“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 31 de março de 2014

Pura beleza

    Da Irlanda apenas conhecia W. B. Yeats e James Joyce, Seamus Heaney e John Banville/Benjamin Black. Procurei e encontrei isto
        https://www.google.pt/#q=black+is+the+colour+celtic+woman
que considero um momento de perfeita, pura beleza. Não é preciso "beijar as pedras do chão" de um sítio tão pouco higiénico como a calçada portuguesa é, como reza um fado antigo. Basta, com "the gentlest touch" de uma muito bela mulher que numa voz belíssima canta um simples, belo poema com uma música invulgarmente bela e melodiosa, dizer cantando: "And I love the ground/Where on she stands/goes".
                               Mairead
   A partir daqui, explorem as "Celtic Woman", que podem encontrar aqui
   http://celticwoman.com/
e estão editadas em Portugal em cd e dvd.
   Eu sei que vocés são mais do género Madonna, Beyoncé e aqueles/as fadistas portugueses/as de quem nem sequer o nome sei. Se quiserem encontrar-me nesta Primavera procurem-me aqui. (Lembro que de ascendência irlandesa eram John Ford e John Huston, dois gigantes do cinema americano do Século XX.)

domingo, 30 de março de 2014

Poética de Alain Resnais

   O grande, com Raoul Ruiz o maior cineasta do tempo, Alain Resnais (!922-2014) foi o continuador inventivo de Orson Welles, cuja inspiração levou para novos, problemáticos caminhos.
    Tendo começado no cinema com o documentário de curta-metragem, Resnais filmou toda a memória do mundo em "Les statues meurent aussi" (co-Chris Marker, 1953), "Toute la mémoire du monde" (1956), como filmou a arte em "Van Gogh" (1948), "Guernica" e "Gauguin" (1950), "Goya" (1951), e a memória do Holocausto, pela primeira vez e de forma exemplar em "Noite e Nevoeiro"/"Nuit et brouillard" (1955). Já aí, no depois denominado filme-ensaio a sua questão foi o tempo, a memória, o pensamento.
                      Delphine Seyrig no papel de A, em "L’Année Dernière à Marienbad (Alain Resnais, 1961)        
       A partir do seu primeiro filme de ficção, "Hiroshima, Meu Amor"/"Hiroshima mon amour" (1959), com argumento de Marguerite Duras, também sobre a memória da II Guerra Mundial, encetou uma caminhada pelos tempos da vida, pelas vidas no tempo, sem se alhear do seu próprio tempo, antes elaborando sobre ele. Seguiram-se "O Último Ano em Marienbad"/"L'année dernière à Marienbad" (1961), com argumento de Alain Robbe-Grillet, de quem esteve muito próximo, "Muriel ou O Tempo de um Regresso"/"Muriel ou Le temps d'un retour" (1963), "A Guerra Acabou"/"La guerre est finie" (1966), com argumento de Jorge Semprún, e "Amo-te, Amo-te"/"Je t'aime, je t'aime" (1968), com argumento de Jacques Sternberg. Destes foi "O Último Ano em Marienbad" o filme decisivo por remeter para diferentes camadas do tempo a partir das quais as personagens exemplarmente se replicam, encontram e desencontram: a mulher, o marido, o amante. E no paradoxo assim construído residiu um mistério que antecipava e replicava o de "La Jetée", de Chris Marker, 1962 (ver "Poética de Chris Marker, 2 de Agosto de 2012), e que iria ser aprofundado no mergulho no tempo de "Amo-te, Amo-te".
     Nos anos 70, depois de "Stavisky, o Grande Jogador"/"Stavisky" (1974), o seu filme aparentemente mais "normalizado", foi decisivo "Providence" (1977), com argumento de David Mercer, em que com grandes actores de língua inglesa (Dirk Bogarde, John Gielgud, Ellen Burstyn, David Warner, Elaine Stritch) se dedicou ao desdobramento e alteração do mundo pela criação literária, narrativa. Aí alguma coisa de fundamental se passa, e passa-se na cabeça do escritor, velho e alcoolizado, que permite compreender integralmente a referência de Gilles Deleuze a Alain Resnais como autor de um "cinema do cérebro".
                     
     Com o passar do tempo, em "O Meu Tio da América"/"Mon oncle d'Amérique" (1980), baseado em Henri Laborit, e "A Vida é Um Romance"/"La vie est un roman" (1983), com argmento de Jean Gruault, Alain Resnais dedicou-se às camadas estratigráficas do tempo de um modo resolutamente novo, que quebrava qualquer tentativa de linearização simplória, para depois, em "Amor Eterno"/"L'amour à mort" (1984), de novo com argumento de Jean Gruault, e "Mélo" (1986), a partir de peça de Henri Bernstein, com grande concentração espacio-temporal, mesmo influência teatral, se confrontar com os limites entre a vida e a morte.
    No final dos anos 80 assumiu explicitamente a influência e o seu gosto da banda-desenhada em "Quero Ir Para Casa"/"I Want to Go Home" (1989). Estava então definido o grupo de actores que, depois de Emmanuelle Riva, Delphine Seyrig, Yves Montand, Ingrid Thulin, Geneviève Bujold, Claude Rich, Jean-Pierre Belmondo, Gerard Dépardieu, Nicole Garcia, Vittorio Gassman, Geraldine Chaplin, Fanny Ardent, Micheline Presle, o iriam acompanhar até ao fim: Sabine Azéma, Pierre Arditi, André Dussolier, mais tarde Lambert Wilson. Com os dois primeiros empreendeu o díptico "Fumar"/Não Fumar"-"Smoking"/"No Smoking" (1993), a partir de peça do inglês Alan Ayckbourn, em que, levando-o até ao fim, desdobrou e descreveu um mapa interactivo de "caminhos que bifurcam", e esse terá sido - filmado em estúdio, o que aumentou o seu lado teatral - o seu melhor filme desde a última década do Século XX, durante a qual fez ainda "É Sempre a Mesma Cantiga"/"On connait la chanson" (1997), com argumento de Jean-Pierre Bacri e Agnès Jaoui, em que investiu o musical.
                     
     Já no Século XXI, insistiu no musical em "Nos lábios não"/"Pas sur la bouche" (2003) e voltou aos seus inícios em "Corações"/"Coeurs" (2006), de novo a partir de peça de Alan Ayckbourn, e "As Ervas Daninhas"/"Les herbes folles" (2009), baseado em novela de Christian Gailly, o último dos seus filmes que conheço (ver "No topo", 15 de Janeiro de 2012). Pouco antes de morrer, recebeu no Festival de Berlim de 2014 o importante Urso de Prata Alfred Bauer pelo seu último filme "Aimer, boire et chanter" (2014), mais uma vez baseado em peça de Alan Ayckbourn - o seu penúltimo filme, "Vous n'avez encore rien vu" (2012), baseia-se em peças de Jean Anouilh, e o teatro marca uma presença importante na sua obra desde "Amor Eterno" e "Mélo".
    Capaz do mais declarado humor ("É Sempre a Mesma Cantiga", "Nos lábios não") como da mais inesperada inspiração ("Quero Ir Para Casa"), sempre com uma dignidade exemplar Alain Resnais soube estar e permanecer atento ao mais paradoxal da vida humana. Influenciado pela cultura inglesa, no labiríntico desdobrar do tempo e das idades da segunda metade do Século XX e do início do XXI ele foi uma figura maior do cinema francês e do cinema mundial, que com o seu génio pessoal acrescentou e engrandeceu. Contemporâneo da "nouvelle vague" francesa, de que foi parte indeclinável, ele impôs um cinema verdadeiramente novo que deixou uma marca indelével do lado do tratamento do tempo como paradoxo maior.  
                      tumblr n1t2i0wNK01qaihw2o1 1280 Alain Resnais (1922 – 2014)
      Cineasta fulgurante do tempo e do espaço, Alain Resnais investiu-os sempre a partir do cérebro mas também do corpo das suas personagens, mesmo quando dedicou especial atenção a aspectos arquitectónicos do filme, como aconteceu sobretudo nos seus filmes iniciais - e aí esteve ao nível de Michelangelo Antonioni. A sua foi, portanto, uma poética moderna das fronteiras do tempo e dos limites do cérebro. Quem conhece os seus filmes não o esquecerá como um dos maiores cineastas de sempre.

Nota bibliográfica
Ausente da bibliografia portuguesa de cinema, salvo por um catálogo da Cinemateca Portuguesa (Lisboa, 1992), Alain Resnais foi alvo de estudos de referência em França, de que entre outros destaco os fundamentais "Alain Resnais arpenteur de l'imaginaire", de Robert Benayoun (Paris, Éditions Stock, 1980 - 1985, 1999 em edições revistas e aumentadas) e "Alain Resnais. Liaisons secrètes, accods vagabonds", de Suzanne Liandrat-Guigues e Jean-Louis Leutrat (Paris, Cahiers du Cinéma, 2006). Também Gilles Deleuze faz referência detalhada aos seus filmes em "L'image-temps" (Paris, Les Éditions de Minuit, 1985). 

Eu tive um sonho

    Passeava, despreocupado e jovem, pelo Jardim Botânico, em volta e por trás da Faculdade de Ciências de Lisboa, numa tarde soalheira de Primavera. Despreocupado, sem cuidar de mim cuidava do que me rodeava, sem cuidar do que me rodeava cuidava de mim. Este era o meu passeio habitual, de todos os dias, sem sonhos nocturnos nem fantasmas pessoais.
    Como todos os dias, por entre o vazio do jardim àquela hora encontrei sentado num banco um senhor de óculos de aros de metal e de bigode. Nunca me preocupei em perguntar às pessoas com quem me cruzava na minha juventude como se chamavam nem em declinar-lhes o meu nome, que supunha todos conhecerem.
   O senhor sentado num banco, de óculos de aros de metal e bigode, manteve-se na mesma posição, perna traçada e olhando em frente com a cabeça ligeiramente inclinada, como se lesse um jornal que não tinha nas mãos. Àquela hora, pensei para comigo, não devia ser o Fernando Pessoa, que estaria na Rua dos Douradores no seu trabalho de amanuense. Também não seria um dos outros em que ele divagava, presos como ele dentro de si mesmo.
                     
     Continuei o meu caminho, eu que ando sempre em frente sem me preocupar em olhar para trás ou de través, simples curioso ocioso da minha juventude. Mais à frente fui surpreendido por ver o mesmo senhor de óculos de aros metálicos e de bigode sentado num outro banco do jardim, mais abaixo. Se não era ele era muito parecido, e isto não costumava acontecer. Abrandei o passo e tornei-me mais atento perante este princípio de proliferação. Este novo senhor de óculos de aros metálicos e de bigode, partindo do princípio de que não era o mesmo, tinha as pernas descruzadas e a cabeça inclinada para baixo, de modo que nem me terá visto quando passei por ele.
     Intrigado, uma vez chegado ao fundo do Jardim Botânico voltei para trás, tentando percorrer exactamente o mesmo caminho, agora em sentido inverso. Andado um bocado, num banco diferente num lugar diferente o mesmo senhor de óculos de aros metálicos e bigode sentava-se num outro banco, agora direito e tenso, olhando impaciente para o relógio. Outros jovens como eu desciam em sentido contrário ao que eu seguia e riam, alegres e despreocupados.
     Continuei a subir em direcção á saída, atento e vigilante a uma nova aparição do senhor de óculos de aros metálicos e bigode. Em sentido contrário dirigiu-se então ao meu encontro, apressada, uma mulher alta e esguia, de cabelo longo e negro - de um negro lutuoso. Se não fosse aquela ideia de que o outro estaria àquela hora no escritório da Rua dos Douradores, ter-lhe-ia perguntado se se chamava Ofélia. Em vez disso, apontando para o pulso perguntei-lhe as horas e ela, sem abrandar o passo, respondeu-me que se chamava Isabel e seguiu em frente.
                                                       
    Com a idade divago muito, penso que ainda estou vivo e que o Antonio Tabbuchi morreu, de maneira que geram-se estas confusões no meu espírito. Saio a porta do Jardim Botânico, atravesso e desço a rua em frente, em direcção à casa onde ninguém me espera já. Ao entrar a porta olho para o espelho e nele reconheço o senhor de óculos de aros de metal e bigode.
     Percebendo de imediato, desço rapidamente as escadas e dirijo-me ao meu quarto em Campo de Ourique, onde de pé, pela noite dentro escrevo febrilmente sobre a cómoda. Até que a luz subitamente se apaga e eu acordo de repente.
     "Para Isabel" (Lisboa, Dom Quixote, 2014) é o novo livro, inédito póstumo de Antonio Tabucchi que, com o devido agradecimento à Maria José de Lencastre, recomendo vivamente, pois trata-se de um grande escritor cada vez mais vivo que de há muito admiro e a que auguro um grande futuro.     

sábado, 29 de março de 2014

O dinheiro

    "Mata-os Suavemente"/"Killing Them Softly" (2012) é a terceira longa-metragem do neo-zelandês Andrew Dominik, segunda feita na América. Depois de "O Assassínio de Jesse James Pelo Cobarde Robert Ford"/"The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford" (2007), em que recuperava a mitologia do western duma forma feliz, sempre como argumentista e de novo com Brad Pitt o cineasta revisita agora o filme de gangsters e os seus códigos de uma forma convincente.
                     Killing Them Softly 1
      Sendo um filme de acção habilmente construído com grande recurso aos diálogos e aos actores, entre os quais Ray Liotta e James Gandolfini, ambos com imagem de marca no género e o segundo numa das suas últimas interpretações, "Mata-os Suavemente" decorre durante o crash bolsista de Wall Street que em 2008 abalou a América e todo o mundo, e esse pano de fundo não lhe é, de maneira nenhuma indiferente. De facto, o que no filme é encenado mais do que uma luta pelo poder, que também está presente, é uma luta pelo dinheiro, que aliás comenta a outra.
       De Jackie/Brad Pitt a Markie Trattman/Ray Liotta, passando por Mickie/James Gandolfini e pelos comparsas menores que querem crescer, todos se batem por mais alguns dólares, por mais um outro, melhor negócio que signifique mais dinheiro, embora todos, ou quase todos eles tropecem noutros prazeres que, como negócios, lhe estão associados: o jogo, as mulheres, o alcool, as drogas - e desse ponto de vista o filme traça um retrato bastante completo. 
                     killing-them-softly
       Neste submundo já sem lugar para personagens positivas, como passou a acontecer no filme de gangsters a partir da Nova Hollywood, as personagens tipificadas, com os seus códigos mas sem qualquer possibilidade de redenção a não ser através do dinheiro, como no mundo por cima, oficial, nada mais pretendem do que cumprir o que lhes encomendam, ser pagas, continuar vivas e prosseguir. Levada até ao fim, a crítica implícita que se torna explícita mostra-se justa e faz muito pelo interesse do filme. Sem concessões e em obediência a uma lógica implacável, "Mata-os Suavemente" cumpre-se como projecto narrativo e fílmico sem qualquer mácula, embora também sem qualquer surpresa.
   Sem desiludir nem deslumbrar, com o mecanismo narrativo ainda demasiado visível, nomeadamente nos diálogos, mas com gandes actores - o dálogo entre Jackie e Mickie no quarto do hotel está muito bom devido à grande interpretação de Gandolfini -, Andrew Dominik reafirma-se aqui como um cineasta seguro e senhor do seu ofício com que há que contar, tanto mais interessante e promissor quanto continua a trabalhar sobre a memória, o passado do cinema de uma forma desenvolta e muito apropriada, ajustada aos tempos que correm. Por sua vez, Brad Pitt continua aqui a crescer quer como actor, sobretudo do lado da criação e do desenvolvimento de uma mitologia pessoal, quer como produtor inteligente, que "12 Anos Escravo"/"12 Years a Slave", de Steve McQueen (2013), veio confirmar.      

domingo, 23 de março de 2014

Jogo de duplos

    Do israelita Ari Folman, autor do apreciado "A Valsa com Bashir"/"Vals Im Bashir" (2008), estreou agora "O Congresso"/"The Congress" (2013), baseado em novela do conhecido escritor polaco de ficção-científica Stanislaw Lem, que combina imagem real e animação de uma forma muito feliz. A ideia de digitalização de um actor, Robin Wright no caso, não tem hoje em dia nada de ficção-científica e está muito bem definida e defendida com a exploração de dois mundos, um real, o outro de fascinante ficção hedonista, dado em animação. 
                     robin wright dnas le film le congres d ari folman 10914810okeou Sitges 2013: Magníficas Le Congress y Much Ado About Nothing, solventes Dark Tocuh y Europa One y lastrada Open Grave
    Chamo a atenção para a enorme qualidade do trabalho de animação, mais que perfeito justo e admirável, que em contraste com as espessas imagens reais, sujas no final nos deixa abismados perante o mundo que desenha como nos deixaram fascinados os grandes filmes de ficção-científica desde "Metropolis", de Fritz Lang (1927), que como se viu a seguir não tinha nada de ficção-científica. Justamente, o fascinante mundo paralelo que surge em animação, em que uma ainda bela actriz, vinte anos depois do seu scan entra, com a posterior proposta da sua passagem a uma simples fórmula química, é o mundo em que hoje em dia todos (enfim, nem todos, como muito bem observa o filme) vivemos.
   Nestes termos, é pelo rosto real de Robin Wright, de Al/Harvey Keitel e do Dr. Barker/Paul Giamatti que em especial passa o mais significativamente humano deste filme, que joga muito bem com a duplicidade do actor e com a duplicidade da proposta feita a Robin. E quando o comparsa dela no mundo futuro para ela visualiza um sonho, esclarece que aquele não é o sonho dele, enquanto ela não cessa de procurar o filho desaparecido, que dela se desencontra. Com um rigor visual e narrativo admirável, Ari Folman mostra de forma clara o que é ainda o cinema quando se pretende trabalhar sobre as suas próprias cinzas. 
                     Robin Wright
     Há ainda questões humanas e preocupação com elas no mundo robotizado em que vivemos com o pretexto da liberdade e do livre-arbítrio, ou não somos, continuamos a ser já meros títeres nas mãos dos que nos comandam? Irresistivelmente, pela sua própria conclusão em que a mãe se junta à filha este "O Congresso" fez-me pensar em "Grau de Destruição"/"Fahrenheit 451", de François Truffaut (1966), pois somos convidados a resistir a uma invasão que, com grandes promessas nos excede e, no limite, suprime.
     Muito embora possamos compreender o desejo de fazer o scan de outros e até a vontade de domínio, devemos reconhecer que inofensivos não são e por isso mesmo ingénuos não devemos ser. E a música de Michal Englert fica muito bem no filme, enquanto a presença de Danny Huston como Jeff é muito boa e evocativa do seu pai, John Huston (1906-1987).

sábado, 15 de março de 2014

Um filme histórico

    Por uma feliz decisão de programação, o Cineclube do Porto exibiu esta semana na Casa das Artes, no Porto, o filme "Centro Histórico", encomendado pela Guimarães 2012 - Capital Europeia da Cultura a quatro destacados cineastas europeus, que não tinha ainda sido mostrado depois do evento que o suscitou. Desta vez consegui ver, e ainda bem, pois trata-se mesmo de um filme histórico.
                    
   "O Tasqueiro", dirigido pelo finlandês Aki Kaurismäki, é uma pequena e muito saborosa curta-metragem que, em breves apontamentos, dá o clima de uma tasca vimaranense que serve refeições e da cidade em volta dela. Com um actor finlandês, Ikka Koivula, o cineasta deixa a sua inconfundível marca pessoal em pequenos, significativos pormenores, como a soleira muito gasta da porta, a mudança do que está escrito na ementa, a prodigiosa selecção de fados e, em geral, o preenchimento do espaço visual e sonoro.
                    
    Em "Sweet Exorcism" Pedro Costa convoca de novo o já nosso conhecido Ventura para um abissal e memorável mergulho no passado português, que ele mesmo em 25 de Abril de 1974 viveu de fora e de dentro, no Jardim da Estrela, com a sua gente. Mas se essa circunstância, convocada entre outras pela personagem, é importante, mais importante ainda é a construção deste segmento, que se resolve entre um Ventura cada vez mais fantomático e a escultura de um militar, enquanto vozes não localizadas do espaço fora de campo (off no sentido de Serge Daney), provenientes de interlocutores invisíveis - salvo se corresponderem a personagens que, não identificadas, são mostradas na abertura e no fecho, em exteriores, o que não é esclarecido -, estabelecem o diálogo com o primeiro. Não é, contudo, de excluir, que essas vozes provenham da cabeça do próprio Ventura, que ele as imagine. Este é mais um momento fundamental do cinema corajoso e exigente de Pedro Costa, a que me apetece chamar o seu "momento transcendental".
                     
     Tendo já escrito aqui sobre "Vidros Partidos" (ver "Por Victor Erice", 21 de Setembro de 2013), que só por si justifica esta encomenda, apenas me falta referir o pequeno apontamento, ele também memorável por causa da assinatura, que é "O Conquistador Conquistado", de Manoel de Oliveira, em que um guia turístico/Ricardo Trepa mostra Guimarães a um grupo de turistas enquanto lhes conta a história da fundação de um reino. Com suavidade e elegância, guardando a distância que o narrador e a sua audiência, os novos "conquistadores" em que ninguém é individualizado impõem, o mestre português mostra tudo e conta tudo, pormenorizadamente, para toda a gente, justificando plenamente a pertinência deste convite e da sua aceitação .
    Do mesmo passo que felicito o Cineclube do Porto por esta iniciativa de programação, muito oportuna e muito bem acolhida, volto a dizer aqui que este é um filme histórico não só pelo evento que esteve na sua origem mas sobretudo pela prodigiosa conjunção de grandes cineastas que proporcionou, um filme que por isso mesmo merece uma divulgação alargada, de modo que possa chegar a todos.

Evocativo

     Ao afoitar-se a um filme sobre Roma, "A Grande Beleza"/"La grande bellezza" (2013), o italiano Paolo Sorretino ter-se-á lembrado de Federico Fellini, nomeadamente de "A Doce Vida"/"La dolce vita" (1960) e "Fellini Oito e Meio"/"8 1/2" (1963), o primeiro por causa da própria cidade, o segundo por causa de Jep Gambardella/Toni Servillo, o protagonista do seu filme, um homem de 65 anos que escreveu um único livro quando jovem e depois disso nada mais, secou como escritor.                    
                    Cinemascope-A-grande-beleza (6)
      A ideia é boa e o cineasta, que tem atrás de si uma obra com filmes interessantes, o último dos quais "Este é o Meu Lugar"/"This Must Be the Place" (2011), com Sean Penn, consegue em "A Grande Beleza" acompanhar a sua personagem através da cidade e prender-nos à sua vaga sensação de tédio e de vazio, o que interessa porque Jep se propõe escrever de novo justamente sobre o vazio. Sobretudo na segunda parte do filme somos levados para mais próximo dele de maneira a percebermos o meio em que ele se move e sentirmos melhor o que ele sente.
    Simplesmente, Paolo Sorrentino entrega-se a uma maneira fastidiosa de filmar, enfática e grandiosa nos seus rasgados movimentos de câmara para poder estar à altura da cidade e da própria memória do cinema que evoca, o que transforma o filme, em especial quando filma a cidade de Roma, numa espécie de filme turístico de luxo também sobre a memória do cinema que convoca. A tentação era grande, os meios não terão faltado e, na falta de novidade na reinvenção da cidade, os fins podem justificar a aproximação feita.        
                    a grande beleza 12 size 620 A Grande Beleza [Crítica]
   Sem adiantar grande coisa em termos de cinema, este filme deixa-nos, mesmo assim, a impressão de que Paolo Sorrentino é um cineasta com o qual se pode contar pelo perfeito domínio do espaço, pela capacidade de construção de personagens e ambientes, pela justeza do olhar, entre a crítica implícita e a compreensão declarada.
    Descontado o excesso de ambição visual, grandiloquente, em certa medida despropositado e em qualquer caso estéril, "A Grande Beleza" é um bom filme em que o cineasta reafirma que é alguém com quem se deve contar no panorama do actual cinema italiano e europeu. Tanto mais importante quanto mostra uma atracção pela memória, pelo melhor do passado do cinema italiano, para sobre essa memória construir uma obra inequivocamente pessoal, o que deve ser levado em seu favor. E se, para Jep Gambardella, como diz no fim escrever um novo livro é "apenas um truque", ele sem dúvida o escreverá e terá muitos leitores, com a ressalva de que escrever um livro ou fazer um filme não é, salvo em casos marginais, apenas isso, embora por vezes efectivamente se resuma apenas a isso: mais "um truque". Mas isto digo eu, que não sou homem de "truques".    

domingo, 9 de março de 2014

Como artista

    No âmbito de "Harvard na Gulbenkian - diálogos sobre o cinema português e o cinema do mundo" (ver Cinema capital", 24 de Novembro de 2013), foi exibido na passada sexta-feira no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian o último e muito aguardado filme de Albert Serra "Història de la meva mort" (2013). Conhecendo os filmes anteriores do catalão que estrearam em Portugal, "Honra de Cavalaria"/"Honor de cavalleria" (2006) e "O Canto dos Pássaros"/"El cant dels ocells" (2008), e gostando muito deles, fiquei decididamente entusiasmado com esta sua mais recente obra.
                     Història de la meva mort
    Trabalhando como artista, num cruzamento perfeitamente insólito ele agarra nas figuras míticas do Casanova e do Drácula por forma a trabalhá-las desse mesmo lado mítico mas integrando-as no seu universo pessoal, que aqui assume um bestiário próprio. Com a primeira parte, situada na Suíça, com Casanova, vai ser na segunda parte, passada nos Cárpatos, que as duas personagens vão coabitar num mesmo espaço, cada uma delas possuídora do seu espírto anti-religioso, anti-clerical, anti-critianismo e com a sua própria visão superior do mundo, aristocrática e impiedosa, o que estava já muito presente nos excelentes diálogos filosóficos de Casanova na Suíça.  
    Contudo, o retrato de Casanova, visual e auditivo, traçado na primeira parte apresenta traços caricaturais muito curiosos e saborosos, fazendo-o acompanhar pelo seu servo tipo Sancho Pança, de nome Pompeu, e a dupla mantém-se na segunda parte em que, primeiro a partir da árvore que sangra, mas sobretudo a partir da carcaça de porco que acaba por se metamorfosear em carcaça humana o filme assume uma qualidade vertiginosa, visual e auditiva - e o trabalho do cineasta com os ruídos e sobretudo com a música mostra-se excepcional. Alguma coisa da imagem e do bestiário dessa segunda parte fez-me lembrar Goya, enquanto a recorrente presença de mulheres belas e inquietas, em vez de pacificar introduz elementos de perturbação num filme sobre o prazer concreto e o desejo concreto como contrapontos polémicos do racionalismo do Século XVIII - e nosso.
                      Història de la meva mort   
   Mas o que sobretudo chocará o mais desprevenido são as constantes liberdades que, libertinamente são tomadas com as personagens, numa desumanização que na segunda parte se torna muito claro surge em possível réplica da desumanização do mundo actual. Nada nos satisfaz, nada nos serve neste mundo oco e vão em que vivemos, pelo que a apresentação de um Casanova desinibido, de um Dracula devorador, de uma moral aristocrática não têm nada de especialmente estranho, contrariamente ao que se possa pensar, e haverá quem ainda pense, do que resulta precisamente o impacto do filme.
      Agora Albert Serra trabalha a imagem como um artista do cinema, com permanente alusão ao fora de campo, com um requinte visual, nomeadamente de iluminação, precioso, que nos deixa abismados não apenas perante as imagens mas perante as personagens que elas incluem. E se em certos momentos a luz se torna escassa e a imagem sombria, noutros a luz, a claridade não falta, mas falta alguém. Colocando-nos num presente situado no passado, o cineasta olha sobretudo para as suas personagens com um olhar inquieto e inquietante, nessa medida profundamente político e mesmo desafiador de piedosas crenças que possam ainda subsistir.
                      Història de la meva mort
      Ao reinventar Casanova e Drácula em "Història de la meva mort", um filme que prolonga por caminhos inesperados e muito bons, em nada relacionados com o realismo, antes plenos de artifício poético e fantasia, o que conheço da sua obra anterior de uma forma inteligente e consistente, o cineasta catalão, também autor dos diálogos além de realizador, reinventa-se e reinventa o cinema em termos narrativos, de criação de personagens e discursiva, e em termos de construção fílmica.
      Nos seus curadores, Haden Guest e Joaquim Sapinho, saúdo aqui os responsáveis por este "Harvard na Gulbenkian" pelos resultados inequivocamente positivos desta iniciativa, fazendo votos para que ela regresse em breve numa inteiramnte justificada segunda parte.

A viagem

    O americano Alexander Payne tem-me surgido até agora como um "cineasta simpático", o que nos meus termos não significa necessariamente um elogio. De "As Confissões de Schmidt"/"About Schmidt" (2002), com Jack Nicholson, a "Os Descendentes"/"The Descendants" (2011), com George Clooney, passando por "Sideways" (2004), com Paul Giamatti, foi essa a opinião que formei sobre ele. O que significa que o tenho na conta de um cineasta sério, com boas intenções, mas que ainda não tinha dado o passo decisivo que permitisse falar dele como um grande cineasta. Talvez que o seu mais recente filme, "Nebraska" (2013), signifique justamente esse passo que lhe faltava dar.
                     Nebraska film still   
    Filmado a preto e branco, o filme acompanha o percurso de um "old timer", Woody Grant/Bruce Dern do Montana até ao Nebraska, acompanhado pelo seu filho mais novo, David/Will Forte, para recolher o prémio de um concurso que lhe foi anunciado, na sua interpretação, o teria beneficiado. Ora esta viagem, uma longa viagem, contrariamente ao que se poderia esperar é menos uma viagem interior em si mesma do que uma viagem exterior pelo que resta do seu passado, das suas memórias, das suas relações de juventude.
   Sem ceder ao sentimentalismo, o cineasta consegue dar-nos um retrato justo de um encontro e desencontro de gerações, centrado num homem velho que, teimoso, continuando a dar crédito ao que lhe dizem ou pensa que lhe dizem, contra todas as evidências resolve perseguir o seu sonho final até ao fim. De caminho encontra quem poderia querer encontrar e e ver de novo, deixando ao seu filho a resolução dos problemas e dos conflitos, a que a sua própria mulher, Kate/June Squibb, nem sempre é alheia. E é justamente esse reverberar do passado, de toda uma vida, no presente da viagem de uma personagem idosa que, à semelhança de "Morangos Silvestres"/"Smulltronstället", de Ingmar Bergman (1957), faz o encanto do filme
                     NEBRASKA
   Sob a aparência de um desatino patético, grotesco, com a ajuda do filho e a cooperação, mesmo se em conflito, de outros familiares e antigos amigos e conhecidos, Woody vê transformada a sua viagem num sonho que acaba por se concretizar - um sonho que ele confessa ao filho se destinar a permitir-lhe deixar alguma coisa, alguns bens aos filhos. Mas uma vez concretizado o sonho, a carrinha em que regressa com o filho pode fazer com que aquela não tenha sido a sua última viagem
    Tocante na sua simplicidade e economia de meios, "Nebraska" é um filme muito interessante, bem construído e sentido sobre um homem que sobre o seu próprio passado na Guerra da Coreia não falava. E por ele percebemos bem que aqueles que não falam sobre si próprios, que repetem que "continua tudo bem", são talvez aqueles que, apesar de velhos e confusos mais teriam a dizer sobre si próprios e sobre os outros, mais teriam a contar sobre a sua experiência da vida.
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      Com a maldade presente, mesmo sem grande espalhafato, quase em surdina, em contraste com um filho demasiado bom, e momentos especialmente conseguidos e sugestivos, como a visita primeiro ao cemitério, depois à casa em que Woody crescera, que tinha sido construída pelo seu pai, no seu intransigente preto e branco e escasso mas judicioso recurso à música "Nebraska" traz definitivamente Alexander Payne para o primeiro plano do actual cinema americano e confirma que, olhada retrospectivamente, a "palavra-chave" para sua obra talvez seja mesmo "deriva".    

quarta-feira, 5 de março de 2014

Não é fácil

  A primeira longa-metragem de ficção do americano Henry-Alex Rubin, "Desligados"/"Disconnect", 2012, é um filme muito curioso que explora bem um terreno que, depois de Robert Altman, Paul Thomas Anderson trabalhou de forma pioneira em "Magnólia"/"Magnolia", 1999 (ver "Mosaico vivo", 30 de Março de 2012). Com argumento de Andrew Stern, esse é um filme profundamente actual que mostra como, com todas as tecnologias actuais, vivemos isolados uns dos outros, em desconhecimento uns dos outros.
                      
       Ocupando-se de questões de casais e de filhos mas também de gente solitária, "Desligados" mostra que não é fácil nos nossos dias ser adulto ou adolescente. Muito justamente centrado na comunicação pessoal via internet, o filme mostra como ela trabalha também a nossa solidão, o nosso isolamento e desconhecimento mútuo, mesmo a nossa indiferença mútua. Muito apropriadamente, no final Kyle/Max Thieriot diz a Nina Dunham/Andrea Riseborough, a jornalista que o entrevistou e por causa disso teve problemas, que não quer ser "salvo".
      De facto, neste permanente desconhecimento e alheamento mútuos, para que às tantas são preciso "bodes expiatórios", há limites para tudo, até para o reconhecimento e a aceitação de eventuais "boas intenções". Muito ocupados uns, muito concentrados em si próprios outros, neste filme todos, mais velhos ou mais novos, acabam por girar sobre o seu próprio vazio existencial. Que os Boyd acabem por se reunir em torno de uma morte adiada ou os Hull se detenham à beira do abismo é importante mas não decisivo. Agora que alguém afirme que não aceita "jogar o jogo" é profundamente revelador.
                     Marc Jacobs Disconnect
     Henry-Alex Rubin mostra atenção e sensibilidade perante o presente mas sobretudo inteligência na construção do seu puzzle narrativo e humano, em que cada um pode encontrar o que quiser ou procurar. A sua descomprometida compreensão do presente é muito estimulante, chamando-nos a atenção a todos para que viver não é fácil e não existem, apesar das melhores intenções, causas ganhas à partida. E a montagem do final está muito bem vista.
        Limpo e desenvolto em termos cinematográficos, "Desligados" é um filme muito bom que nos desperta a todos. É, além disso, dedicado à memória de Andrew Sarris (1928-2012), homenagem justa a um grande estudioso americano do cinema: mesmo que o cinema não se ensine, tal como a vida talvez se aprenda. Tomem conta uns dos outros.