“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 30 de junho de 2012

As Luzes

       O documentário em duas partes "Le siècle des Lumières", realizado por Sheila Hayman (2012), produzido pela ZDF e difundido pelo canal cultural franco-alemão Arte, é um trabalho fílmico notável pelo seu rigor histórico e científico. Contando em pouco mais de 100 minutos uma história que foi fundamental para a modernização da Europa e da América, e na qual Portugal esteve envolvido, uma história que não foi simples nem fácil mas que conformou o mundo futuro e cujos frutos são ainda hoje fundamentais para a Europa, a América e o mundo, tem a participação de prestigiados professores universitários e mostra peças raras, em certos casos guardadas a sete chaves na maior segurança. 
                                         Le siècle des Lumières - La diffusion du savoir
        Construído permanentemente com o recurso a imagens de época, de monumentos, edifícios, espaços, quadros, documentos, que alternam com imagens da actualidade, permite fazer uma ideia muito precisa sobre aquilo que se decidiu em termos científicos mas também políticos entre a segunda metade do século XVII e o século XVIII e que permanece como as raízes próximas das sociedades modernas de hoje. Com o rigor e a ousadia que se impõem, de modo muito claro e sem qualquer tipo de meias-tintas, diz e mostra aquilo que foi descoberto e criado então de novo, na ciência, na literatura, na filosofia e na política, contra uma tradição secular. Fala das figuras, das descobertas, dos acontecimentos, dos livros, das ideias então novas e das dificuldades que tiveram para se afirmar e iniciar o seu curso. Newton, Voltaire, Diderot ou o Marquês de Pombal na primeira parte, "La diffusion du savoir", Frederico II da Prússia, Thomas Jefferson e Condorcet na segunda, "La transformation de la société", são postos a falar na actualidade através do que escreveram, do que fizeram, do que hoje se sabe sobre eles, sem qualquer cumplicidade para com as figuras que se lhes opuseram e as ideias que defendiam, nem qualquer condescendência para com os eventuais limites e excessos de cada um deles.  
         Claro que muitas coisas aconteceram em todo o mundo nestes mais de dois séculos, mas é muito importante que esta história seja mostrada agora para que todos, em todo o lado a possam conhecer desde cedo, em especial num momento em que o regresso do integrismo religioso e da superstição ameaça os fundamentos que as Luzes lançaram.  
                                        Le siècle des Lumières - La transformation de la société
        O canal cultural Arte (www.arte.tv/de e www.arte.tv/fr) tem 20 anos e é um canal da maior importância cultural na Europa e no mundo, que permanece fiel a si próprio na programação, exigente e diversificada, inclusive de filmes para cinema, mas também na produção de filmes de grande qualidade, em especial na área do documentário, e no apoio à produção cinematográfica europeia.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Uma cidade americana


          Foi considerada a melhor série televisiva de sempre por razões que me surgem como inteiramente justificadas. Intitula-se “The Wire” (em português, “A Escuta”) e está neste momento disponível em DVD nas suas 5 épocas.                                               
            Vários motivos notabilizam esta série, policial e dramática. Um dos mais importantes é a sua construção visual, em que a criação do espaço explora todas as dimensões visuais do plano, diversos pontos de vista, escalas diferentes com uso de profundidade de campo, uma montagem rápida que respeita as pausas da acção sem deixar que se criem tempos mortos. Ora isto não joga no vazio, já que um dos outros grandes motivos (o maior motivo) de interesse desta série é a sua narrativa centrar-se nos habitantes, bairros, instituições da cidade de Baltimore, ficcionalmente surpreendidos e acompanhados de forma realista nos dramas da sua vida comum, o que confere a “The Wire” um carácter realista que não surge como forçado nem melodramático, antes como eminentemente humano e contemporâneo. Nas interpretações reside outro dos seus motivos especiais de interesse, pois estão a cargo de nomes por enquanto de segundo plano, todas eles com desempenhos notáveis de naturalidade exemplar nas figuras permanentes e nas figuras transitórias de toda a série, todas elas de grande realismo e algumas interpretadas pela própria população local.
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            Nas suas 5 épocas, entre 2002 e 2008, “The Wire” é uma série que merece ser vista pela sua qualidade invulgar, acima da média numa área em que a televisão norte-americana é em geral muito exigente. Uma qualidade tal que permite que se diga, sem a menor hesitação, que está muito acima de muitos filmes feitos todos os anos para cinema, em termos fílmicos e em termos dramáticos e humanos.
            Criado e escrito por David Simon, com a participação de escritores tão importantes como George Pelecanos e Dennis Lehane, e produzido pela HBO, “The Wire” não se detém perante temas, zonas da cidade, personagens, espaços, edifícios, situações, nem se limita a seguir no rasto do já feito, já conhecido, mesmo quando de muito boa qualidade. Não, esta série é outra coisa, no seu realismo que acolhe e completa muito bem em termos fílmicos o que foi escrito por um jornalista com larga experiência no terreno. Um realismo como este não tem precedentes em séries televisivas dramáticas, um tão perfeito e completo trabalho fílmico feito para a televisão também não. Vale, por isso, a pena ver e aprender sobre o mundo - o mundo tal como ele é, feito por gente como todos e cada um de nós - com “The Wire”, sobre o nosso mundo de hoje na bela cidade de Baltimore, Maryland, USA.                         
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           "The Wire" foi considerada a melhor série televisiva de sempre, e não serei eu a dizer o contrário.

Nas trevas interiores


           O húngaro Béla Tarr é um cineasta único, dos mais importantes do cinema contemporâneo, pelo que a estreia do seu último filme “O Cavalo de Turim”/”A Torinói ló” (2011), co-Agnés Hranitzky, é um verdadeiro acontecimento. Senhor de um estilo radical único, ele tem criado filmes prodigiosos de exigência e rigor estético, que levam a um ponto extremo a proposta de trabalhar com base em planos longos, o que torna cada um dos seus filmes uma aposta extremamente arriscada mas até hoje sempre ganha. Deste “Sátántangó” (1994) que assim tem sido, sem retrocessos nem progressos visíveis (esse continua a ser o seu melhor filme) mas com uma insistência que, aliada á variação dos assuntos, faz com que ele avance sempre e consigo nos continue a arrastar.
           Muita gente não gostará de se ver metida num filme com escassa acção, com pouquíssimas personagens, com raros diálogos e uma voz-off narrativa que em vez de esclarecer às vezes mais parece complicar. Apesar disso, e com isso, “O Cavalo de Turim” é um filme luminoso na obscuridade aparente do seu preto e branco, que sucede a “O Homem de Londres”/”A Londoni férfi” (2007), baseado no romance de Georges Simenon e que é o mais inesperado dos filmes a partir da obra do grande escritor belga – que já foi considerado o mais importante escritor existencialista. Não quero usar lugares comuns, mas devo dizer que o uso do plano-sequência nestes dois filmes leva o cineasta e o cinema para um plano de metafísica da forma, que faz com que se coloque a questão, mais do que daquilo que o olhar pode suportar em plano longo, daquilo que só no plano longo pode ser bem expresso, mostrado e dito no cinema.
                                               
            Não sou, nem penso que se deva ser, um defensor acérrimo do plano-sequência no cinema, mas conhecendo como conheço outros usos que dele têm sido feitos no cinema contemporâneo não terei dúvidas em afirmar que o caso de Béla Tarr é único e exemplar na sua intransigência criativa, na perseguição de alguma coisa que em cada filme só dessa forma pode ser captado, formulado e transmitido. Neste caso o trajecto do filme é verdadeiramente exemplar, pois partindo de um momento fundamental (e final) da vida de Friedrich Nietzsche, narrado em voz-off sobre fundo negro sem ser mostrado, em que o filósofo tenta proteger com o seu corpo um cavalo que está a ser chicoteado, ele vai na outra direcção, a do cavalo e do seu cocheiro, para os seguir nos caminhos de veredas e trevas que vão percorrer em seis dias.
            Ora ao fazê-lo poderá admitir-se que o cineasta está a falar do pensamento do próprio Nietzsche, que a partir daí se deteve pois em seguida ele perdeu o uso da razão, para dele fazer uma interpretação fria e desapiedada que vai levar as suas personagens, o filme e os espectadores a um impasse: o impasse que veio a ser o século XX. Nesse sentido, há o monólogo sobre vencedores e vencidos no final do segundo dia, a visita inesperada e indesejada dos ciganos no final do terceiro dia, o poço tapado no início do quarto, que vai concluir-se sobre a partida e o regresso de pai, filha e cavalo no mesmo plano fixo, os dois últimos dias de andar às cegas no escuro, enquanto como nos dias anteriores pai e filha se afastam ou se aproximam da câmara.
                    
              Só que isto dito não se disse nada, pois o filme se estrutura todo ele sobre os corpos, os movimentos das suas personagens centrais (e quase únicas), pai e filha, de tal modo que os podemos entender como corpos e seres primordiais que se debatem no seu isolamento e na sua solidão absolutamente sem saída, mas que ao fazê-lo no quadro de planos longos, normalmente com profundidade de campo sobre os interiores ou sobre o exterior desértico, nos transmitem a sensação de estarmos a ver corpos humanos em movimento, deitados, sentados, de pé, inclinados pela primeira vez, como que movidos por um motivo que lhes escapa e nos escapa a nós também.
              Talvez seja por isso mesmo, pela exposição de movimentos amplos ou ínfimos do corpo humano no tempo, que “O Cavalo de Turim” na senda dos filmes anteriores do cineasta não aponta para um realismo imediato, a que tem sido tradicionalmente associado o plano-sequência com profundidade de campo, mas parece antes enveredar por uma espécie de abstracção dos corpos, dos seres e dos movimentos que como que se desenrolam no vazio, no nada das suas trevas interiores - a que correspondem as trevas exteriores -, sem motivações próximas ou distantes que não sejam aquelas que, secretas, encontram em si próprios, no seu ser, existir no nada. E nem sequer se trata de um abjeccionismo, como poderia acontecer com outro cineasta, já que tudo decorre dentro de limites muito apertados em que apenas é dado às personagens existirem, sem porquê nem para quê.
                      Miniatura
           Talvez por isso, há quem refira a propósito de Béla Tarr um expressionismo do plano-sequência, em que ganham forma seres quase inexistentes, suspensos entre o ser e o não- ser, na fronteira do ser e do absoluto não-ser, auto-movidos de um modo simples, conturbado e sem razão aparente, de tal modo que os torna comoventes no seu ser dobrados sobre si próprios que é um ser dobrado sobre o seu tudo, o seu todo, e o nada dos outros, nos limites de uma indizível solidão existencial que os torna como que os últimos e os únicos habitantes daquele universo (1). E de facto tudo se transforma e transtorna no quadro de planos longos com profundidade de campo, ocasionalmente mitigada, em que os seres assumem um estatuto de ser consigo próprios e um com o outro em pura sobrevivência aos pequenos e maiores acontecimentos do quotidiano, assim tornado poético no seu vazio sem remissão.
            A poética do plano-sequência que aqui se impõe como pertinente é assim a do vazio preenchido por sombras, sombras de sombras sombrias, para as quais a questão que se coloca é a de recomeçar no dia seguinte, como acontece no final do quinto dia perante a impossibilidade de acender uma simples luz que ilumine a noite. Mas não são estes seres, sombrios e únicos na sua solidão, uma réplica perfeita de cada um de nós? Não é o horizonte deles o nosso próprio horizonte existencial? Só que nós, invadidos e rodeados pelos estímulos de toda a ordem que nos vêm do exterior, e dos quais fazemos por participar, não damos ou não queremos dar por isso, no final do século XIX como no início do século XXI, impotentes para criar ou meramente condicionar o que quer que seja em nossa volta. É que a luz que as personagens não conseguem acender no fim do quinto dia é precisamente a “pequenina luz bruxuleante” de que falava Jorge de Sena, um poeta conhecedor do ofício de trevas, uma luz que faltou a Nietzsche naquele dia 3 de Janeiro de 1889 em Turim e que a nós nos falta todas as noites, sem embargo do que devemos tentar acendê-la no dia seguinte, sob pena de continuarmos máscaras baças que dia a dia traficam a passagem ao dia seguinte ("Depuz a mascara, e tornei a pol-a./Assim é melhor./Assim sou a mascara.//E volto à normalidade como a um terminus de linha." - Álvaro de Campos)
                      Despedida de Béla Tarr
            Ora é essa redução ao essencial, que rejeitamos e não queremos reconhecer, que “O Cavalo de Turim” à semelhança dos outros filmes do cineasta nos aponta e sugere, sem qualquer sombra de compadecimento mas também sem qualquer réstea de comprazimento. A seco tudo é mais claro, mais puro, mais reduzido ao osso e sempre sem saída alguma, no que continua a residir o génio único de Béla Tarr, um cineasta que é preciso conhecer e amar, até porque já serviu de inspiração para outros, como é o caso de Gus Van Sant, que admitiu ser influenciado por ele pelo menos desde “Gerry” (2002) – o que só vem demonstrar que também os grandes cineastas sabem escolher as suas influências. Aliás, o uso que este cineasta húngaro faz do plano-sequência pode ser considerado como inspirado nos filmes do seu compatriota Miklos Jancsó, grande cineasta do plano-sequência ele também, embora os seus filmes fossem muito diferentes dos de Tarr. 
             Béla Tarr diz que este será o seu último filme. Espero bem que seja uma despedida como a de Ingmar Bergman foi em 1982, e que para nosso encantamento, inquietação e muito proveito ele regresse, regresse sempre ao cinema, de que é uma figura maior.

Nota
(1) Sobre a separação entre a "vida" e o "todo" na modernidade, ver João Barrento, "O Género Intranquilo" - anatomia do ensaio e do fragmento", Assírio & Alvim, Lisboa, 2010, pág. 25, com citação de Robert Musil.

domingo, 17 de junho de 2012

Godard, o passado e o presente

        Um novo filme de Jean-Luc Godard é sempre um acontecimnto muito aguardado, o que voltou a acontecer com "Filme Socialismo"/"Film Socialisme" (2010), a sua primeira longa-metragem de ficção desde "A Nossa Música"/"Notre musique" (2004). Na sua construção, este é um filme que faz lembrar "História(s) do Cinema"/"Histoire(s) du Cinéma" (1988-1998), o filme em quatro partes em que fez a sua história do cinema e, para a fazer, fez a história do século XX, o século do cinema. A diferença é que agora faz a história do século XX e, para isso, recorre de novo à história do cinema. Em ambos os casos, contudo, o que está em causa, mais do que um filme de ficção, de que "Filme Socialismo" tem excertos, é o conceito de filme-ensaio.
                      
         De facto, logo na sua construção "narrativa" verifica-se que o cineasta recorre a textos de um grande número de autores muito variados, com os quais procede em modo de colagem que lhe permita pensar o passado, nomeadamente o século XX, mas também o presente da Europa (e do mundo). Ora a simples ideia de pensar no cinema vem colocar este filme fora da moda actual, que privilegia um cinema de evasão e de alta tecnologia, que faça esquecer os problemas do dia a dia com o recurso aos mais recentes avanços tecnológicos. Daqui Godard apenas guarda o suporte digital, de que aliás retira o melhor partido na imagem (e também no som) durante a primeira parte, "Des choses comme ça", passada a bordo de um navio de passageiros e sob o signo de "La porte étroite", de André Gide, quer do ponto de vista da iluminação ofuscante, com desfocagens e contrastes, em interiores, quer do ponto de vista do tratamento da geometria e das cores em exteriores, no convés, guardando planos separados para o mar revolto e para o horizonte marítimo com o sol ao fundo.
        O filme começa com uma reflexão sobre o dinheiro e acaba com uma reflexão sobre a justiça, no culminar da sua terceira parte, "Humanité", em que se desloca para um passado mais antigo, em busca das raízes de uma civilização. Na segunda parte, "Quo vadis Europa", sob o signo de "Illusions perdues", de Balzac, tal como a primeira muito concentrada, desta feita numa estação de serviço cujos donos se vão candidatar a uma eleição, motivo pelo qual são visitados por uma equipa de televisão, somos confrontados com o presente, a actualidade em França, e brindados com uma construção visual e sonora que de novo faz lembrar o melhor de Godard. Isto significa que neste filme o cineasta prossegue, em estilo de filme-ensaio, uma rigorosa e intransigente criação audiovisual, no sentido de visual e auditiva, um rumo pelo qual enveredou sobretudo desde os anos 80 do século passado. Mas isto do ponto de vista formal, que nele é sempre muto importante, pois do ponto de vista das ideias, do pensamento, o que aqui impressiona são as aproximações fulgurantes de palavras e de imagens, por vezes mais do que um motivo na mesma imagem, como a jornalista contra uma parede sobre a qual se projectam as sombras das pás em movimento de um moinho de vento.
                         Film socialisme  
        Se no tema que o título, "Filme Socialismo", implica está subjacente a revisitação dessa ideia no percurso que fez ao longo do século XX, esse é sobretudo o objecto da primeira parte, com as suas referências à Guerra Civil de Espanha, à II Guerra Mundial e a Israel.  Mas mesmo aí surge como indispensável e fundamental a referência aos judeus, nomeadamente os que fundaram Hollywood, e portanto ao cinema, que segundo se diz, e bem, no filme pôs toda a gente a olhar para o mesmo lado na sala de projecção. Mas sintomaticamente o que vai estar recorrentemente em causa vai ser o destino do ouro, do Banco de Espanha ou do Banco da Palestina, o que remete para as fissuras dos grandes sonhos do século do cinema - na primeira parte o velho senhor chama-se Goldberg e no início da terceira parte será questão do ouro do Sudão.
         A terceira parte do filme, em busca das origens de uma civilização, sucede-se à cena da noite dos tempos, com que encerra a segunda, e vai deter-se primeiro nos vestígios egípcios, depois nas origens da guerra civil, nascida do casamento da democracia com a tragédia, e também nas do cinema, o que vai ser pretexto para revisitar na actualidade a famosa escadaria de Odessa, celebrizada na sequência que aí tem lugar de "O Couraçado Potemkine"/"Bronenosetz Potiomkine", de Sergei Eisenstein (1925), de que mostra excertos, depois de outros de filmes de Charles Chaplin, John Ford e Vsevolod Pudovkine, o que vem dar a essa parte final um carácter vertiginoso do ponto de vista visual. Aliás, essas citações cinematográficas, que não são as únicas, vêm juntar-se a outras, literárias, pictóricas e musicais, o que permite melhor compreender o carácter citacional de todo o filme. Mas o que marca verdadeiramente "Filme Socialismo" é tentar fazer a história de uma ideia e colocá-la como questão para a actualidade, para o presente.                     
                        
         Mas para o fazer o cineasta recorre a uma construção audiovisual brilhante, com grande recurso ao fora de campo visual e sonoro, de modo que permite dizer que aqui ele trata as imagens como imagens e os ruídos, as palavras e a música como sons, o que origina, com largo recurso à não sincronização, uma percuciente composição audiovisual. Desse modo um filme brilhante em termos fílmicos é também um filme político que vai tão longe quanto um grande cineasta de 80 anos entendeu dever ir - é preciso mostrar, não falar do invisível mas mostrá-lo, diz-se na segunda parte às repórteres da televisão, e esse é um programa que o filme defende para si próprio, no seu jogo de luz e sombra sobre a história.
          Claro que, mais uma vez, Jean-Luc Godard faz o seu filme, não aquele que seria esperado que fizesse, em que fala do que foi importante no século XX e no cinema, e fá-lo com um enorme brio audiovisual e com uma enorme sabedoria das ideias e da história, no que faz inteiramente justiça quer ao cinema quer à história, encarados ambos como desafios para o presente. E se nas raízes distantes de uma civilização vai até ao Egipto e à Grécia Antiga, nas suas origens próximas vai até à Resistência francesa durante a Ocupação, no decurso da II Guerra Mundial, o que deixa perfeitamente claro o seu pensamento sobre esta questão. O mito, esse deixa-o do lado dos ditadores, já que essa é, de facto, outra história, que sendo-o não deixa de fazer parte da mesma história e deve por isso ser questionada também, em simultâneo com ela.
                         O cineasta Jean-Luc Godard durante debate sobre seu filme "Film Socialisme", em Paris (França)
        Tudo acaba por ser muito rápido, como acontece nos filmes. "Filme Socialismo" serve, assim, para não esquecermos e para pensar - e pensar, mesmo no cinema, nunca fez mal a ninguém, e em especial com Godard torna-se estimulante, tanto mais quanto ele não pretende aqui dar lições de história mas colocar as interrogações da história, que procura iluminar, ciente, embora, de que nela permanecem largas manchas de sombra.

Fassbinder e o futuro


“O Mundo num Arame”/”Welt Am Draht” (1973) é um filme em 16mm, em duas partes, de Rainer Werner Fassbinder, que permite completer o quadro sobre o génio do cineasta. Baseado no romance “Simulacron 3”, do norte-americano Daniel F. Galouye, é um filme sobre o mundo dos computadores, da programação e da antecipação do futuro construído como um policial negro americano dos anos 40, folhetinesco como um serial e demonstrativo da produção torrencial do seu realizador.
          Na sua construção em espelho, objecto que surge desde o início no filme como objecto revelador, “O Mundo num Arame” trata de uma equipa científica que trabalha com um super-computador, cujo chefe, Vollmer, morre e é substituído, tentando o seu substituto, Stiller, descobrir o que se trama por trás da morte do substituído, do desaparecimento de uma outra personagem, Lause, e de outras circuntâncias bizarras, para o que conta com o esporádico apoio da filha do seu antecessor, Eva. Tudo se complica com personagens que são projecções, com o apoio de um grupo económico ao prosseguimento do projecto, finalmente com a sugestão de que o mundo real é uma simples projecção resultante da programação por aqueles que julgava programar.
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           Reconhece-se aqui o que vieram a ser filmes futuros só que com um outro tratamento narrativo e fílmico, muito mais audacioso, pois Fassbinder foi um imenso cineasta que aqui como noutros filmes é perfeitamente vertiginoso na construção visual, nos cenários, na profundidade de campo com contraste de escalas desde o plano próximo ao fundo do plano, nos zooms que substituem o travelling e vão direitos ao rosto das personagens, na concepção do plano e no ritmo da montagem. Fred Stiller/Klaus Löwitsch vê-se acossado por aqueles para quem trabalha, tem dores de cabeça súbitas que o deixam derreado e são atribuídas ao excesso de trabalho, vê prepararem a sua prisão e vê-se acusado de assassínio (há no filme uma outra personagem que se chama Lang). Tem uma secretária do tipo das secretárias do policial negro americano, vê-se encurralado sem saber quem no seu mundo é réplica ou contacto do mundo superior e percebe bem que ali a diferença entre o superior e o inferior é muito relativa.
            “O Mundo num Arame” é, assim, um filme de ficção científica de 1973, como “Alphaville” de Jean-Luc Godard tinha sido um filme de ficção-científica de 1965 – e a presença de Eddie Constantine assume a comparação no próprio filme. Mas subitamente, na segunda parte a cor torna-se viva, saturada, como num musical de Vincente Minnelli, num melodrama de Douglas Sirk, e assim somos remetidos para um universo de sonho em que outras referências cinematográficas maiores aparecem (“Fatalidade”/“Dishonored”, de Joseph von Sternberg, com uma jovem e sedutora Marlene Dietrich, 1931), o que vem trazer para o filme toda uma outra carga de sugestões provenientes do cinema clássico e moderno americano e mostra como, ao antecipar o futuro, o cineasta insiste nas referências ao passado.
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           Mas não são só os espelhos, são os ecrãs, as janelas, as paredes envidraçadas que funcionam como espelhos e todos recortam quadros dentro do quadro. Não são só a profundidade de campo e o zoom mas também os vertiginosos movimentos de câmara que dão ao filme uma dinâmica visual superior, que até corresponde à vertigem do protagonista adveniente das suas dores de cabeça e do universo intrigante que vai descobrindo, e é neste filme permanentemente controlada pelo cineasta, à semelhança do que acontece noutros filmes seus mais conhecidos. No final, a câmara sobe em travelling sobre Fred Stiller morto, num plano intercalado com o do espaço para que ele é recuperado vivo por Eva Vollmer/Mascha Rabben, uma sala de paredes nuas e com janelas, através das quais não é mostrado o exterior.                        
           Aliás, este é um filme que aponta para um Fassbinder menos conhecido, realizador de filmes populares sempre de uma qualidade superior e com a sua assinatura pessoal, um cineasta enorme e extremamente moderno na forma e nos temas, que aqui revela o seu imenso talento com um filme feito em 1973, um ano em que dirigiu mais três filmes, o mesmo ano de “Alice nas Cidades”/”Alice in der Städten”, de Wim Wenders, e de ”Willow Springs”, de Werner Schroeter. Na mesma época, iniciava-se na Nova Hollywood, recém criada a partir das cinzas da velha, um surto de filmes sobre a “teoria da conspiração”, no limite da paranóia, o que aliás veio a ter réplicas no cinema europeu.

        
Para nós, modernos, continua a haver um grande cineasta moderno a descobrir e/ou a redescobrir sempre, com o qual aprender que o futuro está no passado e que o passado antecipa o futuro, e para nos seus filmes conhecer o cinema moderno no seu melhor nível de criação cinematográfica pessoal.

Uma pérola da animação


         “Kali, o Pequeno Vampiro”, de Regina Pessoa (2012), é um curto desenho animado vertiginoso sobre um pequeno vampiro que gostaria de viver no mundo dos que o não são, soberbamente construído sobre um mundo de sombras e de luz, sobre o desejo de ascensão das trevas até à luz, a consequente luta com as trevas e a compreensão do lugar que se pode ocupar no imenso universo. Sendo a preto e branco, tem momentos de desenhos parcialmente a cores (o vermelho) perfeitamente siderantes e nele a fluidez do traço da autora gera um movimento constante e metamorfoses surpreendentes, em que o jogo da luz e das sombras, que lhe é essencial, é plenamente cinematográfico, dessa arte de luz e sombras de que a própria animação participa.
                              
             “Kali, o Pequeno Vampiro” vem encerrar uma trilogia da autora sobre a infância, em que foi antecedido por "A Noite" (1999) e "História Trágica com Final Feliz" (2005), e pode mesmo ser visto como o desejo da animação de ver reconhecido o lugar que sem dúvida lhe cabe no interior do próprio cinema. Na sua fabulosa composição, em que Regina Pessoa aperfeiçoa o seu traço pessoal, desdobra a inteligência narrativa e desenvolve o ritmo, é um contributo decisivo para que tal aconteça, com o que honra a animação e o próprio cinema, que homenageia no seu passado e no seu futuro.
              Na sua dimensão estética, audaciosa e muito conseguida, e na sua visão do submundo, do terreno e do cósmico, plenamente transmitida em termos visuais, este filme é mais uma pequena pérola da sua autora e da animação portuguesa, que por ele volta estar de parabéns.

domingo, 10 de junho de 2012

"Cosmopolis" e o céu de perugia

       Faz sentido que quem fez filmes baseados em William S. Burroughs e J. G. Ballard se tenha lançado no projecto de fazer um novo filme a partir de "Cosmopolis", de Don DeLillo, com Philip Roth e Cormac McCarthy um dos mais importantes romancistas americanos da actualidade - o mais moderno mesmo dos três. De facto, David Cronenberg não é um cineasta qualquer, motivo pelo qual as expectativas eram altas. Devo começar por dizer que essas expectativas não foram defraudadas, pois o cineasta faz do seu último filme, "Cosmopolis" (2012), uma obra pessoal e muito conseguida, que se integra no seu universo pessoal de maneira inteiramente coerente.
      A chave do romance estava em tentar dar um rosto ao capital que domina a América, uma identidade em que ele pudesse ser reconhecível nas suas obsessões, no seu poder e no seu medo, que pudesse ser também fascinante e sobre a qual fosse possível tentar exercer pressão e violência. Ora o filme de Cronenberg consegue captar e transpôr todos esses aspectos do protagonista, Eric Packer/Robert Pattinson, para o que segue à letra os diálogos do romance, mas consegue ao fazê-lo em filme mostrar mesmo o que o romance apenas descreve, superiormente embora. E é ao não torná-lo meramente repelente, ao mostrar o seu lado humano que tanto a escrita de DeLillo como o filme de Cronenberg tentam evitar o cliché (embora trabalhando sobre ele) para tentarem ir mais longe, até ao coração da realidade.  Uma realidade que, em termos pessoais, caracteriza o protagonista do lado do excesso, de um excesso sensorial e de riqueza, de risco e de gosto por esse excesso de risco sob uma aparência neutra, indiferente e fria.        
                                     
       Claro que se pode considerar que a realidade do capitalismo pós-industrial, como tem sido denominado, de há muito ultrapassou esta ficção moralista, que chega à conclusão de que o capital é impotente para proteger os que explora e para se proteger a si próprio, pois a fase em que estamos (e se calhar já estávamos em 2003, quando o romance foi escrito, e em 2000, ano em que ele decorre) é a de um capitalismo especulativo, sem rosto, sem identidade, sem escrúpulos ou qualquer vestígio de moral - o "espectro do capitalismo" que no filme surge num placard luminoso. Mesmo assim, a parábola do romance e do filme permanece intacta no seu interesse, quanto mais não seja a um nível simbólico, por mostrar um enclausuramento voluntário de quem detém todo o poder, que proteja daquilo e sobretudo daqueles que domina - e também dos sons, o que aliado à fixidez da câmara dá ao espaço do interior do veículo um ar de um outro mundo - enquanto atravessa a cidade no interior da sua limousine na demanda do corte de cabelo perfeito e, durante o percurso, vai tendo diversos encontros, no interior e no exterior da viatura (1).
       Talvez o filme de David Cronenberg esteja muito bem resumido nos genéricos de abertura e de fecho, de formas abstractas e o último de cores vivas, sintetizando desse modo que o poder, já pouco poderoso, perante o qual se está não passa de uma abstracção a que o filme tentou conferir traços concretos. Conseguiu-o? Penso que sim, sem estabelecer laços de cumplicidade com o protagonista mas devolvendo também o seu lado sedutor e friamente humano, que não se detém perante nada nem ninguém, destinado como está a devorar-se a si próprio deixando no caminho inúmeras vítimas gratuitas. Na sua visão fria e clínica do cinismo exacerbado do mundo contemporâneo, o que o filme coloca em imagens é um vazio preenchido por espectros, numa sociedade espectral insusceptível de ser comovida ou mesmo movida, muito menos removida, pois os seus vícios, entre os quais a violência, são indissociáveis da sua natureza predadora e perversa. Mas também não devemos ser ingénuos nem alimentar ilusões, pois haverá sempre quem gostasse de estar no lugar de Eric Packer, pronto a ascender ao seu lugar e à sua posição - e se não fosse ele, era outro, como se compreende facilmente e os sucessivos encontros que ele vai tendo ao longo do seu trajecto com homens e mulheres, para ele meramente instrumentais, confirmam.                             
                     
        Será mesmo por isso que me interessa muito mais o "céu de perugia" que surge como recordação num dos poemas do último livro de Nuno Júdice (2), um dos melhores poetas portugueses contemporâneos, na sua perseguição do poético, já que a poética fria de "Cosmopolis" mostra um alheamento em relação à vida comum que nos faz imediatamente pensar na poética dessa mesma vida comum, como a de Nuno Júdice é há quarenta anos, numa perseguição da perfeição e da beleza a partir da experiência, que já é muito diferente em quem tão fora deste mundo, como o protagonista de "Cosmopolis", está e, embora lhes possa ser sensível ainda, tudo avalia já em termos de riqueza e de dinheiro, de excesso sensorial e de requinte gratuito. E digo-o porque penso que a poética dos quadros, dos ecrãs, mesmo a do cinema, embora seja específica de cada um deles deve ser construída e descoberta a partir do que construímos e descobrimos do lado de cá deles, fora deles, antes ou depois deles na própria experiência, sob pena de se tal não acontecer sermos vampirizados por eles. Só isso nos permitirá descobrir se não passámos já para o lado de Eric Packer, e não estamos nós também a, por contágio, tudo avaliar nos termos dele, aliás muito bem explicitados nos diálogos, nomeadamente a propósito do tempo.
      Mesmo assim, há também os artistas que, no meio ou suporte que utilizam, criam directamente uma poética própria, como em grandes pintores, fotógrafos e cineastas aconteceu e continua a acontecer, nomeadamente em David Cronenberg, de quem "Cosmopolis" pode ser visto desse lado e como perfeitamente consistente, na sua poética própria, com "O Festim Nu"/"Naked Lunch" (1991) e com "Crash" (1996), embora a um nível cada vez mais frio e mais distante, como de facto o seu tema também permite e "Um Método Perigoso"/"A Dangerous Method" (2011) se limita a permitir compreender parcialmente, embora se justifique a si próprio e valha por si mesmo como filme superior sobre o que comanda o corpo ou o deixa sem controlo e sobre a história. Nem a revolta nem a violência podem dar conta de uma entidade abstracta, que em "Cosmopolis" só simbolicamente assume ainda uma forma concreta e individuada na arrojada visão poética do cineasta, derivada da do escritor. No seu ser concreto, Eric Packer dedica-se já apenas ao estilo com que investe e vive a beleza da experiência terminal da sua própria vida, o que faz inequivocamente parte da beleza e da poética do filme - e faz lembrar "Os Malditos"/"La Caduta degli dei", de Luchino Visconti (1969).
                      
          Percebe-se que, colocado perante a escolha entre "Mistérios de Lisboa" ou "Cosmopolis", Raoul Ruiz tenha escolhido o primeiro para aquele que veio a ser o seu derradeiro, mas superior filme. O que podia ser feito a partir do segundo foi muito bem feito por David Cronenberg, o que mais uma vez abona em favor do produtor, Paulo Branco. Graças a ele, "Cosmopolis" de David Cronenberg poderá, por sua vez, funcionar para alguém como o "céu de perugia", recordado por Nuno Júdice no seu poema, já que o seu autor é um dos maiores cineastas modernos do nosso tempo, com uma poética moderna que vai trabalhando de filme para filme de forma persistente ao longo de uma obra em que a desumanização do humano e da sociedade, a par da tecnicização, ocupa lugar de grande relevo, como neste filme exemplarmente volta a acontecer.
         Tem, de facto, um brio e um significado muito especial um filme como este, que não hesita em mostrar o eventual atractivo e até o lado humano de uma riqueza desmedida que vive permanentemente no fio da navalha, não sabendo nem querendo saber do que a rodeia senão naquilo que pessoalmente lhe possa tocar, indiferente a argumentos pessoais ou técnicos, em busca quiçá de um momento de absoluto em que se possa eventualmente consumir, consumar e desfazer. Para o transmitir, "Cosmopolis" de David Cronenberg atinge um nível cinematográfico notável, no prosseguimento de uma obra em que a violência da sociedade, nomeadamente da sociedade contemporânea, tem sido perseguida sem esmorecimento até ao aparente absurdo que humanamente a pode ainda justificar. Ele será mesmo o mais importante cineasta moderno a compreender e mostrar a sociedade contemporânea sem preconceitos ou falsos pudores, indo até ao fim da experiência humana da contemporaneidade.

Notas
(1) Sobre estas questões do capitalismo contemporâneo continua a ser exemplar o trabalho de investigação de Hermínio Martins, para que me permito chamar a atenção a partir do seu último trabalho que conheço: "Empresas, mercados. tecnologia - Uma perspectiva biográfica", in revista "nada", nº 16, Abril 2012, páginas 17-39, em que, com recurso a uma fina ironia, a que já nos habituou, mostra como é a esmagadora maioria que hoje em dia está a perder rosto e identidade. 
(2) Ver "O equívoco das ruas", in "Fórmulas de uma luz inexplicável", Dom Quixote, Lisboa, 2012, páginas 64-65. ("Um/equívoco/às vezes equivale a uma conclusão verdadeira." - Fernando Guimarães)

Bom tema, bom filme

          Depois de "Contágio"/"Contagion" (2011), um grande filme, Steven Soderbergh regressa aos pequenos filmes com "Uma Traição Fatal"/"Haywire", do mesmo ano. Pequeno filme é, obviamente, uma maneira de dizer, pois este é apenas mais um daqueles filmes em que o cineasta se permite dar livre curso à sua imaginação e à sua criatividade, sem outro compromisso que o de fazer livremente e bem feito algo que se sente e percebe lhe dá um gosto especial. "Confissões de uma Namorada de Serviço"/"The Girlfriend Experience" (2009), feito no mesmo sistema, deixara excelente impressão.   
                      
           "Uma Traição Fatal" começa por ser um filme sobre um bom tema, a traição, que é tratado no meio da espionagem americana de uma forma muito hábil e feliz, em termos cinematográficos, como filme de acção. Numa primeira parte construída em flash back, de grande inteligência e com grande dinamismo, o filme descreve, através da narrativa de Mallory Kane/Gina Carano, o percurso que a levou primeiro a Barcelona, depois a Dublin, onde fora traída por aquele que era suposto acompanhar nessa missão, Paul/Michael Fassbender, a mando, porém, do ex-marido e chefe dela, Kenneth/Ewan McGregor. Na sombra movem-se figuras de chefia da "empresa", Coblenz/Michael Douglas e Rodrigo/Antonio Banderas, de modo que Mallory não sabe em quem mais confiar a não ser no seu pai, John Kane/Bill Paxton, com o qual vai ter ao Novo México depois de ter sido perseguida e presa pela polícia. Em casa do pai Kenneth a procura com os seus homens e ela vai poder defender-se e exercer a sua vingança ante-final. Essa parte final abandona o flash back dela e vai socorrer-se de flashes de outras personagens, o que vai permitir a mudança de narrador sem, contudo, alterar o estilo do filme nem abrandar o seu ritmo ou a construção elíptica que ele tem desde o início.
                     Haywire       
          Liberta-se deste filme uma grande energia, que é contagiosa mas não faz nunca esquecer o que está em causa na narrativa. A um grande tema corresponde, assim, um grande filme de acção, com largo recurso às artes marciais (em que a actriz Gina Carano é mesmo especialista), cuja energia é tonificante e cujos meandros não ferem a inteligência do espectador, antes a estimulamNão há tempo para respirar, para pensar muito, para pôr grandes questões, já que tudo é veloz, fulgurante e explica-se por si mesmo. Deste modo, o que poderia ser mais uma banal história de espionagem torna-se num filme empolgante e comovedor, em que a protagonista acaba por encontrar os apoios necessários para chegar onde quer: proteger-se e vingar-se de quem a traiu.  
          A traição é sempre um bom tema dramático, especialmente num bom filme de acção como "Uma Traição Fatal" é, sem pretender ser outra coisa. O falso marido morre no quarta do hotel, em Dublin, literalmente entre as pernas de Mallory e o verdadeiro ex-marido é deixado por esta mulher de armas à força das marés, depois de um outro agente, livre de suspeitas, morrer ao lado dela. Tudo simples e directo, explicando-se por si mesmo em termos eminentemente visuais. A catarse é exercida e o final elíptico, muito claro, só escassamente é deixado em suspenso.
                     HAYWIRE
          Aqui está intacto o melhor do grande talento de um grande cineasta num "pequeno filme sem importância", experimental e fascinante, em que ele volta a assumir pessoalmente a responsabilidade pela direcção da fotografia e também pela montagem (sob pseudónimos). Sempre a abrir, pelo simples gosto do cinema.