“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

terça-feira, 30 de abril de 2013

Era Nantes e amanhecia

        Entra-se no mundo encantado de Jacques Demy por um corredor com a parede da direita revestida de espelhos que reflectem as imagens mais conhecidas dos seus filmes mais famosos, que recobrem a parede da esquerda e assim se projectam, intactas, na nossa memória, como em espelhos wellesianos ou deleuzianos, até ao infinito. A exposição "Le monde enchanté de Jacques Demy" está situada no piso do edifício da Cinemateca Francesa (51 rue de Bercy, 75012 Paris) e por ordem cronológica percorre, e faz-nos percorrer, a vida e a obra deste extraordinário cineasta da "nouvelle vague" francesa, um insatisfeito precocemente desaparecido (1931-1990).
        Não lhe foi especialmente difícil o início no cinema, para o qual fazia pequenos filmes desde muito novo com o equipamento que tinha, equipamento e filmes também aí expostos. A sua admiração por Jean Cocteau, com quem trocou correspondência e de quem adaptou "Le bel indifférent" (1957), terá ajudado, mas o seu talento próprio fez nessa e nas outras curtas-matragens que dirigiu ainda nos anos 50 o que faltava para chegar a "Lola" (1960), uma primeira longa-metragem fundadora com uma belíssima e mítica Anouk Aimée.
                      French New Wave 
       A musicalidade que percorria esse filme iria, depois de "A Grande Pecadora"/"La Baie des Anges" (1962), com uma fabulosa e igualmente mítica Jeanne Moreau, explodir em música, diálogos cantados e progressivamente alguma dança em "Os Chapéus de Chuva de Cherbourg"/"Les parapluies de Cherbourg" (1963) e "As Donzelas de Rochefort"/"Les demoiselles de Rochefort" (1966), com Catherine Deneuve acompanhada no segundo pela sua irmã, Françoise Dorleac (1942-1967), George Chakiris, Jacques Perrin, Gene Kelly...
      Não, não vou prosseguir, estou apenas a introduzir um grande cineasta francês e a grande exposição que lhe dedica, e a cada um dos seus filmes, a Cinemateca Francesa. É uma exposição muito boa e muito merecida, com originais ou reproduções de peças usadas nos seus filmes, nalguns casos com os desenhos do próprio Jacques preparatórios dos cenários, do vestuário, com os próprios argumentos dos seus filmes. E, no espaço condigno reservado a cada um destes, grandes fotografias de rodagem, ou excertos dos próprios filmes, ou documentários sobre eles - muitas, a maioria dessas fotografias tiradas por sua mulher, Agnès Varda.
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       O mundo encantado de Jacques Demy merece tudo isto, pois ele foi um dos cineastas mais importantes da "nouvelle vague" francesa e um extraordinário criador de filmes, em especial de um novo tipo de musical, mas também de filmes fantásticos como "A Princesa com Pele de Burro"/"Peau d'âne" (1970) e "The Pied Piper" (1971) - o primeiro, baseado em Charles Perrault, com Catherine Deneuve e Jean Marais, o segundo com Donovan como compositor, actor e cantor. Para darem testemunho da importância dos seus filmes e os estudarem de novo, foram editados novos livros que demonstram, de forma clara e enriquecedora, que Jacques Demy foi um dos maiores cineastas franceses da segunda metade do Século XX e um dos maiores cineastas de toda a história do cinema. No final da sua vida, quando se considerava insatisfeito com as possibilidades do cinema, Demy, que tinha praticado o desenho nos anos 40 e a fotografia ao mesmo tempo que o cinema dedicou-se à pintura, criando telas que, como os seus desenhos iniciais e as suas fotografias, também figuram nesta exposição. Sobre a própria exposição que lhe dedica, e a propósito dela, a Cinemateca Francesa editou um excelente catálogo, com prefácio de Costa-Gavras, président, e apresentação de Serge Toubiana, directeur général, com reproduções fotográficas de todas as peças expostas, novos textos, novas entrevistas e novos depoimentos sobre o cineasta e os seus filmes, que são objecto de uma retrospectiva nesta ocasião, assim propostos de forma mais completa, que convida ao prosseguimento do seu estudo.      
                   
         Quero, porém, aqui recordar o tempo em que, nos anos 60, se acompanhava vivamente os filmes, cada novo filme do jovem Jacques Demy, a enorme emoção e a muito favorável impressão que eles causavam. Foi por causa dele, e dos outros cineastas da "nouvelle vague" e dos cinemas novos, que os anos 60 foram, mesmo em Portugal, exaltantes, exuberantes e muito estimulantes, inclusive intelectualmente, no cinema. Não tenho memória de outra época como essa, em que em Portugal começava também um "novo cinema", com Paulo Rocha, Fernando Lopes, António de Macedo e os outros que iriam iniciar-se logo a seguir a eles. Nessa altura pudemos todos assistir ao nascimento de alguma coisa de verdadeiramente novo e muito interessante no cinema, como se disso nós próprios partcipássemos - e participávamos. E também se conversava, lia-se, discutia-se e escrevia-se sobre isso, esses e outros filmes, especialmente americanos, de que assim nos apropriávamos e fazíamos nossos. 
                    Still from Les Demoiselles de Rochefort
       Depois, mas só depois, veio o Maio de 68, que para muitos hoje em dia é sinónimo da década que apenas veio culminar, levando alguns no cinema francês a enveredar por um caminho mais político. Mas o que foi absolutamente fundamental, mágico, foi assistir ao nascimento da "nouvelle vague" francesa e de cinemas novos como o italiano, o alemão, o brasileiro, o japonês, o "free cinema" inglês, o New American Cinema sediado em New York - um nascimento que se verificou na maioria dos casos ainda durante a década de 50.
         Vão, pois, a Paris ver esta exposição, que estará até 4 de Agosto na Cinemateca Francesa, e se forem antes de 7 de Julho poderão ainda visitar, no 7º piso, a exposição "Maurice Pialat - peintre & cinéaste", que a este outro grande cineasta francês (1925-2003), que chegou mais tarde e com mais dificuldade ao cinema do que Jacques Demy, aí é neste momento dedicada. É também uma bela exposição e acompanhada por um belo catálogo, da responsabilidade de Serge Toubiana.
                    Laure Van Ruymbeke 01/03/13                     
        Que os aproximou aos dois, Demy e Pialat? A pintura e a cor. De facto, ainda durante os anos 40, depois de ter frequentado as Belas Artes, Maurice Pialat começou por pintar durante algum tempo, antes de, a partir de 1951, ter começado no cinema na curta-metragem - a sua estreia na longa-metragem dá-se só em 1968, com "L'enfance nue", depois de muitos projectos rejeitados - um processo que também atingiu Jacques Demy, com projectos não realizados ele também. As pinturas de um e do outro figuram nas respectivas exposições e são reproduzidas nos respectivos catálogos. Talvez que o interesse de ambos pela pintura justifique a especial atenção que cada um deles dedicou à cor nos respectivos filmes - mais fantasista em Jacques Demy, de acordo com os filme que fez a cores (e foi a maioria), em que dominavam ou o musical ou a fantasia (quando não ambos), mais naturalista em Maurice Pialat, de acordo com o seu universo pessoal, presente em cada um dos seus filmes. Poderá mesmo compreender-se a partir daqui que "Van Gogh" (1991) foi o menos acidental dos filmes de Pialat, um grande cineasta cujo filme mais conhecido é "Aos Nossos Amores"/"À nos amours" (1985), em que se estreou Sandrine Bonnaire, e que teve mérito suficiente para ser mal acolhido, mal amado pelos próprios franceses.               
        Vejam estas duas exposições mas vejam sobretudo os filmes destes dois grandes cineastas franceses, e outros de outros cineastas da "nouvelle vague" francesa, para perceberem que aí se situou a grande mudança moderna no cinema, numa época, note-se, em que declinavam em beleza os grandes clássicos americanos e em que o fundamental do cinema moderno americano do pós-guerra se tinha já cumprido em vários dos melhores casos, enquanto emergiam ainda os cineastas que tinham feito a sua aprendizagem na televisão durante os anos 50. E não preciso de dizer quem, no cinema italiano, atingiu o seu melhor na mesma década de 60, enquanto Roberto Rossellini se afastava para a televisão - no cinema italiano, no cinema sueco, no cinema francês... Essa foi a segunda grande revolução modernista no cinema, e a última grande transformação artística que ele sofreu, com muitas e importantes consequências, antes de a tecnologia ter chegado para impor a sua lei.
                    
          Também vivo nessa altura, e muito influente, era Jean Renoir, com Rossellini figura tutelar da "nouvelle vague" e um dos maiores cineastas de sempre, sobre o qual saiu agora a biografia definitiva, "Jean Renoir", de Pascal Mérigeau (Paris, Flammarion, 2012), autor que já nos tinha dado "Pialat" (Paris, Grasset, 2002).     
          Só para terem uma ideia mais pecisa sobre os anos 60, é a partir de 1957, com "O Falso Culpado"/"The Wrong Man", que Alfred Hitchcock atinge o topo da sua obra (e "Intriga Internacional"/"North by Northwest", 1959, foi o seu primeiro filme que vi). Mas já nessa altura, e especialmente a partir de então, ele era o homem que sabia demais no cinema, o que "A Mulher Que Viveu Duas Vezes"/"Vertigo" veio confirmar em 1958 (e esse foi um filme que conheci tardiamente), já depois do livro que no ano anterior lhe tinham dedicado Claude Chabrol e Eric Rohmer, fundador de uma fama intelectual que o livro-entrevista com François Truffaut viria confirmar e relançar em 1966 (e esse foi um dos meus primeiros livros de cinema).
                                     
        Falo disto aqui pela importância que teve mas também para encontrar pretexto para falar, aqui e agora, do excelente último romance de Helder Macedo, "Tão longo amor tão curta a vida", que o vem confirmar decididamente como o grande escritor português da actualidade. Claro que ele não precisa de Hitchcock para nada, basta-lhe a literatura portuguesa, em que declina a sua ascendência, o teatro (Shakespeare), a ópera (Verdi), a pintura (alguns impressionistas franceses em cenário londrino), a música (Schubert) e o trivial da psicanálise (Freud, Lacan) para escrever prosa a partir da poesia, como ele próprio diz, de uma maneira perfeitamente siderante, em que descreve a escrita, o processo imaginário da escrita do próprio livro, para nosso espanto e assombro. É um romance actual, curto e perfeito, em que o autor, como de costume, joga com diferentes níveis de construção literária e faz as personagens saírem do seu meio de origem, o que talvez lhe venha mesmo de Bernardim Ribeiro e Camões, a quem dedicou estudos muito importantes. E isto vem a propósito porque em "Tão grande amor tão curta a vida", sem precisar de Hitchcock para nada Helder Macedo dá a volta que ele deu no seu "Vertigo" e mais algumas outras de seu próprio alvedrio.              
     Ora este grande romance português deste grande escritor português é absolutamente prioritário em relação à esmagadora maioria dos filmes estreados e a estrear este ano em Portugal.
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           Apenas agradeço à vida ter-me permitido conhecer os filmes de Jacques Demy, de "Lola" à exposição que agora lhe dedica a Cinemateca Francesa. Tudo o mais, incluindo Jean Renoir, Hitchcock, Pialat e Helder Macedo, me foi dado por acréscimo - e o que eventualmente me tiver sido tirado, como a fotografia de Jeanne Moreau ausente no espaço dedicado a "La Baie des Anges" nesta exposição no dia em que a visitei, nem sequer lhe sinto a falta.
      Para mim, foi, é e será sempre Nantes de "Lola" de Jacques Demy, e amanhecia - apaixonado abandonado, marinheiro americano de uma noite, pai inesperadamente regressado e rico. Regressar mais de 50 anos depois ao universo mágigo de Jacques Demy - Nantes (a que ele regressaria em 1982 para "Une Chambre en Ville"), Cannes, Monte Carlo e Nice com os seus casinos, Cherbourg, Rochefort, Los Angeles (onde foi recuperar Lola e Anouk Aimée 8 anos depois para "The Model Shop"), Paris (ainda a tempo de reapanhar Jean Marais para "Parking", 1985), Marselha (onde ainda apanhou Yves Montand para "Trois places pour le 26", 1988) - é mais, muito mais do que alguma vez poderia esperar ou desejar. Agradeço à vida que mo permitiu.

Uma trilogia de respeito

     "Não"/"No" (2012) encerra a trilogia que o chileno Pablo Larrain dedicou à ditadura que governou o seu país após o golpe de estado militar que, em 11 de Setembro de 1973, depôs o presidente eleito, Salvador Allende. Os filmes anteriores são "Tony Manero" (2008) e "Post Mortem" (2010). Um país que viveu tal circunstância precisa de sobre ela reflectir mesmo depois de ela ter terminado, e foi esse o empreendimento que o cineasta se propôs e a que aqui põe termo.
       Começando por olhar para a trilogia como um todo, aquilo que nela pessoalmente mais me impressiona é o retrato do quotidiano de um país deprimido, submetido a um reino de arbitrariedade e de terror, que de uma maneira muito directa e feliz atravessa os filmes anteriores e aqui vem culminar num clima de luta e de esperança. Essa vivência do dia a dia é muito importante para que se perceba o que uma ditadura como a de Pinochet significou para aqueles que a ela estiveram submetidos nos aspectos mais comezinhos, como ela os atingiu individualmente, como seres humanos integrados numa sociedade.                               
                     'No', de Pablo Larraín, com Gael García Bernal: drama se passa no Chile de 1988
        E é porque tal está presente de uma maneira clara nos três filmes que eles podem funcionar de um modo político eficaz, em que por trás de personagens aparentemente comuns desponta a sombra do regime de terror, suspeita e violência responsável pelos piores crimes, e de que neste último filme é mostrado o final. É evidente que o processo só por si é muito feliz e funciona muito bem, com cada filme apontando para fantasmas específicos que a sociedade chilena foi levada a criar e com que teve de conviver.
       Durante a ditadura foram muito importantes os filmes de Patricio Guzmán, nomeadamente o documentário em três partes "La batalla de Chile" (1975, 1976, 1979), por terem permitido passar para o exterior a história social, económica e sobretudo política que precedeu o golpe militar de 1973 contra Allende, e este cineasta prosseguiu mesmo depois do termo da ditadura o estudo documental do seu país. Mas esse trabalho, embora indispensável e muito útil não substitui a necessidade de olhar para a ditadura e para a sociedade do lado dos espíritos e do imaginário, inevitavelmente atingidos, o que o documentário cumpre de forma menos satisfatória e só a ficção permite plenamente atingir. Ora é a esse trabalho sobre as mentes e a imaginação que nesta trilogia Pablo Larrain se dedica de maneira muito segura, também sombria, um trabalho analítico que inclui o simbólico que de forma inteligente e sugestiva exemplarmente cumpre.
                    
        O clima mais sombrio dos anos da ditadura estava muito bem dado, de maneira precisa e sem concessões, nos primeiros filmes da trilogia, com um lado expansivo que não escondia uma profunda tristeza no primeiro, um lado necrófilo, mais concentracionário, no segundo. Para encerrar, Pablo Larrain escolheu acompanhar a campanha que, em 1988, apoiou o Não no referendo organizado pelo regime, e o seu melhor trunfo é escolher o ponto de vista do consultor da campanha, o publicitário René Saavedra/Gael Garcia Bernal, em confronto com o seu opositor, Lucho Guzmán/Alfredo Castro - este último o excelente actor que protagonizara os dois filmes anteriores. O argumento baseia-se em peça de Antonio Skármeta, que por sua vez parte de factos reais, e permite que o filme funcione muito bem porque o cineasta acompanha René, mesmo na sua vida privada colocada em perigo sob a ameaça dos seus opositores, transformando-o assim num puro e simples herói tranquilo que luta com as armas publicitárias mas também políticas que o confronto exige - e Garcia Bernal está muito bem num registo contido mas expressivo.
        Sem meias-tintas, e ciente de estar a contar uma história muito importante para o presente e para o futuro, Pablo Larrain mantém sempre a distância justa, não hesitando na proximidade do grande-plano e na justeza do plano médio e do plano geral, nem recusando as imagens da própria época que reconstitui, que integra de forma apropriada e feliz, o que confere ao filme uma vivacidade superior à dos filmes anteriores, propositadamente mais lentos e mortiços no seu percurso analítico do negrume exterior e interior das suas personagens, que se justifica pela dinâmica da perspectiva mobilizadora que em "Não" existe de pôr fim à ditadura pelos meios democráticos que ela nunca antes permitira e então só relutantemente admitiu. "Já caiu! Já caiu!", grita-se no fim, depois da vitória do Não.
                     
        Em vários casos, os próprios que viveram os acontecimentos interpretam o seu próprio papel e a fotografia de Sergio Armstrong consegue ser fortemente evocativa, o que confere a "Não" uma autenticidade especial, num tom que não dispensa o humor que alivia a tensão sem ocultar o jogo sujo do ditador e dos seus sequazes e beneficia o filme.       
       Um país como o Chile tem neste momento um cinema à altura do seu tempo, do presente, capaz de lidar com a memória do passado com fidelidade e desassombro, conservando o lado mais acabrunhante e terrífico da ditadura, que existiu mesmo e foi assim até ter terminado. Terminar esta notável trilogia com um filme categórico e muito bom sobre a vitória do povo e a recusa da ditadura fica muito bem a Pablo Larrain.       

O lugar da morte

     Após a trilogia formada por "Coisas Secretas"/"Choses secrètes" (2002), "Os Anjos Exterminadores"/"Les anges exterminateurs" (2006) e "À Aventura"/"À l'aventure" (2008), com a qual tinha deixado muito boa impressão, Jean-Claude Brisseau está de regresso com "A Rapariga de Parte Nenhuma"/"La fille de nulle part" (2012), que de certa maneira a prolonga de modo inesperado.
                      
        Como sempre argumentista e realizador (neste caso, também produtor), ele assume aqui, além disso, a interpretação da principal personagem masculina, Michel Deviliers, um velho, solitário antigo professor que vive sozinho desde a morte da sua mulher, 29 anos antes. Assumindo a sua própria idade, o cineasta reveste aqui inteiramente um alter ego narrativo de si próprio, inesperadamente visitado por uma mulher muito mais nova do que ele, Dora/Virginie Legeay, sua actriz e assistente de realização já em "Os Anjos Exterminadores", que o faz empreender uma viagem pelo universo do estranho e do imaginário, paralelo ao comum e ao livro que ele próprio está a escrever.   
                                              
         Percorrendo o mundo dos mortos e as teorias sobre a reencarnação, mas também com referências à Bíblia e à psicanálise, e a alusão de Michel a um amigo operário que se matou após o Maio de 68, com uma grande sobriedade e elegância formal o filme leva-nos para uma vida normal em comum entre os dois, interrompida por ela, mas que, quando retomada, na relação mestre-discípula, pai-filha que se estabelece, o vai levar à conclusão de lhe querer deixar os seus bens quando se der a sua previsível morte. Comum e banal, dir-se-ia, não fora a distinção com que o cineasta suporta o seu papel, contracenando com concentração e brio com a desenvoltura de Virginie Legeay.
          Após se ter desenvolvido como um filme entre um par inesperado devido às circunstâncias e sobretudo à diferença de idades, depois de múltiplas visões e alucinações "A Rapariga de Parte Nenhuma" vai logicamente acabar com a aparição da morte e do seu executor, visíveis apenas para os espectadores como os anjos o eram já no filme que os tinha no título. De certa maneira, os acontecimentos extraordinários que Dora trouxera consigo preparam o caminho para uma morte ordinária de Michel.   
                      "La Fille de nulle part", un film français de et avec Jean-Claude Brisseau.
      Sobre aparições, desaparições e outros mistérios, com alusões directas e muito interessantes a Victor Hugo ("Os Miseráveis") e Van Gogh ("o poder da criação"), o recurso muito apropriado à música de Mahler e o uso insistente do diálogo, este é um filme melancólico e triste, mas feliz, que traz de regresso ao nosso convívio um grande cineasta, desassombrado e audacioso, à altura de si mesmo e do melhor que dele se poderia esperar. Jogando com vários fantasmas que o cinema tem trabalhado e assumindo referências do próprio cinema (Hitchcock vem aqui muito a calhar e é mesmo referido no encontro de Michel com a antiga aluna), Jean-Claude Brisseau lida consigo próprio, a sua idade e a ideia da sua própria morte, que prepara e encena, de forma natural, sem a auto-complacência que se poderia recear, antes com auto-ironia e lucidez que paradoxalmente criam distância.
            Filmado no seu próprio apartamento com uma equipa que conhece bem, "A Rapariga de Parte Nenhuma" mostra a sua ambição na intransigente exigência pessoal que caracteriza o cineasta e na perfeição cinematográfica atingida com simplicidade artesanal, o que lhe fica muito bem ao lidar em termos realistas com o extraordinário e, especialmente, na gravidade e na leveza do gesto.

sábado, 20 de abril de 2013

Para doer

     Sem ter tido tempo para ver em 3D "A Gruta dos Sonhos Perdidos"/"Cave of Forgotten Dreams", de Werner Herzog (2010),  pude assistir ao seu filme "Dead Row" (2012) durante o Indie Lisboa 2013, que está a decorrer neste momento. É um filme que vem precedido da fama de olhar sem contemplações para a pena de morte nos Estados Unidos, e, de facto, sem qualquer transigência o cineasta consegue apresentar-nos casos separados de prisioneiros que aguardam a marcação da execução da pena capital. Sem transigência sobre o assunto e sem transigência com o seu próprio ponto de vista a esse respeito, anunciado desde o início de cada uma das quatro partes em que o filme, também apresentado como mini-série, se divide.   
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      Vindo do tempo do "cinema novo" alemão dos anos 60, Werner Herzog, que adquiriu notoriedade com "Aguirre, o Aventureiro"/"Aguirre, der Zorn Gottes" (1972), "O Enigma de Kaspar Hauser"/"Jeder für sich und Gott gegen allen" (1974), "Coração de Gelo"/"Herz aus Glas" (1976), "A Canção de Bruno S."/"Stroszek" (1977), "Nosferatu, o Fantasma da Noite"/"Nosferatu: Phantom der Nacht", que revisita o mítico filme mudo de Friedrich W. Murnau (1922), "Woyzeck, o Soldado Atraiçoado"/"Woyzeck" (ambos de 1979) e "Fitzcarraldo" (1982), tem a fama de não recuar perante as questões difíceis, o que aqui mais uma vez acontece. Todos sabemos que não há sistemas perfeitos, nomeadamente sistemas judiciais perfeitos, enquanto quem os cria, com eles vive e os encarna forem seres humanos. É mesmo assim, e ainda bem. Agora que um sistema se preste a dar a um estranho, mesmo se muito bem credenciado, todos os esclarecimentos que lhe são pedidos sobre casos concretos, como aqui acontece com o sistema penal norte-americano, é prova cabal de abertura e de transparência, já demonstradas noutras ocasiões, por exemplo com os documentários de Frederick Wiseman, que terão mesmo sido pioneiros na abertura e exploração de espaços muito importantes para o cinema.                    
       E efectivamente Werner Herzog não é um cineasta qualquer. É alguém capaz de conduzir conversas sem atropelar os interlocutores com as suas convicções pessoais, interlocutores neste caso todos eles condenados à pena de morte, que aguardam se cumpra numa prisão de máxima segurança, e capaz de nos facultar o acesso a casos muito diversificados, da culpa assumida à culpa rejeitada, passando por casos indecisos, ouvindo sempre outros envolvidos, nomeadamente na investigação policial ou na discussão judicial de cada caso, e dando mesmo lugar à apresentação de argumentos favoráveis à pena de morte. "Dead Row" não é, pois, um libelo declarado contra a pena de morte, antes prefere assumir um ponto de vista participante para inquirir das razões que a ela levaram e dos sentimentos dos condenados para, a partir daí, construir o seu próprio discurso fílmico.
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         Por isso, começa por pôr o espectador a pensar na pena de morte como questão e continua mostrando-lhe vários casos, incluindo de possível erro judiciário, o que é, efectivamente, um dos argumentos mais fortes contra a pena de morte. Mas para isso ele nunca parte de preconceitos, antes prefere ouvir os diversos intervenientes em cada caso e deixar ao espectador o encargo de formular o seu próprio juízo. Poderá sempre dizer-se que escolheu os casos a tratar neste filme, e sem dúvida que os escolheu, o que se tornava necessário para a definição de um ponto de vista, o seu, como lhe competia. Contudo, nas conversas mantém-se circunspecto, sem tentar conduzir aqueles com quem fala para terrenos escorregadios, para os quais, aliás, eles, amadurecidos por longos anos de prisão e pela perspectiva que têm pela frente, não se deixariam facilmente levar. Mas também não evita as questões mais difíceis, como lhe compete e a sua posição pessoal exige.               
     O sistema consente ser posto em causa, não tem qualquer dúvida em mostrar os seus corredores e labirintos numa prisão de máxima segurança, nem impede os condenados à morte de falarem livremente. Esta é a América que eu admiro e respeito, mostrada desassombradamente num filme que põe em causa as suas instituições e desvenda os seus mais questionáveis aspectos sem qualquer problema, do que sai obviamente prestigiada, apesar disso e por causa disso. Uma América que se debate hoje em dia com problemas internos e externos gravíssimos, de que a pena de morte é apenas um, designadamente problemas relacionados com a violência, de que a pena de morte é apenas uma face. Problemas que, estou certo, saberá resolver, aprendendo com as próprias fragilidades do sistema, nomeadamente com a crueldade e perversidade da violência institucionalizada do Estado no caso da pena de morte.
                          
        Na sua excelente construção documental, na sua inteligência e no seu desassombro, "Dead Row" pode ser usado como argumento contra os estados que, nos Estados Unidos, ainda têm no seu sistema jurídico a pena capital. Mas ainda não pude ver "Into the Abyss", também de Werner Herzog (2011), sobre o mesmo assunto, e que virá demonstrar e corroborar o interesse que este justificadamente lhe tem merecido nos últimos anos. O cineasta, que se voltou recentemente para o documentário de forma mais sistemática sem abandonar a ficção, é sem dúvida um dos nomes maiores do cinema contemporâneo, que aqui como tal saúdo e aplaudo pelo mérito especial de "Dead Row" - eu que também sou contra a pena de morte.
     Espero ainda poder ver a sua experiência com o 3D, que poderá, por sua vez, ser um argumento de peso a favor deste. Mas disso só poderei mesmo falar depois de ver, embora o simples facto de Herzog ter feito um filme com ele dê conta de uma vivacidade e abertura de espírito notáveis.

Um grande artista

        No seu melhor, o cinema não tem que seguir o que, ou limitar-se ao que já foi feito nas outras artes, nomeadamente na literatura, mesmo quando nelas se inspira. De facto, para ser uma arte autêntica e viva, o cinema deve avançar com iniciativas próprias, com propostas próprias e leituras próprias da herança que recebeu das outras artes, com as quais continua a relacionar-se - uma herança com a qual não tem que se conformar servilmente e uma relação em que não deve permanecer meramente passivo. Não li o livro mas vi o filme, ou não vi o livro mas li o filme são lugares-comuns que exprimem um certo desconforto intelectual perante aquilo que verdadeiramente interessa: ler os livros e ver os filmes, ver os filmes para ler os livros e aos filmes regressar, ler os livros e ver os filmes para aos livros regressar.
          Eu sei que os tempos vão de feição para simplificações como essas, e piores do que elas, mas um cineasta como Alexander Sokurov está aí para nos seduzir e encantar com as suas ideias pessoais e com elas nos libertar de ideias feitas. De facto, um grande cineasta, como ele sem dúvida é, existe para nos desinquietar, não para nos confirmar em ideias rasteiras que, instaladas na sua mediocridade, fazem livre curso no nosso tempo. No culminar de uma tetralogia sobre o poder, cujos filmes anteriores eram sobre personagens históricas do Século XX, em "Fausto"/"Faust" (2011) ele reconduz-nos à personagem mítica da cultura alemã na sua busca persistente do sentido da vida.
                   
        A partir de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), nome fundamental do romantismo alemão cujo poema trágico "Fausto" data de 1808 e 1832 (a primeira e a segunda parte, respectivamente), embora sem fazer tábua-rasa do que entretanto sobre ele foi feito o mais importante cineasta russo da actualidade faz neste seu filme alemão uma releitura crítica e criativa a partir da própria cultura alemã, que não desvaloriza embora também não respeite, para melhor a respeitar. Eu explico-me.
          O "Fausto" de Goethe é uma obra exemplar de busca do que se não conhece e de procura do que se não tem, preocupação de uma época inquieta que procurava em épocas anteriores, mas também contra elas, a resposta para as suas inquietações e perplexidades. O "Fausto" de Sokurov situa-se numa época diferente que, sem esquecer aquela, sabe que, como escrevia Fernando Pessoa, "O único sentido íntimo das cousas/É elas não terem sentido íntimo nenhum." (Alberto Caeiro) - Fernando Pessoa que também se deixou fascinar pelo "Fausto": "O segrêdo da Busca é que não se acha." ("Primeiro Fausto - Primeiro Tema - O Mistério do Mundo"). A partir daí, que é onde estamos todos desde então, todas as variações de aproximação e abordagem são possíveis e permitidas, o que o cineasta usa com inteligência e distanciamento, sem fazer do seu espectador ignorante nem estúpido.
                    Venezia 2011: la recensione di Faust di Aleksandr Sokurov
         Em "Fausto" de Alexander Sokurov entra-se a partir de cima, i. e., desce-se para uma autópsia que o protagonista está a fazer na tentativa de no cadáver encontrar a alma, e sai-se a subir, para acompanhar a tentativa dele de responder ao apelo da voz de Marguerite, que lhe vem do alto, depois de ter visto o poço de água escaldante, de ter recusado as novas propostas de Mauricius Müller, a sua alma danada, e de ter tentado dar cabo dele. Entre esses dois momentos seguimos Fausto primeiro no interior de um espaço fechado, uma aldeia, onde ele, na sua passividade inquieta, deambula entre as gentes, de um pai médico que pratica autópsias à família da jovem mulher que ama, Marguerite, cujo irmão, Valentin, mata. Sozinho ou acompanhado pelo seu assistente, Wagner, recorrentemente assediado por um mefistofélico Mauricius.
           Que quer, que procura ele? Aparentemente não lhe interessa um elixir da juventude, já que é novo, nem um poder, para além do que lhe permita chegar a Marguerite, para o que transige, já com o filme muito adiantado, em assinar com o seu próprio sangue o contrato que para tal lhe é proposto.
                  
         Tudo o diferencia, pois, do "Fausto" de Friedrich W. Murnau (1926), mais próximo da sua fonte literária no seu expressionismo, pois o Fausto de Sokurov pode queixar-se apenas de enfado, de tédio. De resto, parece ter tudo de que precisa, a própria morte de Valentin parece mais o fruto de um acaso fastidioso. E é depois do enterro deste que saímos de forma mais continuada para os exteriores, com referências fantásticas (o homunculus) e alusões alquímicas, até ao momento em que, em resposta ao contrato assinado, o protagonista cai com a sua amada no lago, no único momento com cor normal e luz natural de todo o filme.          
           Sendo a tetralogia que este filme encerra sobre o poder, e o poder no Século XX, "Fausto" de Sokurov situar-se-á temporalmente antes dos outros três filmes, pelo que vem conferir um carácter circular à própria tetralogia. Depois do noivado branco, o mergulho no lago, orgásmico, com Marguerite, e tudo parece consumado na primeira morte do protagonista. Fausto rasga o contrato e, revestindo primeiro armadura, parte acompanhado pelo seu misterioso companheiro, depois de ter encontrado os mortos, nomeadamente o seu morto, Valentin, num rio que antecede o Hades.
                  
         Obviamente que o filme de Sokurov não se pretende um simples estudo psicológico, embora também possa ser visto como tal: do fastio, do tédio e da tentativa de dele sair. O lado romântico é forte e vence, no meio do negrume, do aglomerado, da confusão, numa personagem que de si própria pouco sai: para além de assistir, matar Valentin, possuir Marguerite. Pequena ambição? Talvez, mas mesmo assim ambição de paixão oitocentista, erguida contra o passado e o seu próprio tempo.      
      O "Fausto" de Alexander Sokurov é um filme superior, na linha dos anteriores filmes do cineasta e dos filmes desta tetralogia, "Moloch"/"Molokh" (1999), "Taurus"/"Telets" (2001) e "The Sun"/"Solntse" (2005), que encerra voltando a um tempo antes dos outros, porque nos diz que nada vale a pena porque tudo vale a pena, mesmo essa coisa tão simples e banal como uma mulher que se ama ou deseja. Servindo-se livremente do texto original, de que altera a localização de excertos e que acrescenta livremente, o cineasta faz uma leitura pessoal do mito que acaba por respeitar mesmo se subvertendo-o e actualizando-o, com frequente regresso ao texto de Goethe mas para o ler à sua maneira.
                     
          O que manifestamente mais interessa o cineasta é o tratamento formal, com um tratamento da cor experimental e assombroso, para o que se inspirou no "Tratado das Cores" do próprio Goethe, em que as cores num mesmo plano variam na superfície, nas superfícies dos objectos e dos seres, como se fossem pintadas - a direcção de fotografia é de Bruno Delbonnel. Como em "Mãe e Filho"/"Mat i syn"(1997) existem também distorções da imagem, na maior parte dos casos com a presença ou a proximidade de Mauricius, além do que a profundidade de campo é negada em vários momentos, o que acentua o facto de que neste filme de Sokurov interessa menos o espaço, tão importante no "Fausto" de Murnau que para ele Eric Rohmer chamou muito pertinentemente a atenção num estudo célebre (1), do que a própria superfície imagem. Mas este lado formal, muito importante e conseguido, não deve ser dissociado das variações introduzidas no mito, com alterações ao texto original, que é também acrescentado por um argumento do próprio Sokurov e Youri Arabov, com relevante participação de Marina Koreneva.
            Desse modo, longe do expressionismo do filme de Murnau, o "Fausto" de Alexander Sokurov pretende, de uma maneira não realista nem naturalista, descer até às trevas românticas para delas sair em branco, em luz, ascendendo depois ao encontro de quem interessa, lhe interessa e o chama. Possível a referência a Nietzsche, certa a referência a Lenz para aumentar a carga de arrebatamento a partir do retrato que dele fez Georg Büchner, o filme resolve-se sobre o "Fausto" de Goethe (e em parte, mas só em parte contra ele), porque é obra pessoal de um grande criador, de um grande cineasta que é também um grande artista. Justo e compreensível o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2011.
                
            Actualidade de Goethe e Nietzsche? Talvez, e nessa medida um convite para os revisitar, conhecer e conhecer a fundo até nas suas origens e consequências, para perceber o que aqui está em jogo. Remeto-vos, pois, directamente para o filme de Sokurov, um grande filme de um dos maiores cineastas contemporãneos, e para a edição portuguesa do "Fausto" de Goethe, com tradução de João Barrento, que agora vai ser reeditada. O que eu temo, e penso que devemos todos temer, é a ignorância, não o conhecimento, o que me leva a remeter-vos também para o anjo da história, o de Walter Benjamin mas especialmente, neste momento, o de Giorgio Agamben, embora ainda, e lamentavelmente, não traduzido em português: "Archéologie philosophique", in "Signatura rerum - Sur la méhode" (Paris, Vrin, 2008, pág. 93).
            Se o "Fausto" de Goethe tinha um lado intemporal, o de Sokurov também o tem. Como há mais de 50 anos escrevia Jean-Luc Godard, o cinema é uma arte como as outras, com os seus próprios grandes nomes comparáveis aos grandes nomes de cada uma das outras artes, literatura, música ou pintura, o que Gilles Deleuze veio enfaticamente demonstrar e confirmar. Ora Alexander Sokurov é um grande cineasta, dos maiores do nosso tempo, e o seu "Fausto" um enorme filme, inquieto e perturbador (2).

Notas
(1) Cf. Eric Rohmer, "L'organisation de l'espace dans le «Faust» de Murnau", Paris, Union Générale d'Edtions, 1977.
(2) A bibliografia sobre Sokurov é neste momento vasta e diversificada, e dela permito-me destacar "The Cinema of Alexander Sokurov", editado por Birgit Beumers e Nancy Condee, London-New York, I. B. Taurus, 2011. 

A vida é assim

         "Bestas do Sul Selvagem"/"Beasts of the Southern Wild", a primeira longa-metragem de Behn Zeitlin (2012), é um pequeno filme interessante e promissor que não chega a resolver-se em termos narrativos ou estéticos mas aponta um caminho, o que joga a seu favor. Partindo de uma situação promissora, o desaparecimento da mãe de uma criança, Hushpuppy/Quvenzne Wallis, quando uma tempestade se apresta para se abater sobre o local onde vive, Bathtub, situado na costa da Louisiana e isolado por uma barragem, no mítico Sul dos Estados Unidos, o filme afirma a sua originalidade por assumir expressamente, desde o início, o ponto de vista da criança, desamparada e progressivamente mais desesperada com a anunciada morte do pai, Wink/Dwight Henry, que, contudo, a tenta industriar no sentido de resistir, de não desesperar e seguir em frente, mesmo sem ele.
                     Bestas do Sul Selvagem
         A boa intenção é evidente, a referência às histórias americanas de iniciação, segundo o modelo de Mark Twain (Tom Sawyer e Huckleberry Finn), também, o que sempre adianta alguma coisa para quem estiver familiarizado com a história e a cultura, nomeadamente a literatura americana do Século XIX, mas o que torna este filme interessante e promissor também do ponto de vista formal é a desenvoltura com que o novo cineasta se socorre de figuras provadas da linguagem cinematográfica, como o grande-plano e o plano de pormenor, com grande a-propósito, integrando-as numa perspectiva de cinema do corpo que terá recebido de John Cassavetes, de que se diz admirador.
                     'Bestas do Sul Selvagem' o sublime segundo Zeitlin
         O que para mim faz o fascínio desta mitologia da cultura americana, uma nova mitologia em relação à europeia embora por ela eventualmente influenciada, é o espírito de resistência contra a adversidade desde cedo inculcado. Pessoalmente, sou menos sensível ao lado fantástico e fantasista, tipo "O Feiticeiro de Oz", que aprecio menos, do que a este lado que designarei primitivo americano que provém da literatura do Século XIX e de um espírito de aventura e de resistência, a que chamarei de iniciação desde tenra idade, que em "Bestas do Sul Selvagem" transparece de forma quase inocente, sem prejuízo do fantástico - os auroques.
        Além disso, o Sul dos Estados Unidos é a região selvagem e derrotada com dignidade (na Guerra Civil), que mantém e alimenta um espírito de rebelião e de estar para ficar, sem medo nem vergonha, o que os westerns de John Ford deram de forma muito feliz e fundadora. A mãe, mítica, desapareceu, o pai, persistente, subsiste no cumprimento do seu papel, embora vá desaparecer ele também, mas a criança é industriada num espírito de resistência com que faz a sua própria iniciação na vida, como se percorresse o rio Mississippi.
                     “Bestas do Sul Selvagem” (2012)_2             
         A vida é assim mesmo, uns nascem e crescem, outros partem e morrem, e é na convivência natural, mas também aprendida das leis da vida que todos, americanos ou não, nos formamos e conformamos, pois outra coisa não devemos esperar. Aprender na adversidade e com a adversidade, em perda e sempre resistindo, é a lição simples e elementar deste pequeno filme agradável e promissor com que um novo cineasta, Bhen Zeitlin, se inicia e promete. O que, convenhamos, já não é nada mau nos tempos que correm, no prosseguimento da promessa do mais autêntico e melhor do sonho americano.

domingo, 7 de abril de 2013

Muito importante

         Desta vez, para "Terra Prometida"/"Promised Land" (2012) Gus Van Sant não teve a iniciativa do filme, que lhe foi proposto pelo actor Matt Damon, co-autor do argumento com John Krasinski, a partir de uma história de um escritor actualmente na moda, Dave Eggers. Desse modo, o cineasta teve o mérito de acolher e aceitar realizar um bom projecto, para dele fazer um filme que, dirigido por ele, o promove instantaneamente ao estatuto de clássico.
                    Promised Land, starring John Krasinski
      De facto, tudo na narrativa de "Terra Prometida" aponta para um conflito americano fundamental, sobre a terra, o seu uso e a sua eventual venda a quem tem interesse e dinheiro para a comprar. Colocando-se desde o início do lado do representante da empresa interessada na compra, Steve Butler/Matt Damon, a cujo flash-back corresponde a quase totalidade do filme, salvo o epílogo, Gus Van Sant dedica-se ao jogo perigoso mas muito bem sucedido de nos dar o ponto de vista mal intencionado na figura de um inocente bem intencionado, que só perto do final compreende de que modo foi envolvido no jogo dos seus mandantes.
        A questão que se colocava, que lhe era colocada nomeadamente pelo Professor Frank Yates/Hal Hollbrook, tinha que ver com as possíveis consequências da venda das terras daquela pequena comunidade rural para as próprias terras, e essa perspectiva é aproveitada pelo inesperado ambientalista, Dustin Noble/John Krasinski, de modo a que Steve passe a ser generalizadamente hostilizado, e até agredido, salvo por aqueles que a sua comparsa, Sue Thomason/Frances McDormand (excelente como sempre), capta para o lado da empresa que representam.
                    Promised Land
          O que aqui está em causa de maneira muito clara é que todos somos manipulados por aqueles que dominam, que detêm o poder, nomeadamente, o dinheiro, mas que agindo conscientemente, com base na verdade e na identidade, todos saberemos descobrir o que está em jogo e de que lado está a razão - e aqui Steve somos nós e nós somos Steve. Com a grande simplicidade da evidência, de mostrar, desvelar o que se esconde por trás de palavreado dito e escrito, de antagonismos como tal exibidos, "Terra Prometida" assume a dimensão e o sopro dos clássicos do cinema americano, um lugar a que Van Sant ainda não tinha chegado e em que talvez nem sequer fosse esperado (ver "A interiorização da culpa", 28 de Janeiro de 2012, e "Morrer novo", 27 de Agosto de 2012), mas a que aqui chega por si próprio, conservando para tal a candura dos grandes nomes do cinema clássico americano.
           Steve, típico herói americano que sempre insistira que ele não era o mau daquela história, depois de o ter sido sem o saber consegue colocar-se do lado da razão e da justiça contra o poder e os interesses dos seus próprios mandantes porque soube manter intacta a memória das coisas e dos seres simples da sua própria infância, vivida num ambiente semelhante. Tudo se resolve, finalmente, do lado da clareza das coisas, quando esta é descoberta e se impõe como evidência, quando advém uma verdade que estava armadilhadamente escondida: o jogo duplo que a própria empresa, sem que Steve soubesse, fazia.
                    Matt Damon in Promised Land
         "Terra Prometida" é, pois, um filme muito bom narrativamente, muito bem dominado por uma realização simples, clássica, que dá todo o relevo ao que narra e aos actores, guardando para si própria a invisibilidade dos clássicos. Penso que, na actualidade, melhor do que isto não é possível no cinema americano, que aqui reencontra o seu sopro original, primitivo, próprio. Este é um filme que se coloca do lado do conhecimento, da consciência e da identidade, não esquecendo as grandes questões com que a América se confronta, e em que se debate na actualidade - a crise, a guerra -, antes integrando-as perfeitamente na sua própria narrativa. O breve discurso final de Steve faz o resto, como lhe compete, através do uso da palavra. Muito bom e muito recomendável. E atenção aos actores americanos, porque eles não são nada estúpidos. Muito pelo contrário.

Emoção contida

         Terence Davies é um realizador de cinema inglês com uma obra estimável embora escassa, de que nos chegou o seu último filme, "O Profundo Mar Azul"/"The Deep Blue Sea" (2011), baseado na peça homónima de Terence Rattigan, que já fora objecto de adaptação para o cinema nos anos 50 do Século XX - "Profundo Como o Mar", de Anatole Litvak (1955), com argumento do próprio dramaturgo. Agora com argumento dele próprio, Terence Davies recupera neste filme uma época, por volta de 1950, como se diz no seu início, e um tema, uma paixão extra-conjugal, de profundo significado em Inglaterra.  
                     
          O melodrama foi um género em que o cinema inglês se notabilizou antes do aparecimento do free cinema, na segunda metade dos anos 50, e em que aquele que foi talvez o nome mais famoso do cinema inglês de meados do Século XX, David Lean, se tornou mais digno de apreço. Embora reconheça os seus méritos e as razões do seu sucesso no cinema, devo dizer desde já que o melodrama não é um género cinematográfico que goze da minha preferência. Teve os seus mestres, os seus méritos e os seus fãs, mas, salvo excepções ("Duplo Amor"/"Two Lovers", de James Gray, 2008), não me conto entre estes.
       Devo, contudo, reconhecer que Terence Davies se tornou um especialista destacado do melodrama, com grande capacidade de adaptação a diferentes contextos narrativos e de época, e que por isso mesmo ele consegue fazer de "O Profundo Mar Azul" um filme muito interessante por razões estritamente fílmicas - portanto, pelas melhores razões. Utilizando os termos textuais do próprio filme, este divide-se entre as sequências com música e as sequências sem música, e esta divisão aparentemente muito simples valoriza os momentos puramente dramáticos de que a música está ausente e em que, portanto, o cineasta tira o melhor partido dos ruídos e sobretudo dos silêncios, ao mesmo tempo que deixa aos actores todo o encargo de suportarem o filme.
                     
       
        Os actores são, como geralmente no cinema inglês, muito bons, com destaque para Rachel Weitz, Tom Hiddleston, Ann Mitchell e Simon Russell Beale, a realização é sóbria e segura, com bom aproveitamento dos espaços e inteligente utilização do fora de campo, a cor saturada puxa para o decorativo de época, como costuma acontecer nos filmes de Davies e é apropriado no melodrama, o que tudo proporciona o ambiente propício para aquele drama clássico, sem ser trágico, como diz a protagonista ao marido em certo momento. Há um lado de prestígio do cinema britânico em que o filme se move, mas de maneira criativa e inteligente, fazendo sobressair por meios cinematográficos simples mas bem utilizados o que ali é mais importante. Mesmo quem não é fã do melodrama, como eu não sou, não deixará de reconhecer neste filme uma intervenção criativa qualificada a nível de mise en scène, com um cunho claramente pessoal.
                     



             Terence Davies já fez melhor? A questão nem sequer é essa - por exemplo, o seu filme anterior, o documentário "Of Time and the City" (2008), sobre a sua Liverpool natal, é excelente -, já que este "O Profundo Mar Azul" é um filme muito bom, inteligente e seguro, que faz perfeitamente sentido na sua obra, que acrescenta num tom de depuração fílmica que a ele, como cineasta, lhe fica muito bem. O Concerto para Violino Op. 14 de Samuel Barber está muito apropriadamente utilizado e o ambiente do pós-guerra em Londres muito bem recriado e evocado.
         Tom Hiddleston como Freddie Page e especialmente Rachel Weitz, sempre muito bem dirigida e filmada na criação da complexidade interior de Hester Collyer, a personagem central, conferem um carácter de época definido e consistente a este filme, tornando-o muito apreciável, intemporal mesmo pelos termos cinematográficos em que é tratado na sua radicação espacio-temporal precisa. Dizendo isto digo tudo do meu apreço por este último trabalho de Terence Davies.