“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

terça-feira, 31 de março de 2015

Actualidade escaldante

    O documentário "Citizenfour", de Laura Poitras (2014), o terceiro filme de um tríptico sobre a América precedido de "My Country, My Country" (2006) e "The Oath" (2010), que não estrearam em Portugal, é um filme muito bom, permanentemente controlado, que acompanha e entrevista o conhecido Edward Snowden no seu refúgio em Hong-Kong, de onde deu conta ao mundo daquilo de que, como antigo especialista em informações confidenciais dos serviços secretos dos Estados Unidos, teve conhecimento.
                    CitizenFour1
   Neste extraordinário mundo novo em que todos, mas absolutamente todos vivemos por causa da internet e das comunicações globais, sobre ele ficamos todos a saber que fomos e somos todos, mas absolutamente todos, vigiados nos nossos menores movimentos, com fundamento num famigerado "Patriot Act" da administração George W. Bush que a administração Barack Obama manteve. A pretexto da defesa dos americanos contra o terrorismo, um terror suscitado pelos ataques de 11 de Setembro de 2001, toda uma maquinação securitária foi montada e mantida em termos tais que, atentando contra as mais elementares regras democráticas, todos somos sujeitos a vigilância.
  Tal como apresentadas por ele próprio, as acções de Edward Snowden são motivadas por legítimas boas intenções, que o tornam uma espécie de herói destes novos tempos, contra aquilo que o seu próprio governo defende e pratica, o que torna este "Citizenfour" no mais inesperado filme de espionagem (ainda para mais um documentário) em que nenhum escritor, de Ian Fleming a John le Carré, pensou - a fuga do protagonista de Hong-Kong está filmada e é sugerida como um verdadeiro filme de espionagem. 
                     CitizenFour3
    E com a nossa simpatia por Snowden que, com apoio nele no próprio, a cineasta muito bem suscita, vai também a nossa indignação contra uma situação arbitrária e indiscriminada que nada tem já a ver com o estado, o direito ou os direitos individuais. Eu estava informado sobre esta situação, como todos podíamos estar, através dos canais de televisão que vejo - e quer a imprensa quer a televisão foram fundamentais nas revelações públcas de Edward Snowden -, mas o filme de Laura Poitras, justamente galardoado com o Oscar do melhor documentário de 2014, revê toda esta questão colocando-a em perspectiva.
   Não nos podemos alhear da realidade que este filme fielmente retrata a nível mundial, nem devemos minimizar a ameaça que o que descreve significa para todos nós. A questão colocada por escrito no final entre Edward Snowden e o seu inteiramente pertinente interlocutor Glenn Greenwald é que ou somos vigiados ou colaboramos na vigilância, o que é duma contundência estarrecedora, que convoca mesmo os piores fantasmas totalitários do Século XX
                     
    Esta uma questão absolutamente divisória que pode determinar o nosso futuro e a escolha do próximo Presidente dos Estados Unidos da América. E, nestas condições, o cinema marca em "Citizenfour", de Laura Poitras e com Steven Soderbergh como produtor executivo, um espaço específico de reflexão, à altura da sua tradição como arte de massas que não é indiferente ao presente. Os clássicos e modernos têm, no documentário como na ficção, o seu venerável lugar, mas o cinema contemporâneo passa por aqui.
    Com um uso inevitável e completo das vozes das personagens, ocasionalmente da sua própria voz, a realizadora constrói o seu filme sobre espaços fechados (o quarto de hotel), que se assemelham a espaços carcerais, o que como dispositivo-base permite as saídas do interlocutor mas, comprimido, dá todo o corte do mundo a que o protagonista foi submetido e a partir do qual falou para todos nós.

sexta-feira, 27 de março de 2015

Obscuro sempre

   Contra o costume, acordei na passada segunda-feira, 23 de Março, antes das 3 horas da manhã e estive a trabalhar até às 5. De manhã cortei o cabelo, fui buscar uns filmes à biblioteca da escola onde ensino e preenchi uma pauta. De tarde dei cinco horas de aulas, jantei e deitei-me cedo, e dormi muitas horas seguidas. No dia seguinte, terça-feira 24 de Março, dei uma aula de manhã, almocei e fui depois a uma livraria onde esperava encontrar um livro que procurava. Não o encontrei e na segunda livraria em que entrei soube da notícia. Era esperada mas chocou-me. Muito.
   Desci uma calçada íngreme não pelo passeio mas pelo próprio empedrado da calçada, porque era o caminho mais curto para encontrar uma esplanada em que me sentar. Aí encontrei uma antiga aluna com quem nunca tinha tido antes uma conversa longa, e estive a conversar com ela durante uma hora. Quando desci a rua para o local onde tinha a aula seguinte percebi que tinha torcido o pé direito a descer a anterior calçada. Andei um bocado para desfazer a dor e dei a aula, finda a qual subi a rua até à mesma esplanada, onde jantei ao ar livre. O vento era forte, muito forte e frio, e levava tudo pelos ares. Não me deu tréguas, que era precisamente o que eu queria para poder sentir tudo. Nessa noite adormeci de novo cedo e voltei a dormir muitas horas seguidas.
   Na quarta-feira, 25 de Março, despachei de manhã os assuntos que tinha de tratar, entre eles uma reunião, almocei cedo e na estação comprei o jornal. Na viagem, nos lugares à frente do meu uma mãe adormeceu com a cabeça no regaço da filha pequena e do outro lado do corredor um casal de turistas tinha diante de si um volumoso guia turístico de Portugal. Acabei de ler o jornal quando cheguei a casa, depois de ter passado por uma livraria e um mercado do livro em que não havia rasto da noticia do dia anterior. O vento continuava a soprar, fortíssimo e frio, cortante, e parecia ir rebentar com as janelas
   Aqui sentado, a escrever isto, lembro-me do meu pai, que tinha 22 anos e vivia em Lisboa quando Fernando Pessoa morreu. Nunca cheguei a falar muito com ele sobre a vida e a morte do poeta múltiplo, e o seu conhecimento pessoal dele, nem sequer quando, nos seus últimos anos de vida, ele falava da "cor da camisa de Fernado Pessoa", que estupidamente nunca lhe cheguei a perguntar que cor era.
                                       Ou o Poema Contínuo - Ampliar Imagem
   O meu pai era um pessoano conhecedor e esclarecido, como eu sou, mas eu sou também um herbertiano apaixonado (a única maneira de o ser) de longa data, a quem aconteceu ser vivo na data da sua morte. Tenho, por isso, a noção de ter vivido dias que mudaram o mundo, quando o maior poeta português vivo passou a ser o maior poeta português morto. Lembro-me também de um velho amigo meu que, mais novo do que eu, já morreu, e conhecia e apreciava pelo seu justo valor o Herberto Helder. Obscuro sempre. 
   Soube pelo mesmo jornal que tinha caído na véspera um avião de uma companhia low cost e morrido 150 pessoas. Nesta noite de quarta-feira em que escrevo o vento já tinha amainado.
   Herberto Helder deixou, como Pessoa, caixotes, baús de papéis, mas de papéis em branco, para que outro, outros continuem o seu poema contínuo de outra, a sua própria maneira, mesmo que já nada tenha a ver com a dele. Vou continuar a ler a sua escrita luminosa, compulsiva e lúcida, em que descobre, reinventa uma língua, o português, se desvanda e descobre o nosso mundo, as mulheres sempre, a nossa vida e a nossa morte.
   Em nome da família enlutada mas muito orgulhosa, aceito e retribuo os vossos sentidos pêsames (sobre Herberto Helder ver "Pessoa e o cinema", de 21 de Outubro de 2012, e "Pontifex Maximus", de 30 de Maio de 2013). 
                       
                        "(...)
                        a ideia, a idade,
                        a fala:
                        a mais rouca ou mais leve ou de azougue -
                        poema que desconheço, o antigo, o novíssimo,
                        o que devora
                        a mão que o escreve: no papel fica apenas
                        sal de ouro,
                        e vê-se tão bem como o rosto se eleva
                        da sua condição de cometa escarpado caído
                        raso,
                        e depois erguido defronte das câmaras,
                        por entre as pranchas de mármores das florestas da terra,
                        limpo, lento
                        - um toque secreto na têmpora,
                        o tremor da música na boca,
                        porque é o primeiro e o último baptismo:
                        o poema escreve o poeta nos recessos mais baixos,
                        às vezes o nome enche-se de água quebrada no gargalo da bilha,
                        às vezes é um nome esvaziado de água:
                        a sangue grosso,
                        a árduo sopro,
                        quando o rosto inquilino da luz já não se filma."
                                                                      (final de "Do Mundo", Assírio & Alvim, 1994)

domingo, 22 de março de 2015

Asas

   Aquele que se anuncia como o último, mesmo o último filme de Hayao Miyazaki, "As Asas do Vento"/"Kaze tachinu" (2013), é uma verdadeira, incomparável obra-prima, com a qual ele deixa de vez o seu nome indelevelmente ligado ao cinema de animação e à história do cinema, em que ocupa um lugar entre os maiores.
                    «As Asas do Vento», o último filme de Miyazaki, em ante-estreia na MONSTRA
    Fiel a técnicas tradicionais do cinema de animação, mas também fiel a um imaginário do Século XX, o grande mestre da animação japonesa dedica-se, como argumentista e realizador, a mais um exercício de sabedoria do cinema, da animação, do imaginário e da história, apostando tudo do lado do sonho na figura de Jiro Horikoshi/voz de Hideaki Anno, o homem que terá estado na origem da criação dos bombardeiros japoneses para a II Guerra Mundial.
    Começando pelo princípio, a história de um jovem japonês com um sonho, que o encontro com o italiano Giovanni Battista Caproni/voz de Mansai Nomura estimula e alimenta, Miyazaki refaz a história dos anos 20 e 30 por intermédio da história da personagem mas também das referências históricas e culturais do Japão e da Europa da época - muito bem aproveitada "A Montanha Mágica", de Thomas Mann.
                   
    Sobre uma história sua, o grande cineasta japonês não deixa os seus créditos por mãos alheias, e torna a juventude e o sonho a encarnação viva de um tempo de exaltação e promessas que iria acabar em catástrofe: a II Guerra Mundial. Mas é justamente ao meter-se no "olho do furacão" mantendo-se sempre sobre as suas personagens centrais que, filme histórico de animação, "As Asas do Vento" vai ao encontro de um centro nevrálgico que o enobrece.
     Uso estas palavras para apoiar no plano narrativo o meu enorme apreço pela arte visual de Hayao Miyazaki na animação, que acompanha o desenvolvimento perfeitamente calibrado dos amores do protagonista, que no início do seu namoro empurrados pelo vento ganham, literalmente, asas. Num filme em que, como nos anteriores do cineasta, as personagens levantam voo a partir dos pés. Com "Die Winterreise" de Schubert e tudo. Não é possível fazer hoje em dia melhor, e ainda bem que ainda hoje, na era do digital, é ainda possível a Miyazaki fazer este filme, em que, em especial na parte final, a imagem animada das personagens parece real.
                    Hayao Miyazaki
    Faz o grande mestre japonês da animação muito bem em despedir-se do cinema desta maneira, como Hans-Jürgen Syberberg, Peter Greenaway e Béla Tarr, entre outros, antes dele fizeram: piquenos novos mestres farão no futuro, com nova tecnologia, melhor do que ele fez. Abismado e comovido com este filme, aqui lhe deixo, Hayao Miyazaki, a minha homenagem e o meu maior apreço - eu que serei um dos últimos a conhecer toda a sua obra (sobre o cineasta ver "Uma animação principesca", de 30 de Março de 2012). 
     "Tens de viver", diz a Jiro Horikoshi no final o fantasma da mulher - e este fantasma feminino tem antecedentes importantíssimos no próprio cinema japonês, que deixo ao vosso cuidado descobrir.

O jogo sem regra

   Do cineasta russo Andrey Zviáguintsev (ver "Uma fábula moralista", de 27 de Agosto de 2012) chega-nos agora "Leviatã"/"Leviafan" (2014), mais um filme sobre a Rússia actual, pós-comunista e neo-capitalista. É um filme contundente, sem embaraços de linguagem nem de narrativa e com um alcance universal.
   Longe de contemporizar, como costuma acontecer em diversas cinematografias, o cineasta identifica um problema na Rússia actual, situando-o no Norte do país, próximo do Mar de Barents, e sobre ele constrói um filme inteligente, que não propõe soluções nem sequer total clareza sobre as suas personagens - vítima de intimidação e de chantagem, Kolya/Aleksey Serebryakov talvez até tenha assassinado no final a sua própria mulher, Lylia//Elena Lyadova, o que é deixado em aberto pelo seu desespero e por uma realização inteligente.
                    Leviatã - Foto 1
   No que mais interessa em termos cinematográficos, naquele quadro familiar e político acabrunhante Andrey Zviáguintsev, sem recusar o campo-contracampo, encaminha-se para o plano frontal de mais do que uma personagem em diálogo e usa muito esporadicamente a música (pois este não é um filme de entretenimento), o que dá uma maior sobriedade e, simultaneamente, uma maior clareza ao filme. Mas há no perder-se em delongas narrativas de "Leviatã", assinaladas por um convívio de embriaguês e hostilidade, de inveja e malevolência entre as personagens - exemplar a cena do tiro ao alvo -, uma atenção ao detalhe significativo de uma convivência doentia que marca decisivamente o filme e a sua narrativa, sem deixar equívocos ou mal-entendidos a esse respeito: ali tudo ruiu, todos ruíram, e naquele barco ninguém se salvou.
     Com a benção da igreja, no caso ortodoxa russa, ninguém quer saber de nada que não seja de si próprio - todos viram passar pelo Kremlin personalidades diversas, sem influência decisiva, nem como fantasmas, sobre a Rússia actual. Fria e feminina, a justiça debita-se e cumpre-se como deve mas só sobre o que é trazido perante si - num filme em que as mulheres não são melhores do que os homens, sem contemplações também aí, como deve ser e ainda bem que é.              
                    Leviatã - Foto 3
    Claro que ´"Leviatã"  é muito dialogado, pelo que o cineasta, também co-autor do argumento com Oleg Negin, deixa o seu comentário final para o fim, sem palavras, apenas sobre imagens - imagens da terra que se vêm acrescentar ao esqueleto do monstro marinho. Um comentário inequívoco e pessoal, como é devido. E para vocês que, do alto da vossa pesporrente luso-cacofonia delirante, se permitirem julgar que esta é uma questão de povos eslavos, olhem para o argueiro no vosso próprio olho.

domingo, 15 de março de 2015

Por Manoel de Oliveira

    Vários anos e mortos depois, saiu o terceiro volume do catálogo "Manoel de Oliveira" (2014), editado pela Fundação de Serralves a propósito da exposição que, comissariada por João Fernandes e João Bénard da Costa, dedicou ao grande mestre do cinema português e mundial por altura do seu centenário. 
    Agora sob a responsabilidade de António Preto, o grande especialista em M. O. depois da morte de João Bénard da Costa (1935-2009), que já lhe tinha dedicado "Manoel de Oliveira - O Cinema Inventado á Letra", editado pela Fundação de Serralves e o Jornal Público em 2008, este prometido e devido terceiro volume inclui contributos decisivos do próprio António Preto, "Depois do Passado ao Presente", de Luís Miguel Cintra, actor de eleição do cineasta (e de Paulo Rocha), "O Teatro no Cinema de Manoel de Oliveira", e o texto de Oliveira "O Cinema e o Capital", datado de 1933. O último capítulo da conversa de Manoel de Oliveira com João Fernandes e João Bénard da Costa, seguido de uma filmografia indispensável, faz deste volume a conclusão ideal de um projecto que, sem ele, ficaria incompleto. 
                   
     Tardiamente embora, o país tem sabido honrar em estudos cinematográficos compatíveis um grande cineasta que talvez nem sequer mereça, ao nível dos que lhe têm sido dedicados internacionalmente. A fechar o seu ensaio, sobre uma conhecida citação de João César Monteiro (1030-2003) escreve António Preto: "Como nos tempos que correm é tão difícil alargar o território quanto encurtar o cineasta, o país não tem outro remédio senão assumir o incómodo desta obra monumental e tentar estar à altura de executar o seu único testamento: fazer melhor, e fazer cada vez mais." Subscrevo inteiramente o que não saberia formular melhor.
     Longe de se limitar a fechar um capítulo, o terceiro volume deste importante catálogo abre decisivamente para os capítulos seguintes dos estudos sobre o cineasta, o que aqui se assinala e saúda (sobre Manoel de Oliveira ver "Sob o mesmo signo", de 12 de Fevereiro de 2012, "Regresso às origens", de 27 de Fevereiro de 2012, "A morte do fotógrafo", de 14 de Abril de 2012, "Oliveira filosófico", de 28 de Outubro de 2012, "Um filme histórico", de 15 de Março de 2014, e "Eu hei-de amar uma pedra", de 17 de Dezembro de 2014).

Feminino, o rosto

    Uma das últimas noites passou no Arte "Purge"/"Puhdistus", do finlandês Antti Jokinen (2012), baseado em novela da sua compatriota Sofi Oksanen. Dele estreara o anterior "Perigo à Espreita"/"The Resident" (2011), que não vi, e da escritora não conheço qualquer edição portuguesa.               
                      Purge domine les classements et prend la route des Oscars
       "Purge" é um filme muito curioso a vários títulos. Centrado na relação entre uma mulher mais velha, Aliide/Liise Tandefelt, com as suas recordações, e uma mulher mais nova, Zara/Amanda Pilke, com o seu presente difícil comparável ao passado da outra quando nova, Aliide/Laura Birn, rebate o passado de uma na Estónia sob ocupação soviética no pós-guerra sobre o presente da outra no mesmo país às mãos de uma rede de prostituição russa.
       A experiência de uma replica e comenta a experiência da outra, sobre a qual se rebate com violações incluídas, mas, muito bem construído, este filme destaca-se também pelo uso insistente e muito bom do grande-plano de rosto, o que o assinala decididamente, embora na sua segunda parte diminua a sua utilização para regressar no final. 
                      Liisi Tandefelt as old Aliide in "Purge"
     Gilles Deleuze escreveu o que havia e há ainda hoje a dizer sobre esta figura cinematográfica em "A Imagem-Movimento" (Capítulo VI, A Imagem-Afecção), para o qual vos remeto e que Antti Joinen sem dúvida conhece. Neste "Purge" ele usa o grande plano e o plano de pormenor com assinalável sucesso em especial sobre as actrizes, muito bonitas e assim ainda mais expressivas, pois no grande-plano os sentimentos, as emoções, os afectos vêem-se, sentem-se, percebem-se melhor,
     Claro que estas coisas melhores só nos chegam no Arte, um canal cultural franco-alemão de referência que acompanho há muitos anos e aqui volto a aconselhar, de cuja programação neste momento destaco "28 minutes", um programa diário de debate vivo e sempre actual apresentado pela excelente Élisabet Quin às 20H 05M, de segunda a sexta-feira. Com o estranho e inexplicável afastamento da profissional de excepção que é Zeinab Badawi do noticiário da BBC World News, neste horário só Christiane Amanpour na CNN é a outra opção - mes hommages, mesdames.

Sem honra nem glória

   "Nightcrawler - Repórtes na Noite"/"Nightcrawler" (2013) é a primeira longa-metragem do argumentista Dan Gilroy, erradamente identificado no dvd editado esta semana em Portugal com o seu irmão Tony Gilroy, realizador e argumentista de "Michael Clayton - Uma Questão de Confiança"/"Michael Clayton" (2007), de que um terceiro irmão, John Gilroy, foi responsável pela montagem. Tantos erros e confusões na edição portuguesa são de bom augúrio.  
                    NightCrawler_Jake
    De facto, este é um filme denso e muito bom, que mantém o olhar acre e o ritmo tenso de princípio a fim sobre o jornalismo televisivo da noite de Los Angeles, protagonizado por um excelente Jake Gyllenhaal como Louis Bloom, que entra num meio onde a qualquer preço quer singrar como repórter. A partir de argumento da sua autoria, o realizador desdobra os meandros conhecidos de uma profissão sem escrúpulos e sem consciência, em que a oportunidade, consubstanciada na miséria e no sofrimento alheio, tem de ser agarrada a qualquer preço, à revelia das autoridades, antes dos outros e contra eles.
    E aqui o dinheiro é uma questão decisiva: por quanto se vende, por quanto se compra, por quanto se trabalha e para quem. Com um aspecto inofensivo e despretencioso, "Nightcrawler - Repórter na Noite" constitui-se como um libelo fundamental contra um meio desacreditado porque, central na sociedade do entretenimento em que vivemos, se debate pelas piores notícias com as melhores imagens que fazem as supostas maiores audiências. A qualquer preço, a prioridade no péssimo é o seu lema.
                     3663-Lo-Sciacallo-Nightcrawler-Jake-Gyllenhaal
    O filme encontra antecedentes notáveis em "Escândalo na TV"/"Network", de Sidney Lumet (1976) e em "Assassinos Natos"/"Natural Born Killers", de Oliver Stone (1994) sobre história de Quentin Tarantino, e com plena actualidade não perde nada no confronto, já que o objectivo atingido de Louis Bloom é filmar o escândalo, filmar a morte violenta, que é o que é suposto agradar a  audiências néscias e mórbidas. Sobre o próprio cinema "8mm"/"8MM", de Joel Schumacher (1999), foi um filme muito importante.
     Se, pelo caminho, vos ocorrer perguntar por Portugal, posso dizer-vos que se finou há muito e eu não fui ao funeral: o último a sair há muito tinha fechado a porta e só ficaram as ratazanas de esgoto que, no odor fétido, se entre-devoram enquanto aos vermes e às termitas disputam despojos inexistentes. Sem manhãs de nevoeiro, para alívio geral dele não ficou memória, muito menos saudade.

domingo, 8 de março de 2015

Sobre a solidão

    Aparentemente uma revisitação de "Caravana de Mulheres"/"Westward the Women", de William Wellman (1951), o último filme de Tommy Lee Jones, "Uma Dívida de Honra"/"The Homesman" (2014), continua o seu anterior "Os Três Enterros de um Homem"/"The Three Burials of Melquides Estrada" (2005) pelo lado da solidão do protagonista, George Briggs, que ele próprio interpreta, mas também de Mary Bee Cuddy/Hilary Swank, e mesmo das três mulheres loucas que eles transportam.
                     Tommy Lee Jones in The Homesman 570x294 Tommy Lee Jones Western The Homesman Gets an International Trailer
      Este é um filme muito apreciável como western fora do seu tempo (há muito que o género perdeu a importâcia e pertinência que teve no cinema clássico e moderno americano - ver "Poética do western", de 29 de Setembro de 2013), pois a solidão de que trata é um dos temas maiores do western como género clássico que ele aqui revisita, aliás com referências explícitas a "A Desaparecida"/"The Searchers", de John Ford (1956) e a "O Passado Não Perdoa"/"The Unforgiven", de John Huston (1960). Ora a solidão é também um problema moderno, mesmo contemporâneo.
      Transportar três mulheres loucas é, neste filme, transportar a loucura dos outros e a loucura própria (porque ela se contamina) para um lugar seguro, e os pequenos papéis de John Lihtgow, James Spader e Meryl Streep apenas enquadram carinhosamente uma história trágica, tragicamente humana e com um grande potencial de envolvimento cinematográfico pela maneira como está inteligentemente tratada em termos fílmicos.
                      The Homesman
     Fora do seu tempo, de qualquer tempo, "Uma Dívida de Honra" é um western que nos leva ao coração do ser humano, preso por liames, que se transformam em grossas cordas, aos outros e ao que o rodeia, sem embargo do que ele tem que se desenvencilhar sozinho. Mesmo na civilização actual, em que não temos lugar a não ser na normalização requerida pelo sistema que nos rege e governa, com as suas referências culturais e comunicacionais próprias, perante as quais estamos como ele, George Briggs, e como ela, Mary Bee Cuddy: sós e pendurados pelo pescoço.
     Tanto Tommy Lee Jones como Hilary Swank estão soberbos nos protagonistas, num frente-a-frente pleno de sabedoria e de brio, num filme tão insólito quanto bem feito, dir-se-ia que contra as regras do género para melhor se cumprir como filme. Apenas anoto que o realizador e actor é também co-argumentista e que o francês Luc Besson (ver "Faz sentido", de 26 de Setembro de 2014) aparece como co-produtor, num filme com excelente fotografia de Rodrigo Prieto e música escassa mas muito boa de Marco Beltrami.