maneira deliberada, uma lição de pintura, este filme é também uma lição de cinema, sobre o modo de filmar palavras e aquele que as diz, gente viva, quadros, conceitos. Com uma música que culmina, empolgante, em Wagner, o filme filma o rosto dos que dizem, repetindo-as, as palavras das lições de pintura, filma o próprio pintor a caminhar, silencioso, na Serra o Caramulo, filma as premissas dos conceitos, das lições, filma a natureza e o contacto táctil com ela (uma folha, verde), filma os quadros concluídos, parcial e dispersamente, como é inevitável. Ao fazê-lo como o faz, dando todo o destaque às palavras, ao contacto sensível, aos conceitos assim mediados, João Botelho pratica uma poética do sensível que vem da pintura (Cézanne, que precedeu o nascimento do cinema) e vem do próprio cinema (Straub/Huillet, nomeadamente nos filmes acima mencionados).
        Mas mostra também o pintor a pintar, a estabelecer o traço e a cor do que vai preencher a tela, primitivamente em branco, com o que filma o que é filmável do momento da criação, do acto de criação assim tornado perceptível, visível e partilhável quanto o pode ser na duração duma curta-metragem. Que eu saiba, ninguém no cinema português foi tão longe nesta questão como Botelho aqui vai.
                      
         Como um sopro, passa por esta curta-metragem a partilha do sensível de Jacques Rancière e a materialização do acto de criação como ninguém (salvo Henri-Georges Clouzot em "Le mystère Picasso", 1956, e Victor Erice em "O Sonho da Luz, o Sol do Marmeleiro"/"El Sol del membrillo", 1992) jamais o filmou. Tal como é, este filme é perfeitamente consistente com a obra do cineasta, nomeadamente com a sequência da «Marcha fúnebre para o Rei Luiz Segundo da Baviera» do "Filme do Desassossego", a sua última longa-metragem (2010) que com variantes e precisão prolonga e comenta. Talvez "João Queiroz, pintura" seja mesmo a obra-prima de João Botelho, de quem apenas não conheço os outros documentários que tem feito nos últimos anos.

Notas
(1) Paul Cézanne em carta a Émile Bernard em 21/10/1904, citado em "Paul Cézanne", de Élie Faure - edição portuguesa «"Paul Cézanne" por Élie Faure, seguido de "O que ele me disse..." por Joachim Gasquet», Sistema Solar, Lisboa, 2012, com a especial curiosidade de ter sido do segundo que Jean-Marie Straub e Danièle Huillet partiram para os seus dois excelentes filmes "Cézanne" e "Une visite au Louvre", que terão influenciado João Botelho nesta sua curta-metra

Um autor americano

          Agora que estalou a polémica ao mais alto nível entre os "Cahiers du Cinéma" e a "Sight & Sound" sobre a questão do autor no cinema a pretexto de um bom cineasta recentemente desaparecido, o japonês Nagisa Oshima (ver o número de Junho 2013 da "Sight & Sound"), vem mesmo a propósito o mais recente filme do americano Terrence Malick, "A Essência do Amor"/"To the Wonder" (2012), que é mesmo utilizado por ambas as partes nessa contenda.
         O filme, apesar de incompreendido por muitos, é muito bom, e vai no sentido de um cinema de autor no sentido de ambos os contendores nesta polémica relevante. De facto, Terrence Malick não é um tipo qualquer, mas alguém que atravessou um longo silêncio entre o seu início no cinema e um retorno regular, o que é sempre uma questão a ter em conta (ver "Poética de Terrence Malick", 5 de Fevereiro de 2012, e "Começar de novo", 12 de Agosto de 2012). O que pode ter provocado a incompreensão de muitos na Europa é o facto de o cineasta, depois de "A Árvore da Vida"/"The Tree of Life" (2011), ter enveredado por um caminho aparentemente contrário ao cinema americano maioritário e desprovido do que era considerado como o seu caminho real no cinema.
                    
          Com um estilo em tudo semelhante a "A Árvore da Vida", incluindo o uso da subjectiva indirecta livre, Malick trabalha aqui contra os seus filmes anteriores, como é suposto acontecer com um verdadeiro autor no cinema, ao dar-nos um filme que, continuando a ser cinema de poesia no sentido de Pasolini e Deleuze, não é exaltante nem gratificante. Mas o seu estilo pessoal continua presente, mesmo no que ilude e elide, como seja os planos individualizados da natureza, de que nos chegam apenas imagens comuns e pacificadoras, mesmo se simplificado por uma montagem curta.
           Para me fazer entender, este é um filme contra os anteriores filmes do cineasta, em que em vez de tratar da regeneração da vida ele fala da extinção do amor, da dúvida e do vazio. Ao fazê-lo como o faz, Terrence Malick, sempre argumentista e realizador (portanto autor em sentido pleno), em vez de apontar para o recomeço aponta para o fim, para o termo inelutável de um amor, no que se diz basear-se na sua própria história pessoal. Ora todos estamos (mal) habituados a um cinema americano assertivo, afirmativo, com finais felizes, quando aqui o cineasta, um tanto à maneira do cinema europeu, aborda uma experiência que acabou mal... porque acabou.
                    
          Ao abordar uma experiência sem saída o cineasta ergue-se à altura de um autor no sentido francês que, se Stéphane Delorme me permite, admite que um cineasta tenha não só diferentes abordagens mas também diferentes estilos (ver por todos Jean-Luc Godard), do que ele nem sequer aqui pode ser acusado. Esse é mesmo o elemento mais irritante deste filme, manter-se fiel a um estilo, exacerbá-lo mesmo, para um tratamento narrativo diferente. Mas aí estão notoriamente ausentes não apenas os planos de pormenor da natureza, que estavam nos seus filmes iniciais, como está ausente, entre os quatro elementos, o fogo - mesmo a luz artificial surge sobre o vazio, num filme percorrido por interiores vazios e por crepúsculos.
          Ora, ao fazê-lo Terrence Malick é perfeitamente consistente com os seus filmes anteriores, com os quais acentua o contraste, já que as personagens de "A Essência do Amor" vivem uma inquietante dúvida, um inquietante vazio, numa via que diria bergmaniana embora tratada de maneira original. Um casal que se faz e se desfaz, um homem que regressa a um conhecimento antigo, uma mulher devolvida à solidão (sem respeito da cronologia do filme), um padre com dúvidas sobre a sua fé. Aqui não há fogo, nestas personagens não há luz regeneradora, o que, não sendo habitual no cliché que temos de Hollywood, é completamente aceitável e compreensível numa perspectiva de autor.
                     Image
               Malick surge-me, pois, neste seu último filme, como irritantemente praticante de um cinema de poesia, próximo por vezes do vídeo-clip no pior sentido, mas como um autor, e um grande autor, no sentido dos "Cahiers" como no sentido da "Sight & Sound". É que o estilo no cinema tem a ver com a mise en scène, como no seu tempo defenderam a Présence du Cinéma e o seu chefe de fila, Michel Mourlet, e como Serge Daney muito bem notou a mise en scène é uma questão de moral, o que nos permite não gostar do estilo exacerbadamente poético deste filme aceitando embora, sem reservas, o seu carácter autoral. E será tanto mais fácil compreendê-lo quanto se pensar que a mise en scène passou a ser associada ao conceito de autor sobretudo a partir da nouvelle vague francesa e dos cinemas novos dos anos 60, que foram a principal semente lançada pela política dos autores e tornaram a mise en scéne parte consciente do próprio olhar e da sua moral em cada autor.
              Sendo o cinema um fenómeno artístico e não apenas comercial, nem sequer crítico, embora à crítica naturalmente sujeito, as expectativas em relação ao futuro de um cineasta não ingénuo nem inocente, como Terrence Malick é, mantêm-se intactas. De certa maneira, só agora ele está a começar, ao encontrar resistências no material narrativo que tem que explicitar a nível formal. O resto são injustificados preconceitos numa arte que ainda agora está a começar, muito embora uma polémica como a actual seja muito oportuna e mesmo saudável, em especial num tempo em que, como hoje sucede, os conceitos de autor, de mise en scène e de estilo deixaram de estar na moda, mesmo entre a crítica de cinema.

Pontifex Maximus

      O nº 17 da revista "Textos e Pretextos", do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, do Outono/Inverno de 2012, é dedicado ao poeta Herberto Helder, o nome maior da poesia portuguesa contemporânea, e está inteiramente à altura do seu objecto de estudo. A revista tem como Directora Margarida Gil dos Reis e este número, que tem como Editor convidado Manuel Gusmão, tem uma fotografia de Jorge Molder na capa.
     A bibliografia herbertiana conta já com alguns estudos de vulto, parcelares ou, mais raros, sobre toda a sua obra, e este número desta revista vem acrescer-lhe de forma muito digna e até decisiva pelo leque de contributos de grande nível que reúne sob a forma de ensaios e sob a forma de testemunhos, que na sua maioria ensaios também são. Destaco entre os primeiros os de Pedro Eiras e Rita Novas Miranda, "A pedra na cabeça. Herberto Helder, René Descartes, uma questão de loucura" e "Uma escrita para ver", respectivamente, entre os segundos os de António Guerreiro, Maria Filomena Molder e Silvina Rodrigues Lopes, pelo simples motivo de serem aqueles que, leitor herbertiano de longa data, mais me tocaram.
                                                               
       Tenho para mim que a poesia é uma das expressões literárias mais difíceis de gostar pelas boas razões, e que ou somos tomados por ela, ocupados, saqueados, divididos, ou então nem sequer valerá grandemente a pena pensar nisso. E na poesia portuguesa dos últimos cem anos há grandes poetas em termos absolutos, de modo que ou se começa por eles ou se acaba por chegar a eles. Vou nomear os maiores, com os quais convivo desde muito novo: Fernando Pessoa (claro), Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner e Herberto Helder. Embora tenha memória precisa de quando os comecei a ler não o vou contar, porque são memórias pessoais, aqui irrelevantes. Mas de entre estes quatro destaco sem dúvida o último pelo torvelinho primitivo em que a sua criação poética, indomável, sempre se tem movido: na poesia, na prosa ("Os Passos em Volta" é o seu "Livro do Desassossego"), na tradução.
        Há em Herberto Helder a ideia do poema contínuo que se torna avassaladora e nos permite entrar na sua obra por qualquer livro, qualquer poema, e continuar um percurso apaixonante e apaixonado sem parar, sem fim. A sua própria biografia pessoal, muito diferente das de todos os outros, aponta para um entendimento da vida, da arte, da escrita e da poesia original e único. Mas terá sido o longo e persistente trabalho pessoal, em que a reflexão assume contornos filosóficos na persegição poética de uma origem, de uma experiência e de uma identidade susceptíveis de serem partilhadas pela experiência comum, que o terá levado ao ponto de figura máxima, inimitável e insubstituível no panorama da literatura e da poesia portuguesa. Se Pessoa foi o drama em gente, ele é o drama ingente, e pressupõe-no na sua fulgente modernidade.
         De uma excepcional exigência consigo próprio, com os caminhos que desvenda e percorre, Herberto Helder fascina-nos com os seus saberes primordiais e agarra-nos com  as suas verdades elementares laboriosamente descobertas, saberes e verdades que, sendo sempre pessoais, se transmitem de maneira poderosa e irrefutável aos leitores, que neles descobrem sempre alguma coisa de novo em que nunca ninguém antes dele tinha pensado daquela maneira, mesmo se as ligações culturais do poeta são múltiplas, como este último número desta revista ajuda a compreender. E os saberes e as verdades dele são sempre procurados no sensível, no visível - há na sua poesia uma presença recorrente do cinema e da imagem em movimento -, no visualizável, de modo que lê-lo ou relê-lo é sempre entrar numa experiência única e pujante, de uma energia humana que trespassa o mundo que descobre e faz ver ao mostrá-lo e fazê-lo sentir por palavras, pela palavra poética, como dele e nosso.
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          Com isto não pretendo mais que chamar a vossa atenção para Herberto Helder, um poeta vivo que seria muito estranho alguém desconhecer, embora também aqui compreenda que ele é daqueles casos que ou se ama, perdidamente, ou se rejeita, o que significa sempre uma separação de caminhos e de companhias. Chamar a atenção para ele e para o nº 17 da "Textos e Pretextos", enriquecido por uma Cronologia da responsabilidade de Ana Raquel Fernandes e Rute Beirante, uma Bibliografia seleccionada, activa e passiva, da responsabilidade de Margarida Gil dos Reis, e um poema inédito, autógrafo. É um bom guia de navegação para iniciados e não iniciados
          Ao Herberto, como ao Shakespeare e ao Pessoa, eu leio-os em voz alta pela noite dentro, sempre no original, com o que me dou muito bem e aconselho que façam com o que gostam.  Com música ou no silêncio da noite: "- e é tudo quanto se pode aprender até que a noite venha/e desfaça,/a noite amarga" (Herberto Helder). E aí no cinema ninguém o pode, os pode substituir, só o cinema como cinema, filme a filme e no seu todo, com ele, com eles pode ser comparado e dialogar.

Sombras do passado

          Não se parece com nada a primeira longa-metragem de ficção de Ignacio Oliva, "La rosa de nadie"/"Nobody's Rose" (2011), um filme rodado em Cuenca, Espanha, com argumento baseado em factos reais do próprio realizador. E não se parecer com nada significa que, narrativa e formalmente, é inútil dedicarmo-nos ao exercício cinéfilo de perguntar quais as suas influências, embora ele tenha implícito um conhecimento alargado da história do cinema, em especial do cinema moderno.
          De uma grande sobriedade e de uma grande beleza, este filme investe narrativamente uma história comum embora humanamente radicada na memória e na perda: a memória de Daniel de uma mulher, Manuela, que no passado o levou ao hospital depois de assaltado e agredido, e que ele vai procurar encontrar de novo, a perda de Manuela cujo filho, Jaime, morreu. O encontro de ambos na casa dela, que tem escrita em duas paredes a frase Sólo queda nada, vai ser, assim, o encontro de duas solidões, embora Daniel suspeite que ela poderá ser para ele uma verdade sem solução. O final está muito bem construído sobre o que ele, cujo avô combateu na Resistência e morreu num campo de concentração nazi, chama a particular "solução final" dela e fecha um círculo que tinha começado quando do seu primeiro encontro.
           A  beleza deste filme está presente na sua construção visual, com planos de uma grande elaboração formal em que, para além de deixar sempre espaço aos seus actores, o realizador faz com que tudo o que está presente em cada plano, do plano geral ao primeiro plano, signifique por si na expressão fílmica, pela sua conformação cenográfica, cor, função, iluminação e pela sua situação no espaço, que se rebate sobre a superfície, como numa pintura - a profundidade de campo é mesmo negada em vários momentos, acentuando esse efeito de superfície de forma inteligentemente cinematográfica. Isto significa que "La rosa de nadie" tem uma importante dimensão plástica, em objectos, formas e cores presentes em cada plano, do primeiro plano ao plano afastado, em que as personagens surgem do fundo e caminham na direcção da câmara, ou dela se afastam sempre caminhando, ou antão caminham descrevendo um percurso horizontal definido, como sucede com Jaime, o filho de Manuela.
            Por sua vez, a música é muito bem utilizada, conferindo um tom próprio e contemporâneo a um filme que se constrói narrativamente com o uso frequente e justo da elipse e com o recurso a diversos e compreensíveis flashes do passado, formalmente com o aproveitamento sempre bem construído do fora de campo e do ruído ambiente. Neste contexto, as personagens secundárias tornam-se muito importantes, por darem as relações em gerações diferentes da dos protagonistas, as gerações do pai e do filho dela, com apontamentos muito curiosos sobre o pai dela e a sua jovem empregada chinesa, o dono do bar e a sua mãe, personagens que identificamos e acompanhamos no esboçar de outras, as suas histórias, de outras narrativas.
             Mas há outros apontamentos de artista neste filme, como a precisão do enquadramento, o súbito e fugidio aparecer do espaço vazio - como dois planos consecutivos de um céu azul, no primeiro dos quais ele é apenas atravessado por uma nuvem branca, no segundo surge por cima do topo de edifícios -, o desdobrar de uma cena em diversos planos, sempre justificados por razões visuais além das próprias personagens, a pressença do ruído ambiente. Os actores são surpreendentemente bons, com destaque para Ana Otero, muito bonita e sempre muito expressiva, e Carlos Leal, sempre muito seguro na defesa da sua personagem, ambos actuando em retenção, o que contamina todo o filme.
            Este não é, pois, um filme que caiba nos lugares-comuns da crítica de cinema, sempre refractária ao que num filme está para além dos actores e da narrativa, pois em "La Rosa de nadie" a imagem está, toda ela, sempre a falar por si própria e atenta ao que de mais sensível e secreto pode estar presente, mas também escondido em cada personagem, o que aqui os actores compreendem muito bem e as elipses ajudam a perceber na própria dispersão e diversidade das personagens.
         Uma primeira longa-metragem de ficção de um cineasta que anteriormente se tinha apenas dedicado ao documentário, este é um filme que defende o cinema com argumentos do próprio cinema - a fotografia é de Ángel Sáenz, a música de Rámon Paus e o som, directo, de Oscar Barros, que à semelhança dos actores se percebe terem tido uma participação criativa activa e muito positiva. Ignacio Oliva vem demonstrar com este seu filme de estreia na ficção que é possível fazer um bom filme com produção independente e sem recurso aos lugares-comuns da produção comercial, pelo que esta é uma estreia muito auspiciosa.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

A luz e as trevas

         Recortadas a negro sobre espaços vazios, desabitados, as dez fotografias de "Gloom", exposição que tem lugar no novo espaço da Quadrado Azul, na Rua Reinaldo Ferreira, 20-A, em Alvalade (Lisboa), dão-nos o olhar atento e depurado de Paulo Nozolino, um fotógrafo de excepção. Esta exposição começa, porém, com um poema de Bertolt Brecht, "Aos que vão nascer", traduzido por João Barrento, que  começa "É verdade, vivo em tempo de trevas!" e funciona como instruções de leitura para o visitante.
         As dez fotografias de "Gloom" são, como é habitual neste fotógrafo, a preto e branco, provas em brumeto de prata sobre alumínio, com o formato de 120x80cm, e preenchem as quatro paredes da sala da exposição de forma espaçada e bem distribuída, por forma a permitir uma aproximação e observação clara de cada uma e do conjunto. São fotografias tiradas na Bretanha, em França, e dão os restos, as sobras deste nosso mundo, sem figuras humanas ou sombra delas, apenas vestígios, ou nem isso, apenas detritos que funcionam como vestígios.
                                   
           Uma mesa vazia com uma pequena colher em cima, uma pá no solo, o intervalo entre duas paredes mostrado de viés, um urinol, uma tomada numa parede escalavrada, uma lâmpada que pende junto a uma parede. A visão intransigente do artista apenas nos dá objectos a diversas distâncias, mas em cada fotografia há um trabalho aturado sobre a luz e a sombra, cujo contraste é de novo central, como nas suas anteriores exposições.
           Regulando as distâncias e dominando os contrastes, Paulo Nozolino consegue dar em cada uma destas dez fotografias o lado material dos objectos em espaços vazios, o que decorre do seu insólito isolamento. Sobre o mundo actual e quem nele vive é isto que ele tem a dizer, e é extremamente eloquente sobre um tempo de trevas, para que remete o poema liminar de Brecht. As fotografias 2 e 9 são feitas e trabalhadas de tal modo que o contraste de luz e sombra evidencia o seu lado táctil, a primeira com o que sobrou de vigas de madeira que se cruzam, formando em crucifixo, um lenho vazio fruto do acaso, da erosão do tempo.
                   https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhzKjn7kArbCu2mCu555lCfrMjCz8_YpF873w84cqFN-0M4nuLqTeJ6RNddh6M2I8Ba5zeJvv_fmWGvl5PKjnFY6b1buMUcWZIrZ2hhGKCUvBdFMK0PqF_GPb-h9rzUxSULeDDcty86RY4/s1600/IMG_0435.JPG
             Ao olhar para onde olha e ao mostrá-lo como o mostra, o fotógrafo-artista prossegue um percurso pessoal único e admirável, que chega na última fotografia a uma grande proximidade que impõe o imediato e impede a percepção clara do objecto no seu todo. Cada uma destas dez fotografias é o resultado de um trabalho artístico exemplar, como se de cada uma delas dependesse o futuro do mundo, e se calhar até depende, num mundo em que são elas que falam por todos nós nas trevas em que vivemos. Umas trevas que é necessário perceber de que luz provêm, pois não há trevas sem luz, e esse é mesmo o tema destas dez fotografias.
             A depuração extrema de "Gloom" é a quinta-essência do trabalho de Paulo Nozolino, um artista inquieto e sempre em movimento, que nos impede de parar e felizmente, companhia preciosa, continua a acompanhar-nos. O branco nas suas fotografias é sempre desenhado pelo negro, com que contrasta, e o negro prolonga a luz de que devia nascer, e até nasce. Esta é a arte que interessa, que me interessa. Até 20 de Junho na Quadrado Azul.          
            
Nota
Sobre Paulo Nozolino ver "Que nada se sabe", 5 de Fevereiro de 2012, e "O tudo e o nada", 15 de Dezembro de 2012.

A aproximação do fim

      "Os Nossos Filhos"/"À perdre la raison" (2012) é o primeiro filme do belga Joachim Lafosse que estreia em Portugal. Embora baseado em factos reais não os segue literalmente, e está muito bem construído em volta das suas personagens principais, Murielle/Émilie Dequenne, Mounir/Tahar Rahim e André Pinget/Niels Arestrup.
       Acompanhando desde o início o par Mounir/Murielle, que depois de casarem vão viver com o pai adoptivo dele, André Pinget, o filme mostra-nos a evolução comum de um casal comum, ela europeia, ele marroquino, com as sucessivas filhas que vão nascendo, as questiúnculas resultantes de viverem em casa alheia com um intruso para eles, uma viagem primeiro de Mounir, depois de todos a Marrocos, onde vivem a mãe e a família dele.
                    
        É gradualmente que, a partir do terceiro parto, Murielle vai dando sinais mais inquietantes de instabilidade e depressão, com um primeiro comportamento excessivo com um aluno, excessivo da parte de quem é professora de alunos muito novos como ela é, com um quarto parto por cesariana e, sobretudo, com o espantoso plano dela a conduzir um automóvel enquanto ouve música, uma canção romântica, até rebentar em lágrimas e parar o carro.
      Durante todo este tempo, que corresponde à maior parte do filme, a câmara de Lafosse mantém-se muito próxima das personagens, dos seus rostos, de maneira que a modificação do comportamento de Murielle é dada de muito perto do seu elemento mais expressivo, o rosto - e Émilie Dequenne está sempre muito bem. É na parte final que a câmara se afasta mais para nos dar com maior precisão e distância os cenários e as personagens, até um final aterrador que sucede fora de campo e é apenas sugerido por uma elipse.
                                    
       Com uma construção temporal muito interessante devido ao frequente e apropriado uso da elipse, "Os Nossos Fillhos" tem uma construção do espaço em planos que encerram as personagens no universo familiar e social em que vivem com os seus problemas próprios, distribuindo-as judiciosamente no plano construído de forma precisa e fechada. Assim, a elaboração formal está na construção dos planos, que deixam o espaço estritamente necessário aos actores, todos muito bons e bem dirigidos, na música, que tem uma parte muito importante, e na montagem elíptica.
       Sem desenvolver excessivamente os dados psicológicos das personagens em benefício de mostrar secamente o desenvolvimento da situação através de causas e consequências, Joachim Lafosse cria um filme muito seguro que, sobre uma situação terminal, diz tudo o que é necessário para compreendermos a aproximação e a chegada do fim, sem explorar o melodrama, de olhos secos e quase friamente, o que aumenta o interesse do filme com um olhar de entomólogo, à maneira que era característica de Claude Chabrol, que certamente o teria apreciado. Pessoalmente, sou mais sensível a essa leitura imediata do que à leitura de tragédia grega para que a música coral (Haydn, Scarlatti) na sua solenidade pretende remeter, mesmo assim uma leitura que, proposta pelo próprio cineasta, deve ser considerada. O facto de se basear em factos reais apenas aumenta o interesse e justifica, sem dúvida, o respeito do cineasta e a secura do filme. Podia ser ficcional, e já era muito bom, mas ser baseado em factos e personagens reais aumenta o seu interesse e o seu alcance porque os ficcionaliza para os compreender. 

Poética de John Carpenter

      O americano John Carpenter foi um caso à parte e destacado no cinema da Nova Hollywood saída da reestruturação dos estúdios da era clássica, tornada necessária pela crise em que os lançara a concorrência da televisão durante os anos 50. Herdeiro do cinema clássico americano, nomeadamente de Howard Hawks e dos géneros, Carpenter foi também em muito devedor do espírito e do estilo da Série B.
    Esclareço que falo no passado porque John Carpenter é, neste momento, uma questão pretérita, com duas longas e duas curtas-metragens desde o início do Século XXI, das quais "O Hospício"/"The Ward" (2010) funciona como confirmação de um declíneo indesejável mas insofismável. Pelo que se pode antecipar neste momento, é previsível que ele ressuscitará para mais um ou outro filme final, que se espera e deseja recupere o seu espírito, o seu estilo e a sua poética no seu melhor.
                     
      Depois de um preliminar "Estrela Negra"/"Dark Star" (1974), o primeiro filme oficial de Carpenter, "Assalto à 13ª Esquadra"/"Assault on Precinct 13" (1976), recupera explicitamente o esquema narrativo de "Rio Bravo", de Howard Hawks (1959), pelo cerco feito à prisão de uma esquadra onde estão detidos três prisioneiros, embora esse não seja o seu único motivo narrativo. Agarrando assim a figura da inversão da Imagem-Acção que, segundo Gilles Deleuze, transforma em pequena a grande forma (in "L'image-mouvement", Paris, Les Éditions de Minuit, 1983, páginas 226-228), o cineasta vai manter-se fiel a essa inspiração em "Veio do Outro Mundo"/"The Thing" (1982), remake de "A Ameaça"/"The Thing from Another World" (1951), de Christian Niby com supervisão de Howard Hawks, perguntando-se no final se a coisa estranha, o monstro alienígena, não estará dentro do próprio protagonista, de que se terá apoderado, ou seja, dentro de cada um de nós.
        Uma tal suspeitosa sugestão vai ser o que de aproveitável e carpenteriano existe ainda em "O Hospício". Entretanto, John Carpenter enfrentara o filme de terror e revisitara os clássicos, nomeadamente Alfred Hitchcock e Fritz Lang, em "O Regresso do Mal"/"Halloween" (1978), "O Nevoeiro"/"The Fog" (1980) e "O Carro Assassino"/"Christine" (1983), que firmaram a sua fama no género, e entrara com estardalhaço no espírito e no estilo da Série B, que na sua obra vinha de "Assalto à 13ª Esquadra", com "Jack Burton nas Garras do Mandarim"/"Big Trouble in Little China" (1986), em que a acção voltava a dominar. 
                     
         Mas os filmes em que, a meu ver, se explicita e exprime melhor a poética de John Carpenter vão ser "Nova Iorque 1997"/"Escape from New York" (1981), "Eles Vivem"/"They Live" (1988), "Fuga de Los Angeles"/"Escape from L. A." (1996) e "Vampiros de John Carpenter"/"John Carpenter's Vampires" (1998), uma tetralogia que forma o núcleo duro da sua obra - uma obra em que "Elvis", feito para a televisão, funciona como esclarecedor do interesse do cineasta, frequentemente também compositor e argumentista dos seus filmes, pela música. "O Homem das Estrelas"/"Starman" (1984) e "O Príncipe das Trevas"/"Prince of Darkness" (1987) são como o verso e reverso do mesmo sonho (americano).
             Nas "Fugas" está presente o carismático e rebelde marginal Snake Plissens/Kurt Russell (que foi o actor-fétiche do cineasta), encarregado de missões de interesse nacional: resgatar um presidente raptado, cumprir a missão que lhe é cometida por um presidente vitalício, em ambos os casos em luta contra o tempo, o que dá também a estes dois filmes o tom de fuga em sentido musical. Aí o esquema matricial de "Assalto à 13ª Esquadra" é invertido, colocado de novo sobre os pés da grande forma da Imagem-Acção: há um estado de coisas, uma situação que é necessário transformar através de uma acção que só alguém como Plissens está à altura de empreender e cumprir. As alusões crípticas do sistema e da América abundam, em especial no segundo filme.
                                                  
         Contudo, olhando atentamente, é "Eles Vivem" o filme fulcral quer do ponto de vista da acção de um herói solitário quer do ponto de vista da crítica do sistema, pois aí o protagonista, Nada/Roddy Piper, defronta-se com as imagens daqueles que, como imagens, se tornaram já os senhores e os inimigos numa realidade só acessível através de óculos especiais, o que torna a alusão à própria sociedade americana na época do reaganismo e ao cinema hollywoodiano explícita e clara. E esse é um filme fulcral também porque o seu herói não é carismático, mas um tipo qualquer, um operário, o que pela primeira vez, embora na linha de "Nova Iorque 1997", remete de forma clara para o cinema de Sam Peckinpah (ver "Poética de Sam Peckinpah", 25 de Março de 2013).
         Se os hologramas de "Fuga de Los Angeles" aludem a um novo tipo de imagens não é, pois, por acaso e sem precedentes. E que "Vampiros de John Carpenter" recupere uma figura e uma imagem do próprio cinema clássico não é, também, inocente - e aí não é apenas visado o sistema mas a própria religião, que é discutida entre um dignitário indigno da Igreja Católica e um padre combativo (sendo tudo ficção, como é natural, permite por isso mesmo tornar a discussão mais acessível). Mas também aí um dos protagonistas é vampirizado, ou seja, o mal passa a ser-lhe interior, na sequência do que estava contido em "A Coisa", e volta a verificar-se a luta contra o tempo, como nas "Fugas", como nelas conferindo ao filme o tom de fuga musical que o torna mais que perfeito.
                        John Carpenter's Escape From L.A - Action-Adventure Movie
             Um segundo aspecto que releva da influência de Sam Peckinpah é a estilização das cenas de violência exacerbada, que são frequentes e soberbamente encenadas nesta tetralogia, com remissões também para o cinema clássico e o próprio cinema mudo, e a mais longa cena de pancada de que há memória no cinema americano em "Eles vivem".
      Entretanto (e este entretanto é muito importante), "Memórias de um Homem Invisível"/"Memoirs of an Invisible Man" (1992), "A Bíblia de Satanás"/"In the Mouth of Madness" (1994) e "A Cidade dos Malditos"/"Village of the Damned" (1995), remake de "A Aldeia dos Malditos"/"Village of the Damned", de Rolf Villa (1960), revisitavam o passado do cinema e a americana figura do mal, actualizando-a de forma superior em termos fílmicos e narrativos, na linha de "O Príncipe das Trevas", o que deve ser considerado um filão de inspiração muito importante do cineasta, mesmo como formando uma segunda tetralogia na sua obra, da qual, depois de "O Regresso do Mal" e os filmes que se lhe seguiram, resultará principalmente a sua fama como grande mestre do filme de terror.
                    John Carpenters Vampire  
         Quis-se ver em John Carpenter um mero representante, entre outros, de um cinema gore, que também, mas não exclusivamente, foi, com o que se pretendeu catalogá-lo e torná-lo inofensivo. Ora percebe-se bem revendo os seus filmes que ele foi (retomo o passado) um prodigioso cineasta de filmes de acção, que até recuperam o herói solitário, com eventual grupo de apoio mas sem grupo de pertença, como no western, ou então recuperam o grupo como tal - como Wild Bunch. Do outro lado, as ambíguas figuras do mal merecem uma atenção especial como reveladoras e levam o cineasta para uma outra vertente relevante da sua obra.
          Na sua audaciosa estrutura temporal, "Fantasmas de Marte de John Carpenter"/"Ghosts of Mars" (2001) já diminui a carga activa que vinha dos filmes anteriores, embora tente recuperar a figura do prisioneiro, que vinha de "Assalto à 13ª Esquadra", para uma nova situação exterior, o que até tem precedentes no western, nomeadamente em "O Comboio das 3 e 10"/"3:10 to Yuma", de Delmer Daves (1957). Pela sua própria estrutura temporal esse era já um filme mais elaborado formalmente e mesmo narrativamente, o que preludiava o impasse que os episódios televisivos que se seguiram, "John Carpenter's Cigarrete Burns" (2005) e "Pro-Life" (2006), na sua própria qualidade superior e no seu tom inequivocamente pessoal iriam confirmar antes mesmo da chegada do teminal "O Hospício" vir mostrar que o impasse era afinal um beco sem saída.
                            john carpenter
            Rebelde nos seus próprios termos e pelas suas próprias causas, John Carpenter assumiu no seu cinema um muito pessoal e interessante lado de crítica activa e na acção, mesmo, e até especialmente, quando com o tempo contado sempre a avançar para o confronto final. Ainda não é a pura adrenalina de Quentin Tarantino, que sofre outras influências, mas foi ele quem, na Nova Hollywood, levou mais longe e de forma mais pura um idealismo próprio do melhor do cinema americano desde a sua era clássica, que não hesita na estigmatização do mal. A sua foi, portanto, uma poética da acção pura e dura, em todas as suas vertentes, sem evitar o fantástico, o terror ou a ficção científica, que terão mesmo originado na sua obra uma poética do filme de terror. Mas a acção nos seus filmes tinha, ela própria, um carácter musical, com a música da sua própria autoria, o que poderá permitir falar, pelo menos nos melhores casos, de uma poética musical da acção.
          Teve argumentos seus que não pôde realizar pessoalmente e foram levados ao cinema por outros, assim como esteve na origem do argumento de filmes para televisão e mesmo de jogos de vídeo, além do que foram ou estão a ser preparados remakes de alguns dos seus filmes. Olhou de frente a América e nela identificou o próprio mal como nenhum outro. Não se podia ir mais longe do que ele, grande entre os maiores, foi.

domingo, 12 de maio de 2013

A solidão

        "Romulus, My Father" é o único filme até agora realizado pelo actor australiano Richard Roxburgh (2007). Com argumento de Nick Drake e Raimond Gaita, vai recuperar a adolescência do segundo, no início dos anos 60, na Austrália, para onde os seus pais, uma alemã e um romeno, tinham emigrado quando ele tinha 4 anos. Vi o filme no Arte inteiramente por acaso e fiquei surpreendido e encantado pela sua sobriedade, a sua simplicidade e a sua argúcia.
     Como será fácil compreender, não é especialmente difícil reconstituir uma povoação australiana do início dos anos 60, pelo que não é isso que surpreende neste filme. O que nele está primordialmente em causa e desperta especial atenção é a memória que se conserva dos primeiros anos de vida e das personagens que os habitaram, que no caso de Raimond foram personagens difíceis e com relações problemáticas: a mãe com uma segunda relação, de que acaba por nascer uma filha - uma mãe que se mata -, um segundo relacionamento dela que morre num acidente de viação e cujo irmão, amigo de Romulus, acaba por se matar também.
                   Romulus, My Father             
         Ora aqui impressionam duas coisas. Primeiro, a solidão a que as personagens do pai e do filho são remetidas pelas vicissitudes da vida e dos seres à sua volta. Segundo, trata-se da história verídica da adolescência de quem recorda, Raimond, em cujas memórias o filme se baseia - e aqui é de notar que se acompanha permanentemente o ponto de vista deste quando adolescente. Um terceiro ponto chama em especial a atenção, que é o facto de Raimond Gaita ser um filósofo e professor de filosofia vivo e em actividade, para cuja existência, trabalho e obra somos despertados, mesmo convidados a conhecê-los.
        Não lhe terá sido, pois, inútil a experiência dolorosa dos primeiros anos aqui recordados, e com ela terá do seu pai aprendido a importância da solidão numa idade em que ela é algo com que não é fácil conviver
                   
        Não, não vou falar nos actores (Eric Bana, Franka Potente, Kodi Smit-McPhee, Marton Csokas, Russell Dykstra), que são muito bons, nem na fotografia, de Geoffrey Simpson, excelente em especial na deslumbrante paisagem australiana, nem na música, de Basil Hogios, com referências de época muito apropriadas a nível diegético (Jerrey Lee Lewis), nem na realização, sóbria e segura. Apenas retenho aqui o que, a dado momento, o pai Romulus diz ao filho Raimond: "Não serás reconhecido pelos filmes que tiveres visto mas pelo trabalho que fizeres. A dignidade está no trabalho."       
        Vou sim, como me compete, remeter-vos para o que sobre as primeiras experiências da vida, a solidão e outras questões escreveu Rainer Maria Rilke (1875-1926) em "Cartas a um Jovem Poeta". Passado um século, na sua aparente inactualidade é mais actual do que nunca para todos nós, e por isso aconselho que o leiam ou releiam, como comigo aconteceu agora. A Rilke eu volto sempre. Mas a partir de agora vou também procurar a obra de Raimond Gaita, que não conheço.

Na fronteira

       João Canijo não pára. Logo a seguir a "Sangue do Meu Sangue" (2011), um filme bastante bom, estreia agora "É o Amor" (2013), uma filme ainda mais inesperado que o anterior na sua obra, em que consegue a proeza notável de construir um bom documentário em que introduz uma personagem exterior mas que se integra no meio de forma a integrar, ela também, o registo documental, embora alterando-o - e aí poderia residir o maior segredo e motivo de interesse do filme.
                    
        De facto, a actriz Anabela Moreira, intérprete habitual dos filmes do cineasta desde "Noite Escura" (2004) e com papel de especial relevo desde "Mal Nascida" (2007), surge aqui como ela própria no meio da aldeia piscatória, Caxinas, em que vivem Sónia e as outras mulheres que com ela trabalham. Tudo poderia exceder o circunstancial dado a actriz, co-argumentista com o próprio realizador, se expôr pessoalmente perante a câmara de João Canijo e a câmara que ela própria maneja. De facto, aí o filme, que de resto tem apontamentos notáveis na troca de impressões entre as mulheres sobre os homens, o amor, a felicidade, assume a dimensão de documentário sobre a própria actriz, o que faz lembrar os filmes de Roberto Rossellini com a Bergman e sobre ela, especificamente "Ingrid Bergman", episódio de "Siamo donne" (1952-53) - respeitadas as devidas distâncias, que aqui sou eu que faço questão de respeitar. Contudo, ressalvando embora o interesse do dispositivo há que reconhecer que Anabela Morreira não tem ainda a densidade pessoal que lhe permita transmitir mais do que uma superficial complexidade.       
        Assim, sem descair em nenhum momento do documentário, que não tenta, e muito bem, ficcionalizar além do que a introdução da actriz exige, João Canijo consegue fazer com ele também o documento sobre a sua actriz, que aceita mais uma vez expor-se num filme dele (e ainda bem), embora em termos ficcionais, mas sem revelar características próprias que permitam fazer passar algo de único e pessoal. O filme só ganha com a intromissão dessa intrusa, que sem tentar impor-se a si própria se torna num dos principais motivos de interesse "É o Amor" pela exposição do seu caso pessoal, atravessado de dúvidas, em contraste com a simplicidade de Sónia, mostrada mas também dita por ela própria. Levada a problematizar-se, Anabela Moreira problematiza-se tanto quanto pode, em especial no momento imediatamente anterior à festa de casamento, mas perde em termos de veracidade perante Sónia, que assim se torna o motivo de maior interesse do filme.
                     Os filmes portugueses do IndieLisboa
          Formalmente este é um filme com apontamentos notáveis, pois a cãmara de João Canijo não guarde durante a maior parte do tempo distâncias em relação às suas personagens, que filma de muito perto e sem deixar espaço para mais nada - quebra mesmo a tendência para a profundidade de campo que por razões espaciais existia justificadamente nos interiores de "Sangue do Meu Sangue", e aqui é quase sempre negada. Remetidas a si próprias, ao que fazem e ao que dizem, as personagens aguentam muito bem a proximidade da câmara, tornando inteiramente justificada a opção do cineasta. E quando Anabela Moreira é filmada isoladamente e fala para a sua própria câmara estabelece no filme um outro registo, que perfeitamente se articula com o dominante, mesmo se sem conseguir fazê-lo funcionar em pleno por se limitar a uma experiência comum. Salvam-se apesar de tudo a ideia e a intenção.
      João Canijo é um cineasta apreciável, que nos seus filmes trabalha especialmente as personagens femininas, a que neste filme regressa de maneira inesperada pelo duplo registo, documental e subjectivo. Além de Anabela Moreira, as outras intérpretes, em especial Sónia Nunes, estão perfeitamente à altura - muito curioso o diálogo desta com o marido, pescador e por isso ausente durante a maior parte do filme, sobre quem trabalha mais, eles ou a geração anterior -, e o filme só abre para o plano geral ocasionalmente - nomeadamente no passeio de Anabela e Sónia, na cena do casamento e nos vinte minutos finais, para terminar sobre o regresso da traineira.  
                    Trailer: É o Amor de João Canijo
           Dito isto, há que acrescentar uma certa aspereza da montagem, que como que trabalha pouco um material em bruto, com a preocupação de preservar a sua autenticidade, conferindo a "É o Amor" um tom de certa imperfeição, ou inacabamento, que fica bem no seu registo documental. Em especial as cenas com personagens que aparecem uma vez adquirem uma veracidade que por momentos faz pensar em "Aquele Querido Mês de Agosto", de Miguel Gomes (2008), mas em menos preparado, menos sistemático e mais rude na sua espontaneidade, assim garantida e preservada por uma montagem não especialmente elaborada ou vistosa.
           Ao trabalhar sobre a fronteira entre o documentário e a ficção o cineasta não desilude e vai tão longe quanto pode ir. Penso mesmo que fez bem em arriscar e que se justifica continuar a depositar confiança e a alimentar expectativa relativamente ao seu trabalho futuro.

Em queda

          Depois de "A Pele Onde Eu Vivo"/"La piel que habito" (2011), um filme surpreendentemente fraco (ver "Decorativo", 21 de Outubro de 2012), chegou-nos agora o último filme do espanhol Pedro Almodóvar, "Os Amantes Passageiros"/"Los amantes pasajeros" (2013), que vem confirmar que o ex-menino bonito do cinema espanhol está num impasse criativo e por isso em queda.
        Com uma fama de rebelde e iconoclasta justamente adquirida desde o início, durante os anos 80 do Século XX, Almodóvar moveu-se desde então entre a comédia excêntrica e o melodrama destemperado, em que nos deu o seu melhor:"Negros Hábitos"/"Entre tinieblas" (1983), "Que Fiz Eu Para Merecer Isto?"/"Qué he hecho yo para merecer ésto?" (1984), "Matador" (1986), "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos"/"Mujeres al borde de un ataque de nervios" (1986), que lhe trouxe fama internacional, e filmes que posteriormente a confirmaram, como "A Flor do Meu Segredo"/"La flor de mi secreto" (1995), "Em Carne Viva"/"Carne trémula" (1997) e sobretudo "Tudo Sobre a Minha Mãe"/"Todo sobre mi madre" (1999). A primeira década do Século XXI ainda lhe correu bem, mas depois, e subitamente, mostrou estar a perder a força criativa e a inventiva que o caracterizavam, o que este seu mais recente filme confirma ao investir de novo a comédia mas sem frescura, de forma repetitiva e sem novidade, usando os lugares-comuns do seu próprio cinema como se a eles se sentisse obrigado.
                      I'm So Excited
            Num avião às voltas enquanto espera autorização para uma aterragem de emergência, o cineasta nem sequer consegue remeter-se apenas a essa situação vista do interior, o que não surpreende por ele não ser um especialista de filmes de suspense, embora as saídas que dela faz sejam justificadas em termos de gestão do melodrama, que "Os Amantes Passageiros" também tem. Claro que ele sabe gerir a coincidência espacial de personagens diversificadas, sabe reuni-las a partir dos motivos pessoais de cada uma e dessa forma elaborar um retrato convincente de um grupo ocasional. Demasiado preso á orientação sexual de cada uma das personagens, o que lhe dá pretexto para algumas piadas de comédia de boulevard, nomeadamente com trocas de parceiro típicas e previsíveis para cumprir o programa, consegue mesmo assim utilizar o único telefone a bordo e a preparação do grande momento de todos os sexos, do sexo de todos e de todas, de maneira consistente e que permite vislumbrar o seu talento pessoal.
                      Los amantes pasajeros
           Mas toda a situaçãp de base é mal, insuficientemente aproveitada, mesmo as alusões à actualidade política espanhola são ligeiras e inofensivas, e a melhor ideia do filme, a da vidente que sente o cheiro da morte, é aproveitada de forma circunstancial e sem consequências. Salva-se a própria aterragem de emergência, bem filmada do único ponto de vista justo, o interior vazio do aeroporto, o que é francamente muito pouco para um cineasta tão prestigiado e que tanto prometeu.
          Qualquer cineasta da América Latina de língua espanhola faz neste momento melhor do que Pedro Almodóvar, às voltas no vazio nos seus últimos dois filmes como o avião deste "Os Amantes Passageiros". Até ver, até se libertar dos meros tiques pessoais e voltar a inventar, a inventar-se, mesmo com Penélope Cruz e Antonio Banderas a darem uma ajuda o melhor do cinema actual deixou de passar por ele.