“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Um belo trabalho

     Só agora estreou em Portugal o penúltimo filme de Ken Loach, "O Espírito de '45"/"The Spirit of '45" (2013), um documentário notável que era preciso alguém fizesse. Porque tinha essa obrigação, fê-lo ele e fica-lhe bem. 
                    
  O cineasta constrói o seu filme sobre imagens de época e comentários de sobreviventes e de outros mais recentes, com traços actuais muito vivos nos depoimentos agora recolhidos dos que viveram o imediato pós-guerra em Inglaterra. O propósito é simples, evidente mesmo, mas está muito bem trabalhado: mostrar o espírito que, no pós-guerra, levou à nacionalização de sectores estratégicos da indústria e dos serviços, e à criação do NHS/SNS em Inglaterra, confrontando-o com as privatizações a que procedeu o governo conservador de Margaret Thatcher nos anos 80.
   O grande mérito de Ken Loach é o de manter ao longo de todo o filme o ponto de vista operário e trabalhista, sem qualquer transigência, como lhe competia. Ceder a palavra ao lado contrário, conservador, seria adoptar uma lógica de reportagem televisiva, pelo que a sua recusa se compreende muito bem.
                     
    Num projecto com alguma coisa de militante, Ken Loach mostra desembaraço e inteligência na escolha das imagens a preto e branco (só o final é a cores) e dos depoimentos também a preto e branco, embora o seu "O Espírito de '45" omita o papel (se algum) do governo trabalhista Tony Blair/Gordon Brown que, passado em silêncio, fica remetido a um comprometedor interregno sobre estas questões, em benefício da confiança depositada no Miliband que se segue.
    Nestes termos, o seu filme é sobretudo um apelo lançado ao presente para o futuro, o que não deixa de ser curioso, muito pertinente mesmo numa época de crise do capitalismo global. Mas o que lhe sobra em romantismo e espírito combativo talvez lhe falte em termos realistas sobre a actualidade - muito eloquentes, as imagens documentais escolhidas são do imediato pós-guerra, não do presente, o que se percebe apenas porque ao operariado inicial em parte sucedeu a classe média, agora em crise.  
                      Spirit of '45 2
     A "O Espírito de '45" reconheço o mérito evidente de mostrar as condições de Inglaterra no pós-guerra, o que é muito importante, mas também o de esclarecer com meridiana clareza que, por muito boas que elas sejam, não há soluções sociais ou políticas "para sempre", pelo que cada geração tem que as discutir e decidir por si própria, para o seu próprio tempo e para o futuro próximo. Qualquer que seja a nossa posição, nada é eterno, tudo tem de ser renovadamente escolhido, decidido ao longo do tempo. Quanto ao NHS/SNS, se o capitalismo neo-liberal tivesse ética ele seria uma questão de ética do capitalismo. Ao cinema fica bem mostrá-lo intransigentemente, tomando posição clara sobre a necessidade de renovar "o espírito de 45" - avançou-se muito, mas quanto caminho falta ainda, hoje e sempre (sobre o cineasta ver "Boa colheita", de 29 de Agosto de 2014).    

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Bruscamente

    Um dos mais conceituados e melhores cineastas americanos da actualidade, Paul Thomas Anderson, volta a surpreender com "Vício Intrínseco"/"Inherent Vice" (2012), baseado no romance homónimo de Thomas Pynchon (edição portuguesa: Bertrand Editora, Lisboa, 2010), um dos maiores modernos da literatura americana. E com base em tão delicioso e delicado material literário só um grande filme, como este bruscamente surgido é, podia fazer sentido.
                      Phoenix alongside Katherine Waterson in the film (2014 Warner Bros)
    P. T. Anderson volta a mostrar todo o seu talento cinematogáfico ao chamar de novo a si, além da realização, também a produção e a autoria do argumento, o que, dadas as circunstâncias, se impunha e resulta admiravelmente na preservação de diálogos alucinantes, também alucinados, que dão conta da evolução de uma situação com traços de filme policial em que nem tudo - como em "À Beira do Abismo"/"The Big Sleep", de Howard Hawks (1946) baseado em Raymond Chandler acontecia - se torna imediatamente compreensível, sobretudo para quem não conhecer o romance original.
    Mas os diálogos equívocos, material concreto mesmo se tornado quase abstracto, implicam os actores, todos eles excelentes, com destaque para Joaquin Phoenix como Doc Sportello, Katherine Waterston como Shasta Fay Hepworth, Josh Brolin como Bigfoot, Joanna Newsom como Sortilège (cuja voz faz a narrativa off) e Benicio Del Toro como Sauncho Smilax - a interpretação do primeiro, moldada sobre Neil Young, é uma performance notável de brio nas nuances do rosto, do corpo e do gesto, o que todos os outros acompanham muito bem. E isto torna-se tanto mais importante quanto excertos inteiros do filme, sobretudo no início, são compostos por diálogos cerrados, com uma ou duas personagens no mesmo plano.
                      inherent_vice_1
    Dito isto, não está ainda dito o mais importante, que é o filme conseguir atingir plenamente o registo entre a comédia e o drama em que a primeira prevalece sem anular o segundo, antes com a sua exponenciação de uma forma simultaneamente risível e crítica, o que está presente tanto nos frequentes diálogos como nos escassos momentos de acção. Daqui resulta uma obra surpreendente que provoca o riso e anula as lágrimas pela permenente afirmação de um limite de razoável indefinição, no que capta plenamente o romance de Pynchon. E é excepcional a longa cena erótica entre Doc e Shasta, que desencadeara o enredo, próximo do final do filme.
    Como grande cineasta que é, Paul Thomas Anderson imprime um ritmo próprio a este "Vício Intrínseco" que não tem nada que ver com o frenesim do cinema americano maioritário, detendo-se no diálogo aparentemente anódino por onde faz passar toda a informação vital, mesmo se em prejuízo da imagem, e tratando com à-vontade os momentos de maior tensão, mantendo sempre a câmara à distância justa, mesmo quando ela é, como frequentemente sucede, muito próxima. 
                     Inherent Vice Katherine Waterston 
   Num muito conseguido filme de época sobre os muito animados anos 70 americanos - da guerra do Vietnam, da administração Nixon, da "revolução hippie", da contra-cultura e da "teoria da conspiração" -, a sua outra referência de época possível seria "O Imenso Adeus"/"The Long Goodbye", de Robert Altman (1973), baseado também ele em Raymond Chandler, mas Anderson vai muito mais longe em puro génio cinematográfico do que o seu antecessor, salvo ocasionalmente, alguma vez foi (sobre Robert Altman ver "Dois modernos americanos", de 15 de Dezembro de 2012). 
    Com uma tranquila obstinação criativa, Paul Thomas Anderson vai acrescentando a sua obra, filme a filme, com novas peças admiráveis, em que a justeza do tom - aqui ao nível de "Jogos de Prazer"/"Boogie Nights" (1997) mas mais dominada - e a pertinência da forma se aliam da melhor maneira, como neste excepcional "Vício Intrínseco" mais uma vez superlativamente sucede. E são esses elementos que, conjugando-se a partir de um excelente romance de um grande (e incógnito) escritor, tornam este filme, com notável fotografia de Robert Elsvit e uma música fantástica de Jonny Greenwood, uma experiência cinematográfica extraordinária, a que se assiste com gosto e interesse genuínos (sobre o cineasta ver "Paul Thomas Anderson: O Enigma", de 20 de Janeiro de 2012, "Mosaico vivo", de 30 de Março de 2012, e "Sem saída", de 12 de Fevereiro de 2013.)

sábado, 21 de fevereiro de 2015

18 anos, perdido

     Transmitido pelo Arte, "Les stigmates du tueur"/"Staudamm" é a segunda longa-metragem do alemão Thomas Sieben (2012), co-autor do argumento com Christian Lyra. Trata-se de um filme extraordinário na sua própria anti-espectacular economia de meios no tratamento de um caso de massacre escolar ficcionado a partir de diversos casos reais ocorridos já este século na Alemanha.
                    Staudamm
   Descrevendo um trajecto semelhante ao de "Elephant", de Gus Van Sant (2003), este filme dele se afasta por não proceder a uma reconstituição extensiva dos acontecimentos nem mostrar o autor dos crimes em benefício do inquérito conduzido a posteriori por um inquiridor ocasional que pelo caso se interessa, Roman/Friedrich Mücke, a partir da sua chegada à localidade onde os acontecimentos tiveram lugar acompanhado por Laura/Liv Lisa Fries, que a eles assistiu.
  Com um tom sóbrio e discreto sobre um ambiente com nuvens baixas, depois de diversos episódios dilatórios do inquérito de Roman mas que o favorecem (a demora na entrega de um dossier, a sua própria demora em aceitar ao convite de Laura para o fazer aceder aos locais) o filme chega ao que o assassino deixou escrito sobre si próprio, o que acaba por ser o seu ponto central. Depoimento fundamental de um jovem de 18 anos que se considera perdido, por ele percebemos como poderes diversos, escolares e clínicos incluídos, todos andam a iludir-se e a iludir-nos ao chegarem sistematicamente tarde a casos como este. 
                    Friedrich Mücke & Liv Lisa Fries in "Staudamm"
    Todos andam entretidos com o dinheiro, o poder, a fama, a guerra, deixando ao abandono, entregue a si própria, uma juventude que se sente ignorada e desprezada, da geração anterior apenas aquilo recebe e por isso em casos extremos faz esta ou outras opções radicais e aparentemente sem sentido. Há, com efeito, toda uma geração que, contando com o desprezo ou a desatenção de todos os responsáveis, vai fazendo o que acha dever fazer, mesmo se por isso pedindo desculpa, como no caso deste filme, em que o assassino se torna tanto mais presente quanto não é mostrado e que decorre num meio pequeno e fechado, acontece.
   Sem nunca o mostrar abertamente, "Les stigmates du tueur" é um libelo violentíssimo contra estas sociedades do egoísmo e da vaidade, da passividade e da indiferença pelo indivíduo, que central ou localmente com ele apenas se preocupam em momentos de crise. Sem espectáculo, sem estardalhaço, numa linha quase bressoniana faz o processo de um caso extremo e, por intermédio dele, de sociedades pós-industriais e pós-humanas em que os indivíduos se limitam a números de uma contabilidade eleitoral ou estatística, sociedades que se preocupam prioriariamente com o deve e haver da dívida, a subida e a descida dos mercados, os avanços e recuos de guerras cuja origem se perde nas necrópoles do tempo.
                     Staudamm - Plakat
       Eu percebo que vocês estejam a pensar nos Oscars. Eu estou preocupado com isto, que surge cristalinamente no falso film noir que "Les stigmates du tueur" é. Falem sempre uns com os outros e cuidem-se. Depois não digam que "é a vida", porque é sobretudo, em isolamento e incomunicabilidade, a má vida.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Para Jafar Panahi

    Meu caro Jafar Panahi. Sou um modesto admirador dos teus filmes, daquilo que eu chamo a tua obra cinematográfica - ou daquilo que dela conheço. Não tenho rebuço em afirmar que para mim o cinema, e portanto o teu cinema também, é uma arte, por isso eminentemente respeitável como forma superior de expressão do ser humano.
     Soube que te foi atribuído o Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim deste ano de 2015 por um filme que ainda não conheço mas espero vir a conhecer. Fiquei muito satisfeito com mais este importante prémio que te foi atribuído e por ele te felicito. Pelos teus filmes que vi - "O Cículo"/"Dayereh" (2000), "Sangue e Ouro"/"Talaye sorkh" (2003), "Offside - Fora de Jogo"/"Offside" (2006) e "Isto não é um Filme"/"In film nist" (2011), verdadeiramente admirável - sei que és um cineasta contemporâneo muito importante. Pela comunidade cinematográfica e pelos meios de comunicação sei das difíceis, indignas circunstâncias em que vives e trabalhas.
                                   2015-02-14T195240Z_1729911479_LR2EB2E1J7HLP_RTRMADP_2_FILMFESTIVAL-BERLIN
  Sinto-me, por isso, autorizado a dizer-te prioritariamente que deves persistir no teu esforço pessoal de continuar a criar em filme o que, sem ti, não poderia existir. Não te esqueças de que nestes 120 anos de história do cinema outros viveram em circunstâcias semehantes à tua actual situação e não desistiram. O futuro pertence-te desde que continues a trabalhar sobre o teu presente - e o presente é o que nos é dado conhecer pessoalmente.
    E não te esqueças de continuar a acompanhar o cinema contemporâneo como puderes, porque isso é importante para situares melhor os teus filmes. Deposito em ti inteira confiança e podes contar com o cinema em teu favor enquanto continuares a ser um cineasta que trabalha o cinema pelo cinema, como arte, como deve ser e todos nós continuamos a fazer. Que este prémio por "Taxi" (2015), o teu mais recente filme, te sirva de estímulo e transmita confiança. 
                      Taxi Jafar Panahi
  E continua, por favor, a dar-nos notícias tuas, enquanto continuamos todos a exigir sejas restituído a condições de plena liberdade e os teus filmes possam circular normalmente no teu país.
   (Sobre o cinema iraniano, ver "Uma questão familiar", de 5 de Julho de 2012, "Desenvolto e atento", de 11 de Setembro de 2013, e "A vida e a morte", de 31 de Dezembro de 2013. Sobre Abbas Kiarostami, ver "Uma tarde na Toscãnia", de 14 de Janeiro de 2012, e "Grandeza de Kiarostami", de 6 de Outubro de 2013.)

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Pedra de toque

    Posso dizer do francês Bruno Dumont que é um cineasta que respeito, que até agora admirava sem amar os seus filmes (para usar uma distinção de João Bénard da Costa). Sério e intransigente, os seus filmes traziam contudo, cada um deles, um peso, uma gravidade excessiva que nos impressionava até nos esmagar. Influenciado nomeadamente por Robert Bresson, ainda não tinha atingido a dosagem ideal no cinema, aquele ponto a partir do qual ficamos interditos.  
                     
     É por isso mesmo que "O Pequeno Quinquin"/"P'tit Quinquin" (2014) é uma verdadeira surpresa com a sua mudança para um registo de comédia muito conseguido, que em nada prejudica, antes beneficia e ilumina a gravidade anterior. Tinha visto a série no Arte nos últimos meses do ano passado e não tinha ficado convencido. Mas, com a estreia do filme completo em sala esta semana em Portugal, pude agora vê-lo nas melhores condições todo de seguida e fiquei convencido.
      A partir de novo de uma argumento seu, Bruno Dumont consegue atingir o justo equilíbrio entre a comédia, a caricatura mesmo - o Comandante Van der Weyden/Bernard Pruvost e o Tenente Carpentier/Philippe Jore -, e a gravidade da situação envolvida dos crimes em série numa pequena aldeia do noroeste de França, que eles investigam. À parelha de polícias responde o par de miúdos, o P'tit Quinquin/Alane Delhaye e Eve Terrier/Lucy Caron, e o bando dele.
                     
    Há crime na aldeia e o responsável é o Diabo, provavelmente. Nada acidental nas suas referências, o cineasta mostra toda a sua dimensão como criador ao manter a sua câmara à distância justa para que as personagens surjam e evoluam à medida do insólito dos acontecimentos que investigam, por forma a que, sem embargo do dramatismo, o cómico grotesco das próprias personagens responda ao brutal grotesco dos crimes.
       Ora é justamente ao não poupar detalhes e reflexões - ao não subtrair - que o filme explana e espraia com humor uma situação grave reduzida ao ridículo para melhor a fazer reverberar no seu carácter sintomátco - e tudo isso resulta muito melhor no grande ecrã do cinema. Lembra Jacques Tati, lembra Robert Bresson, François Truffaut também, mas "O Pequeno Quinquin" é sobretudo Bruno Dumont a traçar o seu próprio caminho com inteira liberdade, a exprimir-se cinematograficamente sem peias - a inesquecível missa de finados, os sonhos realizados dos dois polícias (conduzir um carro sobre duas rodas, montar um cavalo, embora trocando-lhe o sexo), Van der Weyden que finalmente se lembra do nome do pintor flamengo em que o cadáver nu de uma mulher e o cavalo o fazem pensar - num filme que é um mosaico em que todos os diálogos são e não são de levar à letra e cada personagem deve ser vista em toda a diversidade que em si mesma relacionalmente encerra. 
                      Julien Bodard, Corentin Carpentier e Alane Delhaye em cena de P'tit Quinquin, de Bruno Dumont
     Os actores voltam a ser não-profissionais, o que, revelando-se eles grandes actores, funciona plenamente, e é também por isso que o filme foi recebido em França como uma "bomba", como escreveu Stéphane Delorme nos Cahiers du Cinéma, que o consideraram o melhor filme de 2014. Que em "O Pequeno Quinquin" a questão seja a mesma que nos filmes anteriores de Dumont duvido muito, já que a forma, a estética e o estilo, apesar do final e por causa dele, alteram toda a situação, pois este não é um filme que se suporta por ser muito bom mas que se desfruta pelo seu equilíbrio figurativo (não lhe vou chamar narrativo) e formal.
      Não me lembro, de facto, de filme tão bem equilibrado visual, geometricamente, como este na obra do cineasta, um equilíbrio que joga com os excessos e distorções que mostra e que decorre na sua esmagadora maioria em exteriores. Rara, a música diegética e sobretudo não diegética introduz o comentário preciso, mesmo se grave. Naquela pequena aldeia imaginária, naquelas personagens trabalhadas em pormenor, todos suspeitos e vítimas potenciais, está toda a França e estamos todos nós. Sem dó e sem piedade, mas também sem nenhuma facilidade, diferenças raciais, de condição e etárias incluídas (sobre Bruno Dumont ver "A dignidade do cinema", de 30 de Julho de 2012, e "Filme de programa", de 30 de Junho de 2013).    

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Nada ao acaso

     "Olhos Grandes"/"Big Eyes", a mais recente longa-metragem de Tim Burton (2014), é um filme algo insólito na sua obra pois baseia-se em factos e personagens reais, o que anteriormente apenas lhe havia acontecido em "Ed Wood" (1994). Não obstante essa circunstância, este é mais um filme com a assinatura do cineasta, pois também ele trata de uma caso extremo de criação artística, desta feita na pintura. Mas não só por isso.  
                       https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiRmg1ZmtEQQnzN6J6F-IJYmIaMiWoWj7SOMF4OiWDNAfSZpKnKuG3Tp54usEsdVHWK737trYSwiEOL78_izhq_lmL9nMVsD3iw6fS60PPD5CGyPSYYpLEX2i4SHO20wTJqqpN4rE8hRXd3/s1600/big_eyes_movie_image_wallpaper.png
    Nos anos 50 do Século XX Margaret Keane/Amy Adams vê a autoria das suas obras - rostos de criança com olhos grandes desenhados - usurpada por aquele que, intitulando-se pintor com aprendizagem feita em Paris, se vem a tornar seu marido, Walter Keane/Christoph Waltz. Trata-se de um caso estranho, como diz no final o juiz de Honolulu, mas o golpe estava dado quando Walter se tornou marido de Margaret.                             
    Reconhecendo todo o mérito à narrativa, a mim interessam-me sobretudo os traços que melhor individualizam o filme como obra de Tim Burton, um criador cinematográfico nada acidental. De facto, quer Amy Adams quer Christoph Waltz remetem directamente neste filme para o cinema americano dos anos 50, ela para Kim Novak, nomeadamente em filmes de Richard Quine (1920-1989), pela maneira como é filmada, ele para Gene Kelly no musical de Vincente Minnelli (1903-1986), nomeadamente "Um Americano em Paris"/"An American in Paris" (1951), pela maneira como se move e age fisicamente. Se a isto juntarmos o apropriado uso do preto e branco nas imagens da televisão, como acontecia na época, teremos as marcas da inteligente apropriação de uma época por um cineasta superior para um filme também por isso invulgar.
                     big eyes movie review christoph waltz Big Eyes Review
     Salvo um caso de uso do desenquadramento numas escadas, "Olhos Grandes" poderia parecer um filme comum baseado num caso real, o que de todo não é pelo que acima referi mas também pelo tom onírico em que tudo decorre, como o sonho de Margaret, personagem estática diante de um Walter hiper-móvel. De resto, o próprio uso da cor na fotografia de Bruno Delbonnel e da música de Danny Elfman vai nesse sentido.
      Como "Ed Wood", mais do que ele, este filme pode ser assim ser visto como um superior filme de época sobre o próprio cinema, tanto mais quanto a mencionada Kim Novak foi também a Madeleine/Judie de "A Mulher que Viveu Duas Vezes" /"Vertigo", de Alfred Hitchcock (1958), um filme como este passado em São Francisco.
                 big-eyes-slice.jpg                                   
     Visto desta maneira, que o próprio filme impõe com todas as suas outras referências de época, "Olhos Grandes" é um filme tão completamente dominado por Tim Burton como os seus filmes em stop-motion e fala-nos todo o tempo a outros níveis que não os que surgem como imediatos ao espectador de hoje, que poderá, contudo, compreender o simbolismo dos olhos grandes pintados.  
     (Sobre Tim Burton, ver "Um artista americano", de 24 de Maio de 2012, e "Um artista de sonho", de 21 de Outubro de 2012.)                                                      

Só e inocente

     Passou no final da semana passada no Arte o tele-filme "Survivre à Guantanamo"/"5 Jahre Leben", de Stefan Schaller (2013). Baseado no relato do próprio protagonista, Murat Kurnaz/Sascha Alexander Gersak, é um filme surpreendente e inquietante sobre aquela conhecida e indesejável prisão americana, centrado num prisioneiro como outros submetido a sucessivos interrogatórios e sucessivas torturas.
                    Survivre à Guantanamo - 1
     Sem dar excessivo relevo à reconstituição das torturas físicas e psicológicas - a tortura mais cruel e violenta, decorrida no Afganistão, é descrita em palavras suas por Murat -, mas não a omitindo, este filme centra-se no diálogo ácido do inquiridor Gail Holford/Ben Miles com o detido, no sentido de arrancar dele a confissão dos factos e dos contactos de que ele é acusado. Apesar de toda a astúcia do oficial americano, Murat Kurnaz, um turco nascido na Alemanha, nada confessa e nega tudo sempre - e a diferença cultural entre ambos está sempre muito presente não apenas nas posições relativas mas nos próprios diálogos.
    Com alguns excertos do passado do protagonista reconstituídos também, temos acesso a alguns lugares-comuns numa comunidade como a sua era na Alemanha, que funcionam plenamente para estabelecer a sua identidade. Mas de cabeça baixa, acossado ou desafiador, ele persiste na sua recusa de confessar seja o que for. 
                   
   Habituados como estamos a que casos semelhantes acabem com a condenação dos acusados, somos até certo ponto surpreendidos com a informação dada no final de que Murat Kurnaz foi libertado e regressou à Alemanha, tendo-lhe sido apresentadas descupas públicas pelas autoridades americanas. Considerando-o retrospectivamente, compreendemos todo o absurdo que o filme envolve e toda a falta de sentido da tortura, utilizada com um inocente.
    Assim, neste processo com traços kafkianos, muito bem filmado e interpretado, de que a realização tira o melhor proveito em favor do dispositivo concentracionário, somos postos em contacto com uma justiça de guerra americana que faz tudo para provar o que quer e acaba por admitir não poder provar nada contra o acusado. "Survivre à Guantanamo" é um tele-filme essencial e exemplar, porque sendo por um inocente, cujo ponto de vista nos dá, é também contra a tortura e contra o próprio conceito de Guantanamo. Repete na noite de 17 para 18 de Fevereiro no Arte, um canal cultural de enorme qualidade e programação intransigente, o que aqui volto a assinalar.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Prova de actores

      Baseado na conhecida peça de teatro de August Strindberg (1849-1912), "Miss Julie" (2014) é a primeira longa-metragem de Liv Ullmann como realizadora desde "Infidelidade"/"Trolösa" (2000), sobre argumento de Ingmar Bergman (1918-2007), que era um bom filme. Sendo fundamentalmente uma prova de actores, e Jessica Chastain, Colin Farrell e Samantha Morton são-no aqui indubitavelmente, este é, porém, um texto que exige também uma direcção inteligente que dele tire o melhor partido.
     Desse ponto de vista a realização de Liv Ullmann, igualmente responsável pelo argumento, é sóbria e segura, sem grande inventiva - salvo um jogo de grandes planos sobre os actores na primeira parte em que os seus rostos surgem como máscaras - na sua planificação clássica, excessivamente respeitosa mesmo, mas que dá bem conta do pormenorizado cenário e dos excelentes actores. Acompanhando o desenrolar dos acontecimentos entre Miss Julie e John, a realização vem a revelar toda a sua justeza na cena final, com o ligeiro plongé sobre a protagonista e os planos de pormenor.  
                     Miss Julie Toronto Film Festival
    Este "Miss Julie" de Liv Ullmann é, pois, plenamente relevante e marca mesmo uma data no trabalho sobre a peça de Strindberg, de que preserva toda a modernidade. Com uma esplêndida Jessica Chastain, um contido mas justo Colin Farrell e uma expressiva Samantha Morton, revela-se um percuciente estudo de personagens, exploradas na sua interioridade neste texto indispensável do moderno do teatro escandinavo e europeu.
     Acusada de frieza, Liv Ullmann dá-nos uma leitura pessoal e moderna de um autor moderno e de uma personagem moderna. O tratamento das sombras pela fotografia de Mikhail Krichman é muito bom e a música fica-lhe bem. Com grandes actores, não se lhe podia pedir mais. É uma leitura pessoal, que me interessa por ser a dela, a leitura de uma actriz, argumentista e realizadora, que se serve do teatro para se explanar e o expor cinematograficamente.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Bons auspícios

   O mais recente filme de Michael Mann, "Blackhat: Ameaça na Rede"/"Blackhat" (2015), é uma evolução auspiciosa na obra do cineasta. Estávamos sem notícias dele desde "Inimigos Públicos"/"Public Enemies" (2009), um filme de gangsters bem esgalhado, e não se esperaria depois desse um filme como este seu filme seguinte é.  
                        o-BLACKHAT-facebook
    É que "Blackhat: Ameaça na Rede", na perseguição dos responsáveis por uma rede que actua como hacker na net com fins de especulação bolsista a atingir através de sucessivos ataques terroristas, tem todos os sinais da Série B, e poderia ter feito as delícias de John Carpenter. Sem o aparato de "Miami Vice" (2006), por exemplo, mesmo os actores são desconhecidos e o intérprete do protagonista, Nick Hathaway, o australiano Chris Hemsworth, pode mesmo passar por um péssimo actor, ao nível do Roddy Piper de "Eles Vivem"/"They Live" (1988), num papel que faz lembrar o Snake Plissken que por duas vezes Kurt Russell interpretou para Carpenter - "Nova Iorque 1997"/"Escape from New York" (1981) e "Fuga de Los Angeles"/"Escape from L. A." (1996). Muito novos, Leehom Wang como Chen Dawai e Wei Tang como Chen Lien, a sua irmã, cumprem bem sem comprometer a presença física de Hemsworth, que é tudo o que lhe é pedido e ele tem para dar ao filme.
    Vamos ver se me explico bem. Por inverosímil que o enredo narrativo possa parecer e até seja, tem todas as referências mais conhecidas à internet, ao mercado bolsista, à China e ao Sudeste Asiático, bem como à "teoria da conspiração internacional", em função das quais Nick Hathaway é tirado da prisão onde estava para, com os seus conhecimentos informáticos, dar caça aos desconhecidos perpetradores de atentados - enquanto Snake Plissken tinha que salvar nada menos que o Presidente dos Estados Unidos, indigno e raptado ou presa de sedição. Chen Lien reforça os laços entre o irmão e Nick ao envolver-se com este, e os responsáveis pela ameaça, Elias Kassar/Ritchie Koster e Henry Pollack/John Ortiz, são brancos e usam barbas.
                        blackhat-movie-image
     Procurei uma actriz branca e não-chinesa no filme e apenas dei por Viola Davis como Carol Barrett, uma negra que não gosta de ser tratada como latina - parece haver algumas agentes do FBI brancas mas nem sequer surgem creditadas. E quando os responsáveis pela missão começam a morrer às mãos do vilão começamos a perceber que mais gente vai cair, Chen Dawai, o mano a mais, para como no filme negro o par jovem e isolado defrontar o super-vilão - e o final no meio do desfile festivo está muito bem feito, com um desenlace ambíguo, como eu gosto e a Série B e o filme negro propiciam.
     Os colaboradores não são os habituais de Michael Mann, também produtor: o argumentista Morgan Davis Fohel, o director de fotografia Stuart Dryburgh, os compositores Harry Gregson-Williams, Atticus Ros e Leo Ross. Com novo aspecto desenvolto e decidido, mantendo embora a encenação com movimentos laterais de câmara e com profundidade de campo e uma montagem sincopada, sem ligar ao estrelato que animou os seus filmes de longa-metragem anteriores nem à verosimilhança do racconto, de uma maneira inesperada e muito auspiciosa o cineasta surge em "Blackhat: Ameaça na Rede" em muito boa forma. Antes assim.

O segredo da infância

    Último filme de uma trilogia de que foi o único a chegar-nos (1), "Mel"/"Bal" do turco Semih Kaplanoglu (2010) é um filme secreto e sereno, de uma grande beleza, sobre uma criança de seis anos, Yusuf/Bora Altas, que vive de forma interiorizada a sua convivência com o que a rodeia, que assim aprende a conhecer.
     Todos tivemos infância e por isso cada um de nós sabe como nela foram vividos e depositados segredos da própria experiência subjectiva de cada um. Alguns mais do que outros conservam essas marcas de infância pela vida fora. São os mais sensíveis, por vezes os menos conviventes, os que cultivam a solidão - veja-se por todos, no cinema, o Charles Foster Kane de "O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane", de Orson Welles (1941).
                     
      No convívio com o pai, Yakup/Erdal  Besikçioglu, apicultor, na esplêndida floresta da Anatólia Yusuf vai-se iniciando nos segredos da actividade dele, enquanto na escola é outra a aprendizagem, a que tem dificuldade em aceder. E há na exploração visual desse tempo pleno em "Mel" um grande equilíbrio formal, de luz e sombra, de natureza e interiores. Até ao dia em que o pai dele não regressa e ele se vê remetido para o lado feminino da família - a mãe, Zehra/Tülin Özen.
       Aí se vai abrir ou alargar a ferida da criança no seu mundo fascinado, e a manifestação fílmica desse acontecimento interior, que o início do filme anunciava (a queda do pai do alto de uma árvore), mantém a serenidade da câmara, como que respondendo à própria serenidade interior do seu pequeno protagonista naquele universo onírico, próprio da sua idade e da forma íntima e pessoal como ele vive a sua relação com o mundo.
                     
    Mesmo se visto com muito atraso em relação à sua estreia (esta semana no Arte), devo deixar aqui uma referência a este filme extraordinário de uma poesia secreta que connosco convive da melhor maneira, convocando também as nossas próprias memórias de infância e convidando-nos ao recolhimento interior, pessoal e intransmissível. 
    O recorte do espaço em interiores, com janelas ou portas ou a chama da lareira, o avanço do protagonista solitário em exteriores, os seus momentos de convívio - com o pai, com a mãe, com a escola, com a aldeia -, a imensa beleza dos locais numa floresta entre luz e sombra, tudo neste filme nos encanta, comove e atrai pelas melhores razões fílmicas. Depois de várias vezes o ecrã ter fechado a negro, o final é belíssimo.
                     
      Ora isto significa que no país de Yilmaz Güney (1937-1984) há mais cineastas muito bons além de Nuri Bilge Ceylan, o que é muito bom e o Urso de Ouro atribuído a "Mel" no Festival de Berlim de 2010 claramente assinala - um filme de que, além de realizador, Semih Kaplanoglu é também co-argumentista, com Orçun Köksal, e produtor.                                       

Nota
(1) Os dois filmes precedentes desta trilogia foram "Ovo"/"Yumurta" (2007) e "Leite"/"Süt" (2008).

My name is...

     Fui ver "A Teoria de Tudo"/"The Theory of Everything", de James Marsh (2014), não por causa do cineasta, o que até poderia ter acontecido, mas por causa da personagem: Stephen Hawking. O (felizmente) conhecido físico é uma das personalidades mais importantes do nosso tempo, do que convém ter consciência, e um filme sobre ele interessa-me. Entre ele e Mr. Bond, James Bond, escolho-o a ele como herói muito recomendável.
                      Eddie Redmayne in The Theory of Everything Movie
       O filme é um biopic comum que se destaca pela grande interpretação de Eddie Redmayne, realmente notável, e por se basear na biografia de Hawking escrita pela sua mulher, Jane, interpretada no filme por Felicity Jones. Divulgar através do filme a odisseia da vida e do labor do maior cientista do nosso tempo, tolhido embora por uma doença neuro-degenerativa grave, fica bem ao cinema.
       Ainda que o filme seja um filme comum embora escorreito em termos cinematográficos, tem o mérito de nos levar ao contacto com um dos gigantes sobre cujos ombros todos andamos (1), cuja vida difícil é inteiramente exemplar para todos nós.  Não conheço maior exemplo de coragem e determinação mesmo perante as piores notícias pessoais numa vida dedica à ciência, ao conhecimento, do que o de Stephen Hawking - um exemplo para todos nós, em especial para os mais novos.
                      theory3
     Acompanhando os episódios principais e mais conhecidos da vida deste homem de ciência, "A Teoria de Tudo" de James Marsh presta-lhe a homenagem merecida, embora em termos excessivamente correctos, que decorrem da fonte literária que adopta. Nomeadamente a sua relação com a enfermeira não é tratada, o que faz o filme quedar-se por uma hagiografia politicamente correcta, que termina com a sua condecoração pela Rainha. Podia esperar-se melhor, embora tal como é o filme seja compreensível e não seja nada mau.
     Se há personalidade que no Século XX-XXI admiro incondicionalmente ela é Stephen Hawking. Vejam este filme, valha ele o que valer como filme - e alguma coisa vale, pois James Marsh, autor nomeadamente do "Homem no Arame"/"Man on Wire", 2008, não é um realizador ingénuo, o que aqui de novo demonstra com atenção. Stephen Hawking merece-o. Mas sobretudo leiam-no, que está editado em português pela Gradiva.
                                        
       "My Name Is Stephen Hawking" são as suas primeiras palavras quando passa a dispor de meios para as dizer. Entre a física quântica e a teoria da relatividade está ele, que daqui saúdo efusivamente.

Nota
(1) Cf. "Aos ombros de Gigantes - As Grandes Obras da Física e Astronomia", coligido e comentado por Stephen Hawking, com Coordenação Científica e Prefácio de Carlos Fiolhais (Lisboa: Texto, 2010).

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Excesso de subtileza

      Alejandro González Iñárritu é um cineasta mexicano estabelecido nos Estados Unidos que nos habituou a filmes muito bons mas, em especial ultimamente, com algo de irrritante, o que volta a acontecer em "Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorãncia)"/"Birdman or (The Unexpected Virtue of Ignorance)" (2014). Depois do preciosismo temporal dos seus filmes iniciais, "Amor Cão"/"Amores perros" (2000), "21 Gramas"/"21 Grams" (2003), "Babel" (2006), e de "Biutiful" (2010), ele regrassa a um registo subtil ao revisitar agora uma antiga vedeta de Hollywood, Riggan Thomson/Michael Keaton, conhecida pelo seu desempenho de Birdman e depois caída no esquecimento.
                   
     Se há uma certa proximidade do protagonista quando ele tenta regressar como encenador e actor de teatro na Broadway, a própria interpretação de Michael Keaton - num registo indeciso que só a partir da discussão com a filha, Sam/Emma Stone, em que ela lhe diz o que ele não queria nem esperava ouvir, se vai tornando mais afirmativo - só progressivamente trabalha nesse sentido. Ora isto compreende-se porque Riggan Thomson vive em diálogo com a sua anterior personagem fantasmática, mas essa indecisão vai sobretudo influenciar a sua encenação de Raymond Carver (1938-1988) - um grande escritor americano anteriormente adaptado ao cinema por Robert Altman num dos seus melhores filmes, "Short Cuts - Os Americanos"/"Short Cuts" (1993) - e o contacto e convívio com os respectivos actores, nomeadamente Mike/Edward Norton, caricatura do Método do Actors Studio.
      Sem perder de vista a crítica ao cinema e ao teatro, que Tabitha/Lindsay Duncan personifica exemplarmente, Iñárritu tenta, com precioso apoio em Michael Keaton, compreender e explicar um homem fora do seu tempo como Riggan é, e as coisas vão-se encaixando a pouco e pouco, com o mito da personagem anterior, e a sua fama, a sobreporem-se à hesitante realidade actual dele - e essa apropriação do presente pelo passado é essencial no filme.
                      
      A encenação teatral, com as suas previews, dentro do filme está bem vista mas a questão da arma de fogo é muito denunciada e torna-se previsível, embora o final não lhe dê imediata e directa satisfação. E será talvez nesse diferimento do final que reside a maior subtileza deste "Birdman", em que Riggan não se mata mas... Tudo muito, demasiado subtil, conservando embora a esse nível a contundência crítica.
      A complexa construção do filme e do seu final preserva algum encanto, mas a crítica implícita e explícita ao cinema e a Hollywood revela-se inofensiva, algo com que o cinema americano pode perfeitamente conviver, até apreciar nas meras cócegas que lhe faz. Não se esperava tanta complacência narcísica, embora a percussão salve bem a banda musical, não nos dando tréguas, e o trabalho de Michael Keaton (duas vezes Batman para Tim Burton, o que deve ser levado em devida conta) seja decisivo para o sucesso do filme, que se fica a dever, no fundamental, a ser assombrado por um fantasma numa arte fantomática que a eles é especialmente propícia. E é mesmo por isso que se compreende e aceita o seu excesso de subtileza.