“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 29 de abril de 2012

Amores perfeitos


         Desde o título, “Tabu”, que Miguel Gomes não esconde ao que vem no seu último filme (2011). De facto, com esse título não é preciso andar com uma candeia à procura na história do cinema do que aqui pode estar em causa, dado ser esse também o título do último e mítico filme de Friedrich W. Murnau, com participação de Robert Flaherty (1931). Contudo, o jovem cineasta português surpreende completamente com as voltas que faz dar aos primitivos amores perfeitos do seu filme.
          Contra essa aparente evidência mas sem a negar, o título refere-se a um monte próximo do local onde se situa a segunda parte do filme e “Tabu” de Miguel Gomes é antes de mais um filme surpreendente por ser a preto e branco e assumir os lugares comuns de uma actualidade bem comportada na sua primeira parte, “Paraíso Perdido”, passada nos nossos dias em Lisboa, para na segunda, “Paraíso”, investir deliberadamente uma realidade de um outro tempo, o passado, num outro espaço, a África colonial portuguesa. Um golpe de suprema sabedoria está nisto envolvido, pois é a actualidade de personagens hoje idosas que surge como datada e baça, enquanto o passado delas contém em si toda a carga de fascínio romântico.
                 TABU, de Miguel Gomes
           Assumindo sem complexos ou ambiguidades o seu programa narrativo, Miguel Gomes não é, contudo, ingénuo, pois mostra saber que os amores perfeitos são os amores perdidos, como os românticos, que não estão em moda, sabiam. Para tornar o seu filme perfeito, o cineasta não guarda distâncias em relação às suas personagens na actualidade, salvo na cena da selva no shopping, que introduz a selva real mas tratada como se fosse de artifício, em que as vem a guardar relativamente ao passado, com a perturbante mas encantatória voz-off de Ventura, que no entanto surge depois da morte da Aurora, e com a ausência dos diálogos directos das personagens recordadas do paraíso. Mas não apenas isso. De facto, entre Ventura e Aurora no passado africano ele não interpõe apenas o marido dela, e pai do seu filho, como também o amigo dele, Mário, de tal forma que nem sequer da saída airosa de o pai da criança (que nunca vemos) não ser o marido da mãe ele aqui se serve.
          Romântico contra os lugares comuns do romantismo, “Tabu” vai ao encontro da raiz primitiva e selvagem do filme de que (eventualmente) parte para lhe subverter os dados de partida, pois os protagonistas não são indígenas mas portugueses brancos às voltas uns com os outros no começo do fim do império colonial. E ao fazê-lo o cineasta não assume uma perspectiva de saudosismo colonial, antes procura encontrar, e encontra o estranho perfume do passado, que identifica na sua origem com desassombro, mantendo sempre, porém, a distância do preto e branco, da voz-off narrativa e do ponto de vista (salvo quando está em causa o par romântico do passado), o que são todos eles processos originais e estritamente cinematográficos de convocar a distância, que no entanto não anula, antes aumenta o fascínio da história de amor que é narrada como recordação – e que é representada como mitologia primordial no presente, primeiro no prólogo do filme e depois na morte de Aurora, na figura comum da história evocada como filme para Pilar e da história de Aurora com Ventura: o crocodilo. E repare-se que desde o início Aurora conta a Pilar um sonho, aquele que a terá levado a jogar no casino, e em toda a primeira parte nos soturnos interiores de Aurora e Pilar em que é negada a profundidade de campo, o que completa a proximidade da câmara em relação às personagens (e é reforçado pelo nevoeiro sobre Lisboa) e na segunda parte, até porque maioritariamente passada em exteriores, já não se verifica.
        Deste modo, funcionando em níveis diferentes, “Tabu” faz esses diferentes níveis rebaterem-se uns sobre os outros, o presente sobre o passado, o passado sobre o presente, nos tempos diferentes em que se desenrola, de tal modo que o passado conserva o seu fascínio e o seu mistério para quem o viveu e para uma eventualmente desatenta embora possivelmente romântica Pilar, de quem a serva negra de Aurora, Santa, faz com que sejam guardadas todas as distâncias, ela que é a possível testemunha sobrevivente do que outros viveram no passado.
                       Filme português ganha prêmio de crítica no Festival de Berlim
            Mas se o filme trata muito bem a narrativa não se fica por aí (o que não seria pouco), pois consegue captar o ar dos tempos, uma actualidade bem comportada e um passado de má fama, com recurso a meios exclusivamente fílmicos, que permitem transmitir e compreender de forma clara épocas, personagens e contextos diferentes. Assim, do passado distante, e em relação ao qual são guardadas todas as distâncias, subsiste a memória de um infeliz amor perfeito, enquanto do presente nem isso, a memória, subsistirá, a não ser para os espectadores.
           Mais ainda: a distância assume mesmo um tom de caricatura no Paraíso, o que faz com que mesmo em relação a um possível romantismo sejam guardadas distâncias, em que até quem morre (é morto por Aurora no fim) não é Ventura mas o seu amigo, Mário, e quem se mata não tem que ver com a história dos dois. Ora dessa maneira o cineasta evita a possível tentação do sublime e em vez dele dá ao filme um inequívoco e superior tom de frescura e ousadia, sem ocultar a possível contaminação de ingénuos mas sinceros amores passados às personagens da actualidade, Pilar e o seu apaixonado, maduros, muito responsáveis e sensaborões.
            E repare-se ainda que do próprio passado evocado são transformados os comportamentos das personagens, que são parcialmente actualizados sobre a ausência de som, salvo, rarefeito, o ambiente, o que vai tornar o filme quase abstracto na sua segunda parte, uma abstracção viva de amores vivos mas fugazes, que como tudo passaram na voragem do tempo. Tudo foi muito importante, fundamental mesmo no momento em que aconteceu e para quem o viveu, mas mesmo então foi breve e acabou. Sem sequelas ou vestígios, para além de uma correspondência (a de Aurora lida pela voz-off dela), de que Ventura terá destruído a última carta recebida, e da memória que, essa, não pode ser rasurada, em especial a memória do tempo primitivo e selvagem da juventude, o que o filme constrói e restitui como tal de forma superior.
                      
            “Tabu” de Miguel Gomes é, então, um filme de amor? É isso mesmo, um perfeito filme de amor sobre amores perfeitos. O resto é, ou seria, literatura, que há sempre quem escreva. Isto é cinema do melhor, em que o preto e branco, a morte de Aurora e a voz-off de Ventura (e de Aurora) são as cinzas de tais amores. Até o crocodilo que os aproximou desaparecerá com a memória deles. Ficou o filme, cristal perfeito imensamente livre e jubiloso, para muitas ou poucas memórias.

Estranho ou nem por isso


         Do realizador de "Fome"/“Hunger” (2008), filme que impressionara pela sua temática e pelo arrojo do seu tratamento cru, Steve McQueen, chegou-nos agora a segunda longa-metragem, “Vergonha”/”Shame” (2011), um filme de ficção em que o risco formal não é menor embora se afigure mais equilibrado por não explorar dramáticos factos reais.
         Sem o pretexto da realidade, mais livre por isso para dar asas a uma criatividade formal sem constrangimentos, o cineasta mostra-se aqui mais convincente, pois a um equivalente nível de crueza corresponde uma narrativa de traços realistas que, contudo, o tratamento visual e sonoro permite transcender, elevando o filme a uma dimensão superior. De facto, ao tratar aquilo que poderá ser considerado a vida comum do homem comum mas bem instalado na vida, com um bom emprego numa grande cidade, no caso Nova Iorque, na actualidade, Steve McQueen consegue dar conta da insatisfação e da satisfação comum numa grande metrópole moderna, sem entrar em grandes explicações nem utilizar os circunlóquios comuns do melodrama para além do necessário, antes arriscando em episódios significativos da vivência sexual do protagonista, sem enfeitar o seu aspecto cru e sem banalizar o seu eventual atractivo, servindo-se do que descreve e narra até à exaustão para criar uma ideia de banalidade que lhe permite chegar ao que lhe interessa, que é a solidão existencial do protagonista.
        O protagonista, Brandon/Michael Fassbender, parece viver feliz e satisfeito a sua vida, feita de múltiplas e variadas relações, até que a sua irmã, Sissy/Carey Mulligan, lhe entra pela casa dentro e distrai a atenção com os seus próprios problemas pessoais, que desde cedo envolvem os conhecimentos pessoais dele.
                         
           Sem utilizar subterfúgios nem procurar desculpabilizações, o cineasta consegue, com o poderoso contributo de Michael Fassbender, mostrar um nível de satisfação primário, essencial, sobre o qual acaba por fazer cair, sem explicações escusadas que ficarão para o espectador, o sentimento que dá o título ao filme, o que não deixa de surpreender. Suponho que muitos, induzidos por um cinema espectacular e uma vida estetizada, interrogar-se-ão: “mas de que se queixa ele, se tem tudo o que quer?” Ora o filme acerta em cheio ao chamar conclusivamente a atenção para um sentimento que talvez hoje em dia não seja muito comum, numa sociedade que parece ter atingido, por um ou outro caminho, um grau de satisfação sem precedentes (1). Mas ao jogar com o excesso, no caso de satisfação gratificante, o cineasta sabe mostrar como no seio da aparência mais satisfatória se pode instalar um sentimento de grande desconforto perante os outros e perante si próprio, no que não encontrará grandes precedentes recentes no cinema – para os encontrar, seria preciso recuar até aos filmes de Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni durante os anos 60 -, apenas na literatura, eventualmente.
          Formalmente, o filme equilibra-se num tratamento escuro da fotografia a cores, que dá conta dum certo turvamento das personagens, da sociedade e do próprio protagonista, o que aponta para um lado crepuscular da experiência e da própria sociedade, sem para isso necessitar de assumir um ponto de vista moralizante ou moralizador, antes deixando os comportamentos e as imagens em que surgem falarem por si próprios, ao mostrarem que um percurso interior acompanha Brandon. Destacam-se no filme as cenas no metropolitano e o diálogo entre Brandon e Sissy, longo e em plano fixo, com o ecrã de televisão em que estão a passar desenhos animados ao fundo, entre eles, mas sem profundidade da campo. O progressivo anular da profundidade de campo, sobretudo em interiores, aliado ao tom escuro da imagem como que vai encerrar o protagonista no interior da sua experiência e de si próprio, o que o final do filme agrava. Só por si, estes elementos de encenação fílmica chamam a atenção do espectador, pois todos estamos habituados, pela experiência e por todos os media, a qualquer tipo de comportamento, inclusivamente sexual, sem que sentimentos mais complexos pareçam surgir. Com a naturalidade com que mostra os comportamentos o cineasta faz deles emergir, por meios fílmicos, uma dimensão interior outra, de segundo grau, que embora possa surgir como inesperada se apresenta como justificada no contexto respectivo, conferindo ao protagonista um elemento suplementar e indispensável de cunho humano, que permite superar o mero hedonismo em que a sociedade em que vivemos parece comprazer-se e a que parece limitar-se.
                    Review: Steve McQueen's 'Shame' is simply a spectacular work of art
         Ora ao assumir explicitamente e tornar credível essa dimensão outra, ainda para mais numa personagem masculina, o cineasta vai direito à solidão e ao alheamento da sociedade contemporânea de uma forma que todos podemos ainda entender, sem contemplações nem complacência, antes no uso de uma lucidês essencial que encontra expressão em termos narrativos e fílmicos que se completam. Que isto apareça num filme formalmente de um grande equilíbrio, que se demora com o protagonista, que acompanha permanentemente em diferentes cenários em cenas superiormente filmadas sempre com a cidade presente como quadro próximo ou distante, como uma espécie de gratificação final do lado da insatisfação, surge, pois, como uma agradável surpresa, em que podemos rever o lado ainda humano da experiência contemporânea – um pouco à semelhança de “Hunger” mas sem o seu lado realista e agónico, já que agora os limiares ultrapassados são outros, puramente interiores.
         Aqui o que é mesmo importante é compreender o aparecimento do sentimento de vergonha e a sua motivação, o que é transmitido por uma interpretação e uma realização notáveis. Em “Shame” volta a afirmar-se uma sensibilidade artística extra-cinematográfica, como a que Steve McQueen, também artista plástico e fotógrafo, tem, o que não surpreende e só beneficia o filme.

Nota
(1) Sobre a vergonha, ver João Barrento, in "O mundo está cheio de deuses - Crise e crítica do contemporâneo", Assírio & Alvim, Lisboa, 2011, páginas 20-21.

domingo, 22 de abril de 2012

Crónica poética do quotidiano


         Se o cinema foi e continua a ser uma arte maior é também por causa de Aki Kaurismäki, cineasta finlandês de uma inspiração superior que se tem afirmado como um cronista do quotidiano do seu país, o que agora alargou com sucesso à França contemporânea. De facto, “Le Havre” (2011) é um filme notável, na linha dos seus filmes anteriores mas situado naquela cidade francesa, na actualidade, a partir de uma dinâmica multicultural, multiracial mas sempre extremamente humana e quotidiana.               
       Situado entre gente comum e situando-se com as melhores intenções não apenas em superfície mas em profundidade, estruturalmente, o filme lida com franceses comuns sujeitos aos problemas comuns da França e da Europa na actualidade, sem outro heroísmo que não seja o do quotidiano – lição maior do cinema do pós-guerra. Há um casal comum, um jovem africano em fuga, em busca de melhor destino, uma comunidade de proximidade em que toda a gente se conhece, uma mulher gravemente doente. É a vida da gente comum numa cidade portuária.
        
          Só que ao criá-lo em filme Aki Kaurismäki introduz a verdadeira, a original magia do cinema, e transfigura os pequenos acontecimentos do quotidiano em momentos especiais, que ficam a pairar diante de nós, espectadores, como a possível essência da vida, pela qual todos passámos sem nos apercebermos disso. Ora é ao tornar especial, especialmente notável o banal quotidiano que o cineasta finlandês, na esteira dos seus filmes anteriores torna este “Le Havre” um filme notável, superior, que se degusta com espanto enquanto a ele se assiste, levados de curiosidade em surpresa, de angústia em desespero, por fim em satisfação inesperada. E como aquele Marcel Marx/André Wilms, aquela Arletty/Kati Outinen, aquele pequeno Idrissa/Blondin Miguel, mesmo aquele Monet/Jean-Pierre Darroussin são eu, tu e todos nós nos seus pequenos e grandes gestos, no seu quotidiano aflito em que porém uns aos outros se compreendem e ajudam – como devia acontecer, e se calhar não acontece sempre na vida real.
           É mesmo por isso que Aki Kaurismaki, detentor de um segredo comezinho mas universal, se reafirma aqui como o grande cineasta da gente comum dos nossos dias, sem outras ilusões para além daquelas que ele para as suas personagens, como cada um de nós para si próprio pode criar. Não há, como não deve haver, ilusão que se deva alimentar. Não há, como não deve haver, sonho que não se deva, apesar de tudo e mesmo se improvável manter e alimentar. O que é preciso é entender a vida como a única oportunidade que temos de sentir, criar, amar e recriar no tempo, mesmo em desilusão, mesmo em perda, porque é aquilo de que dispomos e porque algures, para alguém em algum momento tudo virá a fazer sentido - aquele que tiver tido para nós.
                
          Pessoalmente, sou particularmente sensível ao trabalho de Aki Kaurismäki com os actores, em geral, com Kati Outinen, que está para ele como Liv Ullman esteve para Ingmar Bergman, em especial – há coisas, pontos fílmicos e humanos que nos filmes dele só são possíveis com ela, beleza estranha, doce, diáfana.
         Por trás do quotidiano deste finlandês muito especial está, contudo, a ideia de uma responsabilidade, que é comum, partilhada por ser pessoal, que torna especialmente importantes os seus filmes e as suas personagens, que apresentam de filme para filme uma coerência notável, ao sabor da sua própria inspiração, responsabilidade essa que vai dar a cada pequeno gesto o seu grande sentido.
           Além disso, muito kaurismakiano embora, o filme tem apontamentos que são piscar de olhos ao cinema francês: Pierre Étaix e Jean-Pierre Léaud em pequenos papéis, o primeiro na pele de um médico que se chama Becker (como o grande Jacques), o segundo como o denunciante; a localização do filme no Havre, cidade que recorda “O Atalante”/”L’Atalante”, o mítico e fundamentel derradeiro filme do jovem Jean Vigo (1934), cujo espírito (e até a letra) atravessa este filme – uma lição que o cinema francês parece ter esquecido.
                          
         Mas o que em última análise faz a grandeza de “Le Havre” como filme é a construção paralela e em elipses fulgurantes das histórias de Arletty Marx e do pequeno Idrissa, que seguem em crescendo, com citação de Kafka e autocitação de Aki Kaurismäki – o espectáculo de rock e os seus artistas – até às conclusões inesperadas, portentosamente dadas em termos fílmicos, de ambas as linhas narrativas.
       Como se terá notado pelo que antecede, Aki Kaurismäki é um dos poucos cineastas absolutamente indispensáveis da actualidade, com o qual o cinema é uma arte que ainda vale a pena para nos restaurar em crenças e gestos primitivos, primordiais, que nos restituem a nós próprios, mesmo se cépticos e incrédulos. Aqui o cinema volta a ser, em plenitude, le plaisir des yeux, para retomar a expressão de François Truffaut.
            E a mãe espera em Londres o pequeno Idrissa, enquanto Arletty vai preparar o jantar para Marcel, fechando em elipse o que com elipse e fora de campo começara. Isto é o grande cinema, a grande arte de um grande cineasta que tem atrás de si a vida de todos nós, a história e a linguagem do cinema nos seus pontos essenciais.
           Fundamental!