“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Um mito adolescente

      Um ano depois de "Procurem Abrigo"/"Take Shelter" (ver "A tempestade, 24 de Maio de 2012), Jeff Nichols dirigiu a sua terceira longa-metragem, "Fuga"/"Mud" (2012), que agora estreou entre nós. Trata-se de um filme muito diferente dos seus filmes precedentes, salvo no final mais distendido e sereno, que encena um imaginário adolescente como fábula verista.
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       Passado de novo no mítico sul dos Estados Unidos, no Arkansas, este filme materializa numa personagem em fuga, solitária e precisando de ajuda, Mud/Matthew McConaughey, os afectos, as carências e os sonhos de dois adolescentes de 14 anos, Ellis/Tye Sheridan e Neckbone/Jacob Lofland. No desconhecido ambos concentram um imaginário que procura um futuro exaltante e romântico como catalisador de um presente banal, embora com os seus problemas - os pais de Ellis vão separar-se e a "namorada" dele, May Pearl/Bonnie Sturdivant, complica-lhe especialmente a vida, enquanto Neck vive com um tio, Galen/Michael Shannon.
         O fascínio romântico de Mud resulta de ele lhes dizer querer fugir, no barco que lhes pede o ajudem a recuperar numa ilha no Rio Mississippi, onde eles o descobriram, com a sua namorada, Juniper/Reese Witherspoon, a qual, por sua vez, é utilizada por aqueles que querem matar Mud para tentarem encontrá-lo. Uma segunda figura misteriosa, Tom/Sam Shepard, vem duplicar a figura misteriosa de Mud para o proteger no final.
                     Mud
          Grande parte do interesse deste filme advém do tratamento do espaço na horizontal, a partir de figuras humanas centradas ou descentradas, em termos filmicamente muito interessantes que permanentemente rasgam horizontes ao mesmo tempo que encerram as personagens em espaços fechados - a ilha, as casas, o motel. Com um conseguido balancear entre exteriores e interiores, "Fuga" adquire um novo fôlego e um novo rumo primeiro com a revelação dos perseguidores do protagonista, depois com a ausência de Juniper do local onde Ellis ficara de a recolher para se juntar ao namorado.
      Mas a arte de Jeff Nichols, como sempre também autor do argumento, revela-se especialmente na manutenção da intriga e do filme entre um registo realista e um registo de fábula, o que permite construir o seu mistério e resolvê-lo em (e entre) ambos os registos. Aliás, e como se compreende, por aqui passa a memória dos romances de iniciação de Mark Twain (ver "A vida é assim", 20 de Abril de 2013), num filme em que o cineasta reafirma, quer visualmente, quer pelo uso parcimonioso da música, que ocupa um lugar de relevo, indispensável, no panorama do novo cinema independente americano.

Fresca e encalhada

    De Noah Baumbach, realizador nomeadamente de "A Lula e a Baleia"/"The Squid and the Whale" (2005), chegou-nos agora "Frances Ha" (2012), com argumento seu e de Greta Gerwig, que interpreta a protagonista que dá o nome ao filme. Filmado a preto e branco principalmente em New York, onde decorre a maior parte do tempo, a partir do facto de Frances/Greta Gerwig querer ser bailarina o filme dança ao ritmo das desatinadas correrias dela pela cidade.
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     Despretensioso mas muito preciso, este é um filme que, ao acompanhar Frances, uma mulher de 27 anos encalhada embora plena de vivacidade, se desdobra em companhias e encontros em que ganha corpo uma nova geração de jovens sonhadores habitantes da grande e mítica metrólope. Palavroso e construído sobre encontros falhados, como os filmes iniciais de Woody Allen, "Frances Ha" não se demora demasiado em cada questão, como se tivesse pressa em dizer tudo o que é relevante sobre ela e as suas relações.
     As suas sucessivas companhias de apartamento, que começam com Sophie Levee/Mickey Sumner, como ela heterossexual, como ela fresca e encalhada, as suas esperanças e desilusões profissionais, os seus percursos para fora da cidade, primeiro até Sacramento, Califórnia, ao encontro dos pais, depois até Paris para uma viagem relâmpago, são dados por Noah Baumbach com grande economia de meios, o que lhe permite dizer tudo o que tem a dizer em pouco tempo, tirando todo o partido de uma actriz, Greta Gerwig, que entre um corpo excessivo mas dominado e uma grande expressividade física e fisionómica marca a destravada mas muito compenetrada protagonista.
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    Se o preto e branco, com fotografia de Sam Levy, funciona muito bem, marcando a originalidade do filme, a música contém escolhas felizes que muito apropriadamente sublinham o tom leve de "Frances Ha", que depois de um longo e variado percurso termina com a protagonista definindo por subtração o seu apelido em Washington Heights.
   Com descontração e leveza, humor e sabedoria, Noah Baumbach constrói um filme sólido e apetecível, com uma musicalidade própria a assinalar a sua vitalidade juvenil, que vem confirmar que continuam a fazer-se filmes muito interessantes em New York, que valem por si mesmos e tornam esta cidade uma verdadeira capital do cinema americano.    

domingo, 27 de outubro de 2013

Mais do que mera eficácia

       "Traque en série"/"Den som draeber" (2010) é uma série policial dinamarquesa de altíssima qualidade que o canal cultural franco-alemão Arte está a transmitir há três semanas e vai continuar a transmitir nas próximas três semanas à sexta-feira ao princípio da noite, com repetição à quarta-feira a partir de 30 de Outubro, pela noite dentro.  
                      Those Who KIll (4)
      Criada por Elsebeth Egholm, esta série apresenta uma inspectora da brigada criminal de Copenhaga, Katrine Ries Jensen/Laura Bach, e o seu "anjo da guarda", o profiler Thomas Schaeffer/Jakob Cedergren, que em cooperação por vezes conflituosa empreendem o inquérito sobre crimes em série extremamente violentos e misteriosos, cometidos por assassinos loucos. Com uma grande pertinência psicológica, são apresentadas personagens perigosas e ameaçadoras, comuns e ameaçadas, simpáticas e empenhadas, com a particularidade especial de os crimes explicarem os inquiridores, que ajudam a construir e compreender.
       Caracterizada por uma planificação perfeita, com uma multiplicidade de planos curtos sem que nenhum deles seja gratuito ou escessivo, e uma montagem tensa e vigorosa, "Traque en série" tem também uma definição do espaço exemplar, ágil e precisa, que breves e justos movimentos de câmara completam, e actores excelentes. Com episódios duplos, o segundo transmitido logo a seguir ao primeiro, esta é uma série que recupera plenamente os serials do cinema mudo mas para a televisão de hoje, com grande argúcia humana e de altíssima qualidade fílmica.      
                     Those Who KIll (9)
       Este é apenas mais um exemplo de que se fazem hoje em dia para televisão trabalhos fílmicos muito superiores a muitos filmes feitos para cinema. Tão bom e de tanta qualidade e sucesso que está a ser feita nos Estados Unidos uma nova série televisiva baseada nesta nesta série dinamarquesa: "Those Who Kill". O Arte chama-lhe "eficácia escandinava", mas penso que aqui, embora a implique e pressuponha, está em causa muito mais do que a mera eficácia.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O prazer do cinema

     O último filme de Pascal Bonitzer, um nome importante do cinema francês primeiro como crítico e ensaísta (1), depois como argumentista (nomeadamente em filmes de Jacques Rivette, André Téchiné, Raoul Ruiz) e realizador, "Cherchez Hortense" (2012), é uma pequena pérola do cinema, uma comédia de inspiração lubitschiana em que reverbera uma grande liberdade sob um completo domínio formal e narrativo. Com um Jean-Pierre Bacri em grande forma e Claude Rich, um actor que trabalhou com René Clair, Jean Renoir, François Truffaut, Alain Resnais, entre muitos outros, no papel do seu pai, este filme manifesta inspiração lubischiana em város pontos: as portas que abrem e fecham, as repetições e as correspondências, com os indícios de falta a que Gilles Deleuze chamou em Ernst Lubitsch "imagem-raciocínio" - se isto, então aquilo - e os indícios de equivocidade - uma muito pequena diferença que induz uma muito grande distância - típicos da pequena forma da Imagem-Acção (2).
     O argumento de Bonitzer e Agnès de Sacy é um prodígio de inventiva. O filme começa no teatro com Iva/Kristin Scott Thomas, uma encenadora e a mulher do protagonista, Damien Hauer/Jean-Pierre Bacry, e logo na saída de carro dela e do jovem actor temos as portas. O casal tem um filho, Noé/Marin Orcand Tourrès, que se entende mal com aqueles pais, em especial com ele, o que permite prever que aquele tipo de problemas entre marido e mulher venha a ter continuidade. A imigrante proveniente dos balcãs, Aurore/Isabelle Carré, cuja situação se trata de tentar resolver graças a influências poderosas, é apenas o pretexto, o "macguffin", que faz andar a história.
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    Num filme todo ele atravessado por uma vaga misoginia, não surpreende a revelação da homossexualidade do pai de Damien, Sébastien Hauer/Claude Rich, surpreende é a sua possível tranferência para o filho e o modo como a sua sugestão neste surge - o momento em que o jovem chinês, Satoshi/Masahiro Kashiwagi, lhe revela o que se passou entre ambos na noite anterior, que eu nem sequer vos digo o que foi, está prodigiosamente filmado e interpretado por Bacri. Se a mulher o deixa por um homem mais novo, ele no final vai atrás da jovem Aurore, sabendo Iva o que acontece geralmente a mulheres mais velhas que se apaixonam por homens mais novos e sabendo ele o que geralmente acontece entre homens mais velhos e mulheres mais novas.
     Mas o protagonista afasta-se com Aurore no final depois de ela ter abandonado a ideia de partir para a Índia com Lobatch (!), um amigo dele/Jackie Berroyer. E Damien é professor de cultura chinesa em aulas muito concorridas que ele dá de passagem, a correr, o que em qualquer caso é sintomático de que por ali passam já outros centros.
                     
    Um mês depois Damien conta ao pai o que aconteceu e oferece-lhe a pistola que retirara a Lobatch com a sugestão de que a use em si próprio, numa repetição inversa da primeira ocorrência, em que terá impedido o seu amigo de se suicidar. E quando, a meio do filme, ele apanha um táxi cujo motorista é novato e não sabe o caminho para o centro de Paris é sinalizado de maneira clara que é o próprio Damien que não sai do centro de Paris e daquele círculo, o que só vem a conseguir no final - de comboio, atrás de Aurore. 
     "Cherchez Hortense" é, pois, um filme inteligente e divertido, muito bem dirigido e interpretado, que além do mais toca problemas de grande actualidade sem aprofundar, ficando-se pela alusão, como lhe compete. E no final o comboio, ao contrário dos Lumière, sai do túnel e parte da gare.
                      Cherchez Hortense (Pascal Bonitzer)
            Este foi o único filme a que consegui assistir durante a 14ª Festa do Cinema Francês, em Lisboa, numa sala cheia, o que deixou Pascal Bonitzer encantado e a mim satisfeito, com uma assistência que mostrou perceber e apreciar o filme. Esperemos que estreie em Portugal. Trata-se de um filme irónico e muito bom, na linha da obra anterior de um cineasta fino e culto, que merece ser conhecido. 

Notas
(1) De Pascal Bonitzer, "Le regard et la voix. Essais sur le cinéma" (Paris, UGE, 10/18, 1976), "Le champ aveugle - Essais sur le cinéma" (Paris, Cahiers du Cinéma/Gallimard, 1982) e "Peinture et cinéma - Décadrages" (Paris, Cahiers du Cinéma/Editions de l'Étoile, 1985) foram livros de referência, ainda hoje indispensáveis para compreender o cinema.
(2) Gilles Deleuze, "L'image-mouvement", Paris, Les Éditions de Minuit, 1983, páginas 220-224.

Sós "na neve"

         Nove anos depois de "Os Sonhadores"/"The Dreamers" (2003), Bernardo Bertolucci regressa com um filme sobre jovens, "Eu e Tu"/"Io e te" (2012), que confirma o seu afastamento das grandes produções que, depois de inícios muito auspiciosos no "cinema novo" italiano dos anos 60 ("La commare secca", 1962, "Antes da Revolução"/"Prima della rivoluzione", 1964, "Partner", 1968), caracterizaram o seu cinema durante a maior parte dos anos 80 e 90 do Século XX e pelas quais talvez seja hoje em dia mais conhecido
             Decorrendo na actualidade, este filme trata de dois meio-irmãos, Lorenzo/Jacopo Olmo Antinori, de 14 anos, e Olivia/Tera Falco, mais velha e filha do mesmo pai mas de uma mãe diferente, que se vão encontrar na cave onde o primeiro se refugia durante o tempo que é suposto passar numa viagem escolar à montanha e à neve. Isto significa o encontro improvável de um adolescente introvertido e de uma jovem mulher gravemente toxicodependente, num convívio que passa pelo conflito, pela cumplicidade, pelo afecto e pela tentativa de compreensão mútua que conduza à ajuda recíproca. 
                    
         Ajudando Lorenzo na sua simulação e socorrendo-se da ajuda dele para o que precisa, Olivia mostra-se tão ou mais frágil do que ele, que apesar de tudo tem naquele momento um objectivo a cumprir, o que com ela não acontece. Do lado dele há um espírito de desafio colocado a si próprio, o de ser capaz de conviver sozinho com o pequeno bestiário do seu mundo privado, com os livros que alimentam o seu imaginário, um desafio que o tempo que consegue aguentar com o rosto dentro de água simboliza. Do lado dela trata-se apenas de passar o tempo o melhor possível, rumo ao possível reatar de uma relação com um homem mais velho.
          Com um estilo seco e seguro, o cineasta consegue manter a relação entre dois seres que têm mais a separá-los do que aquilo que os une (um pai invisível, uma velha avó hospitalizada) num tom justo de grande simplicidade, que nos devolve íntegras duas solidões que por alguns dias se acompanham. Sem qualquer transigência narrativa (com argumento sobre novela de Niccòlo Ammaniti de que participam o escritor, Umberto Contarello Francesca Marciano e o próprio cineasta) e sempre com um apurado gosto cinematográfico (a fotografia de Fabio Cianchetti tem momentos luminosos de claro-escuro, a música de Franco Piersanti é sempre apropriada e justa), "Eu e Tu" desenrola-se como drama da vida comum entre duas personagens incomuns, porque marcadas, cada uma à sua maneira, por uma solidão inelutável. 
                   
        A narrativa pode parecer curta num filme curto, mas neste estão presentes todos os elementos necessários e suficientes para tornar inteiramente compreensível aquilo que por um breve lapso de tempo se passa entre as duas personagens, dando assim conta de que o talento de Bernardo Bertolucci se mantém incólume, de novo capaz do melhor e de nos cativar pelas melhores razões. Olivia revê-se, prevê-se na madrasta e na avó, Lorenzo no amigo dela e no próprio pai, a cujo círculo quer furtar-se. Consegui-lo-á?

Sós no espaço

      O título do último filme do mexicano Alfonso Cuarón, "Gravidade"/"Gravity" (2013), tanto aponta para a ausência de gravidade e, portanto, de peso dos corpos fora da influência da atracção terrestre na situação em que as personagens se encontram, como para uma situação grave, séria. Atentas as circunstâncias do filme e da sua narrativa, tendo mais para o segundo sentido.
       Um astronauta experiente, Matt Kowalsky/George Clooney, e uma astronauta mais nova e pouco destra, Ryan Stone/Sandra Bullock, uma vez perdido o seu companheiro de viagem encontram-se sós no espaço, a contas com uma nave sujeita a uma nuvem de detritos espaciais que se aproxima e em contacto intermitente com o posto de comando em Houston, um contacto que acabam por perder. Nesta situação vão tentar ajudar-se um ao outro para atingir em segurança uma outra nave em que possam regressar à Terra.
                     Gravity
     A ficção científica é um género que se tem mostrado especialmente propício aos efeitos especiais e ao espectáculo do cinema, e nessas condições tem cumprido, umas vezes melhor, outras pior, a sua função, o que lhe tem permitido assumir um lugar de relevo no cinema contemporâneo. Como costumo dizer, ela pode vir a significar no cinema para o Século XXI uma nova epopeia, a da conquista do espaço e de novos planetas e sistemas, equivalente àquela que o western significou relativamente ao Século XIX americano.
       Ora o que singulariza "Gravidade" é o filme decorrer não numa situação de avanço mas numa situação de catrástrofe anunciada, sem que os efeitos especiais, aliás correctos e beneficiando nalguns casos do 3D, se tornem por si mesmos centrais, isto é, sem que eles se sobraponham às próprias personagens. É evidente que o lado visual do filme é muito importante, tanto mais importante quanto, durante a maior parte do tempo, os dois protagonistas são visíveis apenas dentro dos seus fatos espaciais.
                      Gravity
       Contudo, e na circunstância de resposta a uma catástrofe iminente, são os diálogos que sobretudo prendem a nossa atenção (e o argumento do filme é da co-autoria do próprio Alfonso Cuarón) por nos aproximarem das personagens e da sua situação muito difícil - e esses diálogos são muito bons. Jogando bem com a situação vivida, eles permitem-nos tomar contacto com as reacções dos protagonistas e ficar a conhecê-los em situação por assim dizer terminal.
      Apesar das suas qualidades, há neste filme um elemento que me desagrada, e que é, independentemente da sua qualidade, a insistência na música durante todo o tempo, o que nos impede de sentir com maior verdade a situação narrada e descrita, impedindo-nos literalmente de escutar "o silêncio do cosmos". Eu sei que a música, para mais com o seu volume aumentado, ajuda na criação do filme como espectáculo audiovisual, mas esta é uma daquelas situações em que eu teria preferido que o seu uso fosse mais comedido e também que ela jogasse melhor com o ambiente em que a acção decorre.
                      Gravity
        Alfonso Cuarón é um cineasta com provas dadas, mesmo na ficção científica ("Os Filhos do Homem"/"Children of Men", 2006), e com uma obra relevante, que inclui um filme da saga Harry Potter ("Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban"/"Harry Potter and the Prisoner of Azkaban", 2004), atrás de si, que depois dos seus inícios no seu país tem trabalhado com um sucesso assinalável em Hollywood. Falta-lhe, a meu ver, em "Gravidade" a noção do espaço cósmico, que se torna apenas visual e ritmado pela música de tal modo que impede que se ouça o que desse espaço é para nós indissociável: o silêncio.
       Com um maior respeito por esse silêncio os próprios diálogos, repito muito bons, poderiam ter resultado melhor. Vou por isso comprar o dvd para poder rever este filme sem a música - o 3D, embora bem utilizado não me parece ser neste caso essencial. O momento central do filme, a aparição do "fantasma" de Matt a Ryan Stone, quando os podemos ver aos dois sem o capacete protector do facto espacial e ele lhe transmite as instruções necessárias a um regresso bem sucedido, eminentemente visual e dialogado, talvez possa, tal como o regresso dela à gravidade terrestre, ser assim melhor apreciado.

sábado, 12 de outubro de 2013

Palavra e pensamento

         Há muitos anos que não nos chegava nenhum filme de Margaretha von Trotta, nome maior do "cinema novo" alemão dos anos 60, cujo filme de estreia, "A Honra Perdida de Katharina Blum"/"Die verlorene Ehre der Katharina Bloom", data de 1975. Foi, assim, com curiosidade e expectativa que encarei "Hannah Arendt" (2012), por ela mas também, como é evidente, pela figura da grande pensadora germano-americana de origem judaica do Século XX de que trata.
       Trabalhando sobre argumento seu e de Pam Katz, a cineasta segue Arendt numa fase crucial, de maturidade, da sua vida, o momento em que ela acompanha, para um conhecido jornal cultural americano, o julgamento de Adolf Eichmann por crimes contra a humanidade devido ao seu papel na máquina de extermínio nazi. Com uma Barbara Sukova sempre muito compenetrada e convincente no papel da protagonista, o filme aproveita bem imagens de arquivo do próprio julgamento e acompanha-a na sua vida comum, privada e universitária. Além disso, alguns flashes dão-nos imagens do passado, dos seus inícios na filosofia junto de Martin Heidegger/Klaus Pohl, sendo ela então interpretada por Friederike Becht.
                     film
       O que mais aprecio em "Hannah Arendt" é o relevo dado à palavra, não apenas como meio de comunicação mas como meio de conhecimento, isto é, como meio para expressar o pensamento, aliás controverso naquele caso por ser mal interpretado e mal recebido por muitos, da protagonista, mas também como meio de pensar o próprio pensamento, o que é a essência da filosofia. No final, muito bom, realizado em termos simples e directos, é um dos seus melhores amigos que corta relações com ela.
       Potência da palavra e independência do pensamento caracterizam, pois, este filme em que a firmeza das palavras de Hannah Arendt contrasta com as palavras hesitantes e toscas de Eichmann, mesmo se ela não consegue convencer todos - mas quem o consegue? (Não percebo é que ainda hoje se pretenda justificar Eichmann, mesmo se a partir de declarações inéditas suas, coisa que ela, ainda que eventualmente subavaliando-o, de maneira nenhuma fez.) E não me parece que as imagens da vida privada dela venham enfraquecer o poder das suas palavras e do seu pensamento, embora visem dar dela a imagem de uma mulher comum, como as outras, o que ela de maneira nenhuma se limitou a ser. Aliás, a teia de relações em que ela se move permite compreendê-la melhor e entender o meio e o mundo em que então viveu.
                              
      Este filme de Margarethe von Trotta vem muito oportunamente chamar a atenção para uma figura e um pensamento marcantes do Século XX, um pensamento de tal modo importante que ainda hoje não é possível conhecer bem o século passado sem conhecer a obra dela, aliás traduzida em português, para a qual vos remeto. Talvez que a partir deste filme e dessa obra filosófica, de filosofia política e da história, percebam que o Século XX não foi tão simples como pode parecer visto daqui - e a obra dela ajuda-nos também a compreender perplexidades e dificuldades do mundo desde o tempo dela até aos nossos dias.
       Neste filme a cineasta consegue a proeza notável de filmar a palavra da filosofia em formação e o pensamento em evolução perante circunstâncias concretas. Com uma excelente abertura, sem que a figura de Heidegger surja como fantasma e com a memória de infância de Hannah sobre o seu pai, "Hannah Arendt" de Margaretha von Trotta está inteiramente à altura da personagem. Embora faça silêncio sobre parte da vida dela, como era inevitável, não se lhe podia pedir mais. E que ainda hoje venha dividir opiniões joga decididamente a seu favor.   

domingo, 6 de outubro de 2013

Até que enfim!

      A Festa do Cinema Francês, a decorrer este ano na sua 14ª edição entre 10 e 20 de Outubro em Lisboa, mas com extensão a outras cidades, é uma iniciativa muito importante do Institut Français du Portugal que nos tem permitido anualmente contactar com uma parte muito significativa de uma cinematografia europeia muito importante, entre clássicos, inéditos e ante-estreias em Portugal. Graças a ela temos podido colmatar, até certo ponto, as omissões de uma distribuição comercial mais interessada no sucesso fácil do que no melhor do cinema. 
                     Cena do documentário Shoah. (Divulgação).
     A edição deste ano é especiamente interessante, com filmes antigos e recentes, mas nela devo chamar a atenção para a retrospectiva quase completa de Claude Lanzmann, um documentarista que se tem dedicado ao Holocausto nazi, às suas causas e consequências, numa obra muito importante e, salvo "Shoah" (1985), desconhecida em Portugal. Programados para a Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, os filmes de Claude Lanzmann, incluindo a ante-estreia de "O Último dos Injustos"/"Le dernier des injustes" (2013), o seu último filme, são um acontecimento absolutamente imperdível (ver programação em www.festadocinemafrances.com).
      Os filmes de Claude Lanzmann, num primeiro volume da sua obra agora também objecto de edição dvd pela Midas Filmes, são uma peça fundamental quer do documentarismo cinematográfico, quer da nossa memória colectiva do Século XX, pois tratam de maneira exemplar do acontecimento mais marcante do século passado que, por si mesmo, fez mudar de rumo a história mundial e a história do pensamento, da filosofia. Escreveu alguém que a poesia deixou de ser possível depois de Auschwitz, ao que outrém respondeu que foi com Auschwitz que a poesia verdadeiramente começou, quer dizer, passou a ser indispensável por não poder ignorá-lo no seu horrífico significado e em toda a sua terrível extensão. 
                   
    Não podíamos antes, e muito menos poderemos depois da passagem destes filmes em Portugal alegar desconhecimento, já que agora nem sequer temos a desculpa de que os filmes não nos chegaram. Perante eles e aquilo que relatam e mostram não podemos permanecer indiferentes, tanto mais quanto a questão cinematográfica fundamental que eles tratam é a da representação do irrepresentável, o que, só por si, os torna parte indispensável e destacada da História do Cinema.
     Devo mesmo dizer que a obra de Claude Lanzmann, que sendo muito importante não é muito extensa, embora seja composta por alguns filmes muito longos, tem sido pretexto para uma importante bibliografia, em especial francesa, sobre o Holocausto, a Ocupação e a II Guerra Mundial, para a qual, depois de terem visto os seus filmes, obviamente vos remeto. Mas quero aproveitar esta ocasião para felicitar a Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema por se ter associado a esta importante iniciativa, mostrando assim, de forma inequívoca, que sob a sábia direcção de Maria João Seixas continua a ser a instituição de referência do cinema em Portugal a que nos habituámos, com uma programação e programadores de elevada craveira, uma instituição ao lado da qual continuo a estar incondicionalmente.

Um longo caminho

    O alemão Thomas Arslan, trabalhando como sempre sobre um argumento original da sua autoria, dirigiu "Ouro"/"Gold" (2013), filme que decorre no final do Século XIX no Canadá e com o qual recupera a memória do western de uma maneira feliz e moderna.
    Sem se socorrer de todo o aparato do género, antes trabalhando sobre dados simples e elementos minimalista, o cineasta constrói o seu filme sobre um grupo de alemães que empreende um longo percurso na Columbia Britânica para chegar à mítica Dawson, onde se diz ter sido descoberto ouro. Depois de uma abertura belíssima, o desenvolvimento temático é muito interessante, sobretudo a partir do momento em que, pelas mais diferentes razões, começam as defecções no grupo.    
                    Gold : Photo Nina Hoss  
      Assim, onde se poderia esperar uma contenda interna entre rivais pelo mesmo objectivo, ou até pela mesma mulher, Emily Meyer/Nina Hoss, assiste-se a um progressivo emagrecimento do grupo, já de si reduzido, até só ficarem ela e o carregador, Carl Böhmer/Marko Mandic. Mas cada personagem tem vida e identidade própria, não se limitando a encarnar uma ideia, o que torna o filme especialmente interessante e atraente.
                    Gold
     Na magnífica paisagem da Columbia Britânica, onde foi rodado, não temos, pois, neste filme as manifestações de ganância que o ouro frequentemente suscita, antes um grupo de gente que o persegue e cujos membros, um a um, vão ficando pelo caminho, como que no cumprimento de um destino funesto que a música de Dylan Carlson, original e muito presente, comenta como um coro. Em "Ouro" temos momentos de grande tensão, como a ameaça de enforcamento sumário do chefe da expedição, Wilhelm Laser/Peter Kurth, a amputação e posterior morte de Gustav Müller/Uwe Bohm, o enlouquecimento e a desaparição de Joseph Rossmann/Lars Rudolf, cada um dos quais ficáramos a conhecer bem.
                    http://fr.web.img3.acsta.net/pictures/210/147/21014776_20130624120808568.jpg
     Não vos conto o final, que é muito bom e contribui decisivamente para fazer deste filme um típico filme pós-moderno sobre um assunto clássico. Sem sobressaltos, formais ou outros, "Ouro" decide-se entre uma serenidade formal e uma tensão dramática que apenas a música vem comentar, passa num sopro mas fica connosco, confirmando Thomas Arslan como mais um nome de relevo a reter num novo "cinema novo" alemão (ver "O encenador", 21 de Setembro de 2012). A este tipo de "regresso do western" (ver também "Perdidos", 5 de Julho de 2012) eu sou muito receptivo.

Grandeza de Kiarostami

          Agora que ainda estão em sala dois filmes fundamentais de Yasujiro Ozu, com Kenji Mizoguchi, Mikio Nause e Akira Kurosawa o grande nome do cinema clássico japonês, estreou "Like Someone in Love" (2012), o mais recente filme de Abbas Kiarostami, um cineasta muito importante, dos maiores da actualidade, filmado justamente no Japão. O local, Tóquio e seus arredores, foi obviamente procurado, as ligações de Kiarostami com Ozu, explicitadas em "Five Dedicated to Ozu" (2003), aprofundadas mas de maneira inesperada e original.
        A serenidade ds últimos filmes do mestre japonês é inteiramente evitada, mesmo contrariada, de modo que a relação de uma mulher muito nova com um homem velho surge não como pacificadora mas ameaçada na sua possível inocência, enquanto a figura de estilo explorada por Kiarostami praticamente desde o início da sua obra, o plano-sequência com profundidade de campo, ainda presente no anterior, "Cópia Certificada"/"Copie conforme", 2009 (ver "Uma tarde na Toscânia", 14 de Janeiro de 2012), é completamente abandonada em favor de uma planificação clássica, com justo aproveitamento do espaço e tratamento do tempo.
                    Like Someone In Love (2013)
        Ora isto significa que, para surpresa de todos - surpresa grata, acrescente-se -, o cineasta voltou ao princípio, ou mudou de rumo, continuando a manter-nos presos da sua arte, da sua narrativa e das suas personagens. A certa altura o velho professor, Takashi/Tadashi Okuno, adormece enquanto conduz e isso é sintomático da idade e de uma certa serenidade que precisamente a relação com a jovem mulher, Akiko/Rin Takanashi, uma estudante que à se prostitui, lhe vem negar, numa eventual falsa pista muito bem contrariada pelo final.
      A intromissão do namorado de Akiko entre ela e o velho professor Takashi vem, afinal, demonstrar que quem poderá estar a mais, embora mal compreendido, é este, que assim se torna centro das atenções, o que próximo do fim do filme é muito bem explicado pela conversa da sua vizinha com a sua "neta". Esta tinha sido central no início, antes de chegar a ele, e então pudéramos dar-nos conta das suas hesitações e perplexidades ainda antes de lhe conhecermos o namorado - e crucial vai ser o enconto dos dois, o velho professor e o namorado dela à porta da universidade, momento em que se vai iniciar a (falsa) interpretação de ele seja "avô" dela, e é este jogo com as gerações que é ainda, embora cripticamente, típico Ozu. 
                   
       Mas se olharmos a partir da relação "neta"-"avô", que pode ser encarada como a mais autêntica porque mais próxima da verdade sem convenções de cada um deles, então poderemos perceber que quem está a mais, o "intruso" é o namoradao dela, como o perturbador e não pacificado final vem confirmar.      
         E aqui julgo que devo sublinhar a ousadia de Abbas Kiarostami em não nos dar "mais do mesmo" e se reinventar contra as expectativas dos seus incondicionais admiradores. Na idade dele e com a obra que ele tem atrás de si, mudar de rumo e enveredar pelo inesperado, contra toda a sinalização deixada atrás de si, significa inconformismo e manter à distância os que, dando-o precipitadamente por acabado, lhe queriam erigir um monumento definitivo em vida. Contudo, e se bem nos lembrarmos e repararmos, ele foi sempre, mesmo na sua obra anterior a "Dez"/"Ten" (2002), um cineasta inquieto, em cujos filmes a pacificação, quando aparecia, era após um árduo percurso, como em "Através das Oliveiras"/"Zire darakhatan zeyton" (1994), o que em "O Vento Levar-nos-á"/"Bad ma ra khahad bord" (1999) já só acontecia de maneira muito problemática.    
                    Abbas Kiarostami Discusses the Mysteries of 'Like Someone in Love'
         Sei de quem tenha ficado decepcionado, o que compreendo mas não é o meu caso. Quanto menos previsível e menos feito a um lugar na história mais eu gosto dele e o aprecio. Não é de cineastas ou artistas pacificados que eu gosto, mas dos que se rebelam contra si próprios com novas propostas que não sabemos, como eles não sabem onde os vão conduzir. É com inconformismo consciente que um grande cineasta como Kiarostami se reinventa e do mesmo passo reinventa o cinema.