“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Por Ceylan

    Fiquei decididdamente muito satisfeito com a atribuição da Palma de Ouro do Festival de Cannes deste ano ao turco Nuri Bilge Ceylan, que considero um dos melhores cineastas actuais a nível mundial e no mesmo Festival tinha sido já galardoado com o prémio para o melhor realizador em 2008 por "Os Três macacos"/"Üç maymun" e com o Grande Prémio do Júri em 2011 por "Era Uma Vez na Anatólia"/"Bir zamanlar Anadolu'da" (ver "A grande fronteira", 20 de Maio de 2012).
                    Scene from 'Winter Sleep'
     Conhecendo todas as suas longas-metragens, posso apreciar tudo o que de subjectivo a nível de criação os seus filmes envolvem, da sua própria criação à exploração da incomunicabilidade, dos longos trajectos individuais aos locais isolados, numa sociedade complexa como é a Turquia contemporânea. Por esse lado, como a argentina Lucrecia Martel próximo de Michelangelo Antonioni, Ceylan confere aos seus filmes uma extrema densidade de situações e ambientes que a cor, tratada em saturação, ajuda a criar do lado da afecção, do afecto.                  
     Grande criador de personagens e de intrigas, por vezes minimalistas, ele não hesita, como em "Winter Sleep"/"Kis uykuso" (2014), agora distinguido em Cannes, na grande duração dos seus filmes (mais de três horas) para, desafiando a produção massificada, expor detidamente o que tem a dizer, a mostrar de forma pessoal. Ainda não conheço o filme, embora o aguarde com grande expectativa, mas desde já aconselho este cineasta fundamental que trabalha a sua arte, o cinema, como artista, grande artista, sempre como realizador e argumentista ou co-argumentista dos seus filmes.
                    Director Nuri Bilge Ceylan accepts the Palme d'Or award for the film "Winter Sleep" on stage during the Closing Ceremony at the 67th Annual Cannes Film Festival.
     De um país em cuja cinematografia se destacara Yilmaz Güney ("Yol - Licença Precária"/"Yol", 1982, também Palma de Ouro em Cannes) e de que aprecio Orhan Pamuk, um país herdeiro de uma cultura antiquíssima muito importante e muito diferente das culturas ocidentais, Nuri Bilge Ceylan consegue sempre de forma notável dar conta dos paradoxos que a modernidade lhe levanta de uma forma não simplista, cinematograficamente superior. A seguir atentamente, com os meus parabéns ao júri de Cannes 2014 presidido por Jane Campion.

Um outro dispositivo

     A exposição "Bill Viola" patente no Grand Palais, em Paris, até 21 de Julho oferece uma possibilidade extraordinária de ver algumas das grandes obras em vídeo do hoje lendário videasta americano.
     Com uma muito boa ocupação do espaço em salas sucessivas, a própria exposição funciona como diversas instalações ou uma grande instalação em que, sobre paredes opostas, os filmes em vídeo do artista pela sua exposição museográfica formam diversas peças ou uma mesma obra compósita.
      Na verdade, ao ocupar o espaço do museu Bill Viola provoca uma sua renovação que a grande originalidade do seu trabalho, centrado na questão temporal, na exploração da duração, suscita. Direi que três ideias-força decorrem destas exposição, no seu longo desdobrar que culmina numa vasta sala em que funcionam ao mesmo tempo cinco ecrãs com cinco filmes diferentes.
                      image 1
     A primeira ideia é o jogo com  a dilatação temporal, convocada pela longa distância percorrida, num só e mesmo plano, horizontalmente ou com gente que vem da profundidade distante do plano. Essa duração na distância pode dar-se com muita gente que percorre o mesmo percurso paralelo à câmara do videasta ou com um número variável de pessoas que, vindas do fundo, dela se aproximam.
    Em segundo lugar, alguns destes filmes cumprem um ritual quotidiano, em condições normais ou de excepção, pelo que são habitados por uma ideia de ritual e de repetição. Sem querer exagerar, creio que se contam entre os constantes desta exposição alguns dos melhores vídeos de Bill Viola.
    Uma terceira característica muito importante desta exposição é a integração da natureza nos vídeos, que a filmam ao filmarem aqueles que a percorrem, e nesse rodar pela natureza alguma coisa desta contamina os que a atravessam e dela retiram a sua parte elementar e o seu todo. E quando imagens de fogo ocupam o ecrã ele surge como elemento natural, indomável, enquanto as imagens da água a apresentam como elemento dominável. Mas quando se fecha, mesmo se em corte, sobre espaços fechados o trabalho do videasta dá tempo para que o que tem para mostrar se desenvolva num único plano, que no seu desenrolar seguimos atentamente.
           
          Claro que a proliferação no espaço dos trabalhos de Bill Viola cria um novo dispositivo, que habita e elabora de modo tal que, como tem sido observado, é o espectador que se move entre as imagens, dedicando a sua atenção ora a um, ora a outro ecrã, sempre frente a frente, por vezes lado a lado. Na última sala o espectador/visitante move-se de modo a tentar  abarcar o maior número de ecrãs possível, por eles dividindo a sua atenção, mas só mesmo uma visita demorada ou uma nova visita permitem ir mais longe.
       Bill Viola é um nome tido como fundador da arte do vídeo, com uma obra plurifacetada composta por filmes que funcionam por si mesmos, isoladamente, mas também podem ser objecto de uma montagem museográfica apropriada, como esta exposição do Grand Palais faz ao explorar a possibilidade de convívio de imagens diferentes de filmes diferentes no interior dos mesmos espaços.
         Com o vídeo muda o suporte do filme de modo que origina a mudança do próprio filme, do seu conceito e das suas coordenadas técnicas mas também espacio-temporais. O vídeo pode explorar mais, como com Bill Viola exemplarmente acontece, a dimensão estética, plástica da imagem quer em termos espaciais quer em termos de duração, mesmo se com prejuízo de uma dimensão narrativa tradicional, o que o tornou uma nova e muito importante arte visual e sonora.
                     Bill Viola, magicien aux mille images
       Foi com a emergência do vídeo como novo dispositivo visual e sonoro que o lugar do espectador começou a mudar, de fixo para móvel, de sentado para de pé e caminhando, de passivo para mais activo, de acordo com a mudança dos tempos. Desligado da própria ideia de "indústria" que tem acompanhado o cinema e o audiovisual, o vídeo artístico tem mostrado uma plasticidade conceptual nova e muito atraente, que o levou mesmo a ultrapassar o cinema, que em múltiplas circunstâncias dá mostras de estar a "envelhecer mal" enquanto continua a depender de um dispositivo fixo, imutável.
          Dos pormenores do corpo (o rosto, as mãos) aos grupos humanos, dos corpos erectos aos corpos sentados ou deitados, uma outra ideia-força fundamental que atravessa esta exposição é a do envelhecimento do próprio corpo humano - de novo os efeitos do tempo -, o que é muito importante num artista que, dizendo não temer a morte, também a representa e convoca nos trabalhos aqui patentes - logo à entrada no dispositivo em espelho em que nascimento e morte são colocados face a face, que funciona como mote da exposição.
          Esta exposição "Bill Viola" no Grand Palais em Paris justifica plenamente a deslocação e o eventual incómodo da espera pela nova perspectiva técnica e estética que abre à arte em geral e à imagem em movimento em especial.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Outra dimensão

    Olivier Assayas começou como redactor dos "Cahiers du Cinéma", fez curtas-metragens e foi argumentista, nomeadamente para André Téchiné, antes de realizar a sua primeira longa-metragem, "Desordem"/"Désordre" (1986). Como os outros cineastas surgidos em França nos anos 80 (Jean-Jacques Beineix, Luc Besson, Leos Carax) ele nunca reuniu, felizmente, um consenso à volta dos seus filmes. Pela minha parte, que prefiro as divergências aos falsos consensos, devo dizer que, até agora, nenhum dos seus filmes me desiludiu.
                     Après Mai: una scena del film
     Depois de "Carlos", filme e mini-série (2010) que sob a aparência de biografia de uma personagem verídica e controversa era um percuciente estudo de biopolítica de uma época (e quem não viu isso não viu o filme todo), dele surge agora "Depois de Maio"/"Après mai" (2012), baseado nas suas memórias pós-Maio 68 e por isso largamente autobiográfico. Na recuperação de uma época (o filme situa-se em 1971) e na reconstituição a que dela procede o cineasta revela-se feliz e convincente, com um notável apuro técnico, visual e sonoro, que decorre da distância dos acontecimentos e conduz a um certo distanciamento temporal.
       As citações de textos que são lidas, os livros que são mostrados, os filmes de que passam excertos, os cenários, as discussões no interior da mesma geração e com os mais velhos, as questões que se colocam às personagens e as que elas colocam ao próprio cinema trazem inteira a marca de uma época, revisitada com inteligência sobre uma memória que preserva a integridade da juventude. Sem querer dar lições a ninguém, Olivier Assayas tira muito bem proveito do contraste entre os tempos que retrata e a actualidade, em que a generalidade da juventude, embora influenciada por eles já não fala ou pensa naqueles termos, o que torna mesmo o seu filme um filme de época.
                    
     Com actores muito novos e desconhecidos, a que os mais velhos dão a réplica ajustada, todos mas em especial os primeiros a darem muito bem conta de si, "Depois de Maio" apresenta-se, assim, como um segundo filme em que o autor estuda em termos biopolíticos uma época bem definida, de que expõe elementos particularmente relevantes que permitem situá-la justamente no tempo. Sem ir tão longe e tão largo como a longa duração e a natureza da própria personagem permitiam e exigiam em "Carlos", este é um filme que pode ser visto como uma sua sequela menos escaldante mas igualmente bem caracterizada em termos narrativos e fílmicos, em que muito apropriadamente, como no filme anterior, a discussão da integridade das personagens  permite ver melhor além delas.
    Olivier Assayas continua a ser, com Leos Carax (ver "Por Carax: as versões", 18 de Fevereiro de 2012, e "O regresso de Carax", 24 de Dezembro de 2012), o cineasta mais interessante revelado em França nos anos 80, tirando largo benefício da sua intuição e dos efeitos do estilo que lhe é próprio como autor não ingénuo que sobre o passado do próprio cinema, que conhece bem, constrói as linhas mestras do quadro visual do plano, por vezes com citações expressas como a de "Passeio ao Campo"/"Partie de campagne", de Jean Renoir (1936) neste filme. Aliás, ele é um realizador que sabe também como escolher e utilizar uma banda sonora musical apropriada, que enriquece o filme da melhor e mais eclética maneira. A comparação com Philippe Garrel - "Os Amantes Regulares"/"Les amants réguliers" (2005) - é precipitada, pois estão em causa dois estilos e dois propósitos muito diferentes, um assente numa subjectividade radical enquanto o outro prefere criar a distância certa e um quadro de época que se ajustam melhor aos seus objectivos, que incluem, gostemos ou não, um lado decorativo, mesmo vistoso que lhes é próprio.
                     204641861 [Crítica] Depois de Maio
      No "excesso" de perfeição de "Depois de Maio", como no de "Carlos", passa alguma coisa de fundamental sobre um tempo e a integridade daqueles que o viveram intensamente, com todas as referências de época pertinentes de modo a permitir, para além das personagens mas a partir delas, uma boa leitura biopolítica, com recurso aos quase-clichés com a noção de que como tal os está a utilizar e da finalidade, que inclui a credibilidade de época, que eles servem.
      Para que não restem confusões ou equívocos, Philippe Garrel é, com Jean Eustache, o único herdeiro da nouvelle vague francesa que excedeu a herança dela e um dos maiores cineastas contemporâneos, enquanto Olivier Assayas pertence a uma outra linha expressiva e estética que, sem ignorar a nouvelle vague, não se fica por ela, tendo mesmo criado laços especiais com o cinema novo de Taiwan dos anos 80, que foi dos primeiros a descobrir e a que dedicou um filme, "HHH - Un portrait de Hou Hsiao-Hsien", para a série "Cinéma de notre temps" (1997), uma ligação a que o seu próprio cinema não é de modo nenhum alheio.

sábado, 17 de maio de 2014

O nº 700

    No seu nº 700 de Maio de 2014, um número histórico na tradição da revista, os "Cahiers du Cinéma" jogam, muito apropriadamente, o jogo da emoção no cinema, questionando 140 personalidades do mundo do cinema e da arte sobre uma emoção de cinema, um momento que os assombra na história, muito curta, do cinema.
   Felicitando os "Cahiers du Cinéma" por mais este número histórico, comemorativo de uma revista de referência, sem rival, jogo aqui o jogo que aí propõem: o momento de maior emoção para mim da história do cinema é o final de "Jules e Jim"/"Jules et Jim", de François Truffaut (1961), quando o sobrevivente daquele triângulo transporta as cinzas dos outros dois. Num filme mítico de um cineasta mítico, que se iniciou cedo como crítico nas páginas da revista, tal momento permite-me, sobrevivente imerecido, evocar todos os mortos de todos os grandes amores. 
                     http://www.hoodedutilitarian.com/wp-content/uploads/2011/02/bridge1.jpg
     Nunca escondi a minha preferência e o meu respeito pelos "Cahiers du Cinéma", nos seus melhores momentos, como o actual sob a direcção de Stéphane Delorme é, como nos menos bons, uma revista que sempre defendeu criticamente o próprio cinema nas diferentes ideias que sobre ele propôs e em que participaram tantos grandes nomes hoje desaparecidos, a começar pelo próprio André Bazin. Também nunca escondi a minha preferência por François Truffaut na "nouvelle vague" francesa. O amor, a morte que no final deste filme impõe a "compaixão", a "piedade" da catarse, que supera a vulgar empatia. Nas cinzas desta comemoração, com votos de muitos e bons anos de vida.
    Joguem este jogo, sério e inteligente, para o qual a revista nos convida e talvez encontrem algumas surpresas no vosso próprio gosto do cinema. "Numa palavra: emoção", dizia do cinema Sam Fuller no início de "Pedro o Louco"/"Pierrot le fou", de Jean-Luc Godard (1965). Como se calhar já não percebem isto dito assim, em palavras simples e directas, por alguém que talvez nem sequer saibam quem foi, acrescento: "A imagem cinematográfica fornece a melhor demonstração do carácter antroplógico da imagem, pois ela não se forma nem sobre o ecrã nem no "espaço fílmico" fora de quadro, mas no espectador, por associação e reminiscência" (Hans Belting in Bild-Anthropologie: Entwürfe für eine Bildwissenschaft, Wilhem Fink Verlag, München, 2001, que acaba de ter edição portuguesa: Antropologia da Imagem, Kkym, Lisboa, 2014 - traduzo a partir da edição francesa: Pour une anthropologie des images, Gallimard, Paris, 2004, pág. 46).
      Vamos lá. Não durmam agora.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

O trabalhador

       O austríaco Michael Glawogger (1959-2014), que morreu de malária em Monróvia, na Libéria, no dia 23 de Abril passado, deixou atrás de si uma obra notável de que se destaca o documentário "A Morte do Homem Trabalhador"/"Workingman's Death" (2005), em que trata de forma desassombrada os extremos a que é levada a condição de trabalhador nos nossos dias.
    Percorrendo o mundo aí onde a condição de trabalhador mais dói, mesmo perante os paradigmas que durante a primeira metade do século XX a exaltaram, que evoca em imagens documentais, o cineasta mostra sem paliativos ou ambiguidades a crua situação de quem trabalha nas situações mais penosas, difíceis e brutais. Da Ucrânia à Indonésia, da Nigéria ao Paquistão mostra o quotidiano de quem trabalha em minas de carvão, na cratera de um vulcão, num matadouro, no desmantelamento de um cargueiro nas piores condições de salubridade e com muito escasso tempo para si próprio. E ao fazê-lo permite-nos aceder ao âmago de comunidades brutalizadas no início do Século XXI, sem acesso aos mais elementares benefícios trazidos pelo Século XX, sem direitos e privadas das novas tecnologias da informação.
                     
          São todos gente pobre e que não tem outra possibilidade de vida que o trabalho, como diz um trabalhador do matadouro. O último segmento de "A Morte do Homem Trabalhador", mais curto e passado na China, vem estabelecer um outro ponto de vista que uma sociedade dinâmica e em progresso permite, com a generalizada maquinização do anterior trabalho e a consequente ameaça de passagem de uma siderurgia para o passado, a história, o que o epílogo, na Alemana, confirma com a transformação de um complexo industrial num vasto espaço de diversões.
      Ficam deste filme sobretudo as imagens de um trabalho violento e muito duro, sem alternativas nas economias mais atrasadas e em vias de extinção nas mais avançadas, e as palavras e imagens de sociedades avançadas, mesmo em fase pós-industrial, em que a questão do trabalho e do trabalhador passou a ser encarada de outra maneira. Faltam-lhe, contudo, como é inevitável, as imagens posteriores à crise de 2008, com o aumento do "exército de reserva" de desempregados em todo o mundo, a proletarização de uma classe média e a crise instalada em sociedades que se julgavam prósperas.
                    
      Mas mesmo este aspectos resultantes de uma situação posterior ao filme são por ele implicitamente comentados ao mostrar como em tempos de grande progresso tecnológico vastas populações permanecem amarradas a modos antigos de trabalhar, extremamente exigentes fisicamente, mas gratas por terem esse trabalho pois é ele que lhes permite continuarem a viver. E que nem o trabalho nem o trabalhador acabaram demonstra-o o facto de, antigo ou moderno, todos nós precisarmos dele.
       Michael Glawogger tem o mérito de neste documentário procurar as melhores imagens, o melhor enquadramento visual, os melhores diálogos e depoimentos, sem em momento algum tentar tirar proveito, nomeadamente pela estetização, daqueles e daquilo que mostra. No justo tom assim conseguido, "A Morte do Homem Trabalhador" soa como um "toque de rebate" pelo trabalhador no seu entendimento tradicional mas também como um esclarecimento e um alerta para situações concretas e actuais de que convém termos conhecimento e consciência se não queremos viver apenas atordoados pela actual sociedade do espectáculo, da comunicação mas também da penúria intelectual e humana.
                   
      Como cineasta, Glawogger ocupou o seu espaço próprio no cinema em especial no documentário e por este filme podemos ficar a conhecer uma parte do melhor da obra que nos deixou após a sua partida precoce, que aqui lamento sentidamente em si mesma e pelo que impediu que continuasse a fazer. Este filme, que devia ser mostrado mais vezes, passou no passado Domingo no Arte em homenagem ao cineasta. Chamo neste momento a vossa especial atenção para "Megacities" (1998) e "Whores' Glory" (2011), outros dois importantes documentários de Michael Glawogger feitos segundo o mesmo princípio de "A Morte do Homem Trabalhador" de filmar em diferentes partes do mundo.

domingo, 4 de maio de 2014

Por James Gray

    Não estreou ainda em Portugal o último filme do americano James Gray, "The Immigrant" (2013), uma absoluta obra-prima daquele que considero o melhor cineastra americano da actualidade. Com o próprio cineasta como co-argumentista, com Richard Menello, numa dupla que repete a de "Duplo Amor"/"Two Lovers" (2008), a quinta longa-metragem de Gray leva-me a debruçar-me atentamente sobre o seu caso.
                                                          
   Tendo-se estreado com "Viver e Morrer em Little Odessa"/"Little Odessa" (1994), James Gray insistiu no filme de gangsters nos seus dois filmes seguintes, "Nas Teias da Corrupção"/"The Yards" (2000) e "Nós Controlamos a Noite"/"We Own the Night" (2007), para nos surpreender depois com o excepcional melodrama que é "Duplo Amor". Para o seu regresso ele volta ao clima do filme de gangsters mas numa perspectiva histórica, pois "The Immigrant" passa-se em 1921, e cruza-o muito sabiamente com o melodrama na história de amores infelizes que, em tragédia, se consumam de formas diferentes, talvez felizes.
    O que me faz amar o cinema de James Gray é a sua superior arte da mise en scène, que hoje em dia muito poucos cineastas cultivam ainda, usada num filme com todos os ingredientes de género que, pela criação do plano, pelos ambientes de época, pela construção narrativa e fílmica, pelo trabalho dos actores apela ao mais recôndito de nós mesmos para podermos compreender e amar uma história aparentemente banal e personagens aparentemente comuns mas de uma grande actualidade.   
                      the-immigrant--3
     Não sei de quem, entre os clássicos da Nova Hollywood, os modernos e os independentes no cinema americano tenha uma tão inteligente compreensão das personagens dramáticas, da narrativa trágica como ele, sem procurar nem perseguir o grande espectáculo, tem. No limiar entre o grande espectáculo e a narrativa dramática, James Gray opta sempre pelo caminho mais difícil e, simultaneamente, mais pessoal, construindo planos de época, evocativos, de uma precisão visual espantosamente justa, em que sistematicamente nega a profundidade de campo em favor de uma sempre justificada desfocagem do fundo.
    Como os seus filmes anteriores, sobreudo "Duplo Amor", "The Immigrant" é uma espantosa história de amores conturbados, que como em François Truffaut ou Claude Chabrol se resolve entre dois homens, Bruno/Joaquin Phoenix e Orlando/Jeremy Renner, e uma mulher, a imigrante polaca Ewa Cybulska/Marilon Cotillard que, desprezada pelos seus tios, tenta a todo o custo resgatar a sua irmã, que com ela chegou à América mas ficou retida em Ellis Island. Direi mesmo que raramente a tragédia, suportada pelo destino, passa no cinema americano com tanta e tão bem sustentada pertinência como no triângulo amoroso deste filme.
                     
       Na verdade, invadido por uma violência interior que se exterioriza, "The Immigrant" deve ser visto como uma desesperada história de amor sem saída para ninguém a não ser para as duas irmãs, à custa do sacrifício dos homens que por elas se querem sacrificar - e tanto Bruno como Orlando são personagens sólidas, dependentes do amor pela mesma mulher, que cada um à sua maneira ambos cumprem.
        Agora a mise en scène, extremamente segura e sempre dominada por forma a dar conta da melhor maneira da dinâmica dramática numa dimensão de tragédia, atinge o seu ácume no plano final, que pressupõe e reflecte "Amor de Perdição", de Manoel de Oliveira (1978), e só posso manifestar o meu maior apreço por James Gray especialmente pela construção desse plano, lúgubre, esperançoso e trágico. Se o filme de gangsters é um género crítico, o seu cruzamento com o melodrama justifica-se aqui plenamente, como nos três primeiros filmes do cineasta, pelo carácter trágico que assume, o que só por si faz deste filme uma obra superior.             
                      
        Vejam os três filmes anteriores de James Gray, editados em dvd, e "Laços de Sague"/"Blood Ties", de Guillaume Canet (2013), de que ele é co-argumentista, enquanto esperam por esta sua última admirável obra-prima. Eu sou, decididamente, por James Gray, um grande, um fundamental cineasta-autor.