“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 29 de setembro de 2013

Poética do western

    A minha memória do cinema começa pelo western, e por isso devo-lhe pelo menos isto: escrever sobre o género que foi o meu favorito na sua época de maior fulgor. Estou aqui um tanto limitado pelos excelentes ensaios de Jacques Rancière "Poétique d'Anthony Mann" e "Poétique de Nicholas Ray" (1), que há muito tempo fizeram já o tratamento exaustivo de dois cineastas centrais dos anos 50 que vou de seguida abordar. Respeitando essas fronteiras, irei tentar perceber de que modo Anthony Mann e Nicholas Ray foram centrais numa redefinição do western na década em que os géneros, em geral, e o western, especial, atingiram no âmbito da Hollywood clássica o seu apogeu, a sua maior e final depuração.
     Oriundo da Série B dos anos do pós-guerra, Tony Mann vai dar o salto com a sua passagem para o western em "Winchester 73" e "Almas em Fúria"/"The Furies" (1950), o primeiro o primeiro dos cinco westerns em que vai dirigir James Stewart, o segundo de inspiração shekespeariana. Tudo isso era fundamental já quando André Bazin escreveu a primeira poética do western (2), em textos exigentes e certeiros, como era seu apanágio.
      Ora nesses cinco westerns com Jimmy Stewart, entre 1950 e 1955 Mann reinventou o western clássico antes de ele ter atingido o seu zénite entre os clássicos, com "A Desaparecida"/"The Searchers", de John Ford (1956) - antes de "Os Cavaleiros"/"The Horse Soldiers" (1959) e de "O Sargento Negro"/"Sergeant Rutledge" (1960) -, e "Rio Bravo" de Howard Hawks (1959) - depois de "O Rio Vermelho"/"Red River" (1948) e "Céu Aberto"/"The Big Sky" (1952). Quer isto dizer que, antes ainda de ter sido dita a última palavra pelos clássicos, já sobre o assunto ele estava a fazer novo e diferente, acolhendo-os e antecipando-os no seu fulgor crepuscular, assim rivalizando com eles.
                    
      Vou mesmo escolher os dois westerns finais, antes de "Cimarron" (1960), de Anthony Mann, porque penso que neles o cineasta se liberta da crispação fundamental de Jimmy Stewart para, com actores da sua estatura, enfrentar uma serenidade, em "Sangue no Deserto"/"The Tin Star" (1957), e uma revolta, em "O Homem do Oeste"/"Man of the West" (1958), o primeiro com Henry Fonda, o segundo com Gary Cooper.
      Em "Sangue no Deserto" temos uma história de iniciação comparável à de "A Desaparecida" mas em concentrado, num filme centrado numa cidade de que só se sai por boas razões: para a instrução do jovem sheriff, para a última viagem do Doc e para a memorável captura na gruta. No final, antecipando Hawks mas na linha de Fritz Lang, o gabinete do sheriff com a sua prisão é cercado para o próprio jovem sheriff dar provas de que aprendeu a lição.
      Devo confessar que sempre achei estranho este final. Pessoalmente, teria preferido a morte do jovem sheriff e que o caçador de prémios indigno o substituísse, mas Anthony Mann sabia então muito mais do que eu sei hoje, e este foi um filme que eu vi em estreia. Olhando a partir de hoje, percebo que este filme antecipa em preto e branco optimista um "O Homem do Oeste" a cores em que o cineasta faz Gary Cooper viajar até ao fim da noite num conflito shakespeariano para dele sair intacto da sua fúria. E Fonda tinha sido Wyatt Earp em "A Paixão dos Fortes"/"My Darling Clementine" (1946) e um émulo do General Custer em "Forte Apache"/"Fort Apache" (1948), ambos de John Ford, enquanto Cooper tinga sido o "Sargento York"/"Seargent York" para Howard Hawks (1941) e o sheriff abandonado por todos em "O Comboio Apitou Três Vezes"/"High Noon", de Fred Zinnemann (1952), um dos grandes westerns dos anos 50.
                    
     A mitologia do western passa, nos anos 50, por este duplo tour de force, em que a tranquilidade e a revolta modernamente se impõem em termos superiores.
        Nicholas Ray é outra história, pois desde o início, mas sobretudo em "Johnny Guitar" (1954), introduz a complexidade dos sentimentos e das personagens no esquema clássico dos géneros, em especial do western, assim subvertido. Aí, como em "Sangue no Deserto", está em causa o enforcamento segundo a lei de Lynch, mas a lei está praticamente ausente e os protagonistas tornam-se fugitivos daqueles que pretendem interpretá-la e aplicá-la por vingança.
      As mulheres ganham um novo protagonismo, ao arrepio do western clássico, como em "Almas em Fúria", sinalizando a chegada de uma nova era, em que vão passar a ter um novo papel. Há alguma coisa de atípico mas tipificado em termos originais, novos e modernos, neste filme, com os seus vigilantes vestidos de negro, que nem por sombras perpassa no universo de Anthony Mann, em que as personagens surgem ainda desenhadas segundo uma configuração clássica, depurada, susceptível de acolher o preto e branco, muito embora "O Homem do Oeste" dê conta de um sobressalto temático que é também estético e até plástico. Os dois outros westerns de Nick Ray, "O Fugitivo"/"Run For Cover" (1955) e "A Justiça de Jesse James"/"The True Story of Jesse James" (1957), vão manter essa marca original, com a cor a desempenhar um papel fulcral como no Guitar/Vienna film.                    
                    
      A clivagem entre ambos, pelo menos no western, passará pois por um Mann como o último dos clássicos e um Ray como o primeiro dos modernos. Por isso mesmo eu gosto de pensar sobre eles um impensável, que é um "Johnny Guitar" a preto e branco e um "Sangue no Deserto" a cores, que representariam a negação da natureza de cada um deles.
       Claro que nos 50 há também Delmer Daves e "O Comboio das 3 e 10"/"3:10 to Yuma" (1957), baseado em história de Elmore Leonard (1925-2013), em que um rancheiro, Dan Evans/Van Heflin (saído de "Shane", de George Stevens, 1954) tem de transportar um bandido preso, Ben Wade/Glenn Ford (que ascendera à fama na década anterior e seria o actor favorito do cineasta), para apanhar o comboio que o levará para a prisão, o que só consegue cumprir por si próprio e graças à colaboração final do próprio preso. E se este filme nos interessa em especial é porque ele subverte parcialmente o esquema clássico do western, seguido nomeadamente por John Sturges, pondo-o em causa para, a preto e branco, nos devolver à solidão do herói ameaçado e deixado só por todos, como em "O Comboio Apitou Três Vezes", para enfrentar um bandido sedutor e o seu bando. No ano seguinte Daves faria "Como Nasce um Bravo"/"Cowboy", de novo com Glenn Ford e com um muito jovem Jack Lemmon, e "Os Homens das Terras Más"/"The Badlanders", para dois anos depois concluir os seus westerns, iniciados com "A Flecha Quebrada"/"Broken Arrow" (1950) e prosseguidos com "A Última Ordem/"Drum Beat" (1954), "Jubal" e "A Última Caravana"/"The Last Wagon" (1956), com "Raízes de Ouro"/"The Hanging Tree", o filme de Cooper a seguir a "O Homem do Oeste".
       Mas se há um fulcro do western nos anos 50, definidor em termos poéticos de um género, ele passa pelo eixo Mann-Ray, que do lado do primeiro em filigrana Budd Boetticher, o cineasta de que Bazin se ocupa em especial, vai levar a um extremo final de depuração em sete westerns com Randolph Scott entre 1956 e 1960 - depois deles, dele só mesmo um western moderno, um anti-western ou uma paródia do western.   
                                 
        Nos anos 60, já com Sam Peckinpah, Monte Hellman, Sergio Leone e outros italianos nos seus respectivos inícios, o western fecha com "Terra Bruta"/"Two Rode Together" (1961), "O Homem Que Matou Liberty Valance"/"The Man Who Shot Liberty Valance" (1962) e "O Grande Combate"/"Cheyenne Automn" (1964), de Ford, "El Dorado" (1966) e "Rio Lobo" (1970) de Hawks, "A Carga da Brigada Azul"/"A Distant Trumpet" (1964) de Raoul Walsh, muito bom mas já inferior aos seus grandes westerns dos anos 50: "A Caminho da Forca"/"Along the Great Divide" e "As Aventuras do Capitão Wyatt"/"Distant Drums" (1951), "Sob o Signo do Mal"/"The Lawless Breed" (1953), "Duelo de Ambições"/"The Tall Men" (1955), "Um Rei e Quatro Rainhas"/"The King and Four Queens" (1956). Mas haveria também que chamar a atenção para os fabulosos westerns Série B de Allan Dwan nos anos 50: "Flor Bravia"/"Montana Belle" (1952), "Falsa Justiça"/"Silver Lode" e "A Rainha da Montanha"/"Cattle Queen of Montana" (1954), "Rivalidade"/"Tennessee's Partner" (1956) e "The Restless Breed" (1957). E para os de Jacques Torneur: "Stars in My Crown" (1950), "Wichita" (1955), "Terra Sangrenta"/"Great Day in the Morning" (1956) - os de William Wellman ("Assim São os Fortes"/"Across the Wide Missouri" e "Caravana de Mulheres"/"Westward the Women", 1951, "Track of the Cat", 1954), Henry King ("O Aventureiro Romântico"/"The Gunfighter", 1950, "O Vingador sem Piedade"/"The Bravados", 1958), André De Toth, Sam Fuller, Joseph H. Lewis e muitos outros menores na Série B. Mas haveria sobretudo que notar "Sob a Bandeira da Coragem"/The Red Badge of Courage" (1951) e "O Passado Não Perdoa"/"The Unforgiven" (1960), ambos de John Huston, "Apache" e "Vera Cruz" (1954), de Robert Aldrich, "Homem Sem Rumo"/"Man Without a Star" (1955), de King Vodor, "O Rancho das Paixões"/"Rancho Notorious" (1952), de Fritz Lang com Marlene Dietrich, "Rio Sem Regresso"/"River of No Return (1954), de Otto Preminger com Marilyn Monroe. Sem esquecer que os maiores, Anthony Mann e Nicholas Ray, acabaram ingloriamente nos anos 60 a dirigir super-produções históricas, pelas quais talvez sejam hoje em dia mais conhecidos, enquanto Delmer Daves, que tinha começado a trabalhar no cinema no final dos anos 20, acabaria no melodrama.
         Neste contexto, um cineasta-actor como Clint Eastwood, depois de ter participado da glosa paródica de Sergio Leone como actor, surge como realizador de western com uma pertinência póstuma, fora do tempo certo e muito depois dele. Mas mais: considerando-o (ao contexto), embora se concorde que o western é um género mais ético do que épico, podem considerar-se como precipitadas simplificações as afirmações de Gilles Deleuze sobre um western de pequena forma da Imagem-Acção (3). 
       A poética do western é a da epopeia, da saga da conquista do Oeste que no Século XIX permitiu o nascimento de uma nação contra os que se lhe opuseram, não só os índios, que só a partir dos anos 50 começam a ser encarados de outra maneira pela mitologia do género, o que foi muito importante, mas os que do interior a quiseram dominar, uma expansão territorial por terras selvagens de que próprio western terá largamente exagerando os factos, como o peremptório "print the legend" de "O homem Que Matou Liberty Valance" veio dizer para fechar e "As Portas do Céu"/"Heaven's Gate" (1980), de Michael Cimino, postumamente pretendeu demonstrar, permitindo defender contra o anterior: "print the facts". Uma poética da acção e da construção. De uma luta sem desfalecimento para cumprir uma missão, atingir um objectivo, estabelecer ou restabelecer a lei, frequentemente travada de forma solitária. Mas também uma poética da natureza em que organicamente se resolvem em duelo os conflitos instalados para que triunfem a verdade, a justiça e a bondade.

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         O western foi, assim, o verdadeiro filme histórico americano sobre a própria América, de que "O Rio Vermelho" de Hawks foi a "Ilíada" e "A Desaparecida" de Ford a "Odisseia" (e, não por acaso, eles foram os maiores entre os melhores clássicos do cinema americano e ambos os filmes foram interpretados por John Wayne), acompanhados por muitos outros grandes filmes de outros grandes cineastas, clássicos e modernos, que completaram uma epopeia que, como tal, só no cinema atingiu a sua plena dimensão.

Notas
(1) Jacques Rancière: "Quelques choses à faire: poétique d'Anthony Mann" e "Le plan absent: poétique de Nicholas Ray", in "La fable cinémagraphique", Paris, Seuil, 2001, páginas 105 e 127, o primeiro originalmente publicado em "Trafic - Révue de Cinéma", nº 3, Verão de 1992 (Paris, P.O.L.).
(2) André Bazin: "Le western ou le cinéma américain par excellence" (1953), "Évolution du western" (1955) e "Un western exemplaire: «Sept hommes à abattre»" (1957), in "Qu'est-ce que le cinéma?", Paris, Les Éditions du Cerf, 1981 para a édition définitive, páginas 217, 229 e 241 (edição portuguesa "O «western» ou o cinema americano por excelência", "Evolução do western" e "Um western exemplar: Sete homens para matar", in "O que é o cinema?", Lisboa, Livros Horizonte, 1992, páginas 231, 243 e 255). 
(3) Gilles Deleuze: "L'image-mouvement", Paris, Les Éditions de Minuit, 1983, páginas 202-209 e 226-231.

A Austrália, evidentemente

     "The Slap" (2011) é uma excelente série televisiva australiana em 8 epsódios que o canal cultural franco-alemão Arte transmitiu durante este mês de Setembro. Baseada num best-seller de Christos Tsiolkas, esta série lida com desenvoltura, em termos modernos e com grande felicidade, com questões da sociedade australiana actual, sem para tal precisar de mais do que uma excelente utilização da linguagem televisiva e de grandes actores, justos e precisos nas respectivas interpretações. 
                     
        Baseada num episódio corriqueiro, um adulto que dá uma bofetada numa criança que não é sua, "The Slap" apresenta-se como um conflito geracional entre famílias que acaba por se metamorfosear em conflitos pessoais familiares e interfamiliares, por forma a dar um retrato forte e contrastado de uma sociedade em movimento acelerado. As personagens pertencem a gerações diferentes e configuram delicados problemas pessoais hoje em dia transversais a qualquer sociedade, o que confere a toda a série e aos conflitos que apresenta um carácter universal.
     A partir de uma premissa visual, "o que cada um viu do acontecimento", e dividida em episódios cada um dedicado uma personagem diferente, esta série tem uma construção visual muito precisa, baseada no olhar, na linha do olhar de cada um, o que vai permitir evidenciar o que cada um sabe e o que cada um diz não só sobre esse acontecimento mas sobre os outros. Com a infidelidade no amor, o conflito declarado entre amigos, o insinuar da ameaça, a narrativa desenrola-se e desdobra-se de tal forma que tudo surge como consequência natural da vida e das características pessoais de cada um, o que só gradualmente é revelado. Com vozes-off que variam de episódio para episódio, a variação da personagem central de cada episódio permite a mudança de ponto de vista sobre os mesmos factos e sobre os outros, sobre a vida, o que se torna extremamente interessante e sugestivo.  
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      O verdadeiro centro de "The Slap" acaba por ser o tempo, a passagem do tempo para cada personagem, as referências que cada um mantém (para alguns, a Grécia das origens), as perspectivas sobre a vida, o passado, o presente e o futuro, que cada um alimenta, onde quer chegar, o que quer evitar, o que procura. Desembaraçada e sem preconceitos, esta é uma excelente série, muito recomendável, que assinala uma produção televisiva que por ela se adivinha muito importante. Repete em Outubro à sexta-feira, pela noite dentro.

sábado, 21 de setembro de 2013

Blue Moon

     O último filme de Woody Allen, "Blue Jasmine" (2013), é um filme surpreendente sobre mulheres e homens que deslizam na vida, ao sabor do que lhes acontece, que se desenrola em enredar e desenredar até tudo ficar esclarecido e a protagonista, Jasmine/Cate Blanchett, entregue à sua inenarrável e inevitável solidão patética. Começando com a chegada dela a São Francisco, para passar um tempo em casa da irmã, Ginger/Sally Hawkins, o filme acompanha-as às duas por forma a estabelecer contrapontos.
                      Blue Jasmine film still
        Talvez haja quem ainda identifique Allen com o humor, com a comédia, na qual começou, mas este é um filme em que ele, sem perder o sentido da ironia, constrói um drama forte sobre uma mulher frágil e paradoxal, que foi casada com um homem muito rico, Hal/Alec Baldwin, e acaba na mais desoladora solidão que ela própria contribuiu para criar. Ora aqui, namoriscando o melodrama o cineasta constrói o seu filme no limite entre o drama e o risível, de modo a fazer-nos acreditar nas suas personagens e nas situações que, em novelo, elas vivem, enredadas na vida umas das outras.
       Ginger não é uma personagem menos interessante do que Jasmine, apenas não tem as pretensões que esta tem e a marcam, e por isso navega entre diferentes homens, descomprometida mas atenta - e o momento em que ela sabe que Al/Louis C. K. era casado é um esplêndido momento de cinema, dado inteiramente pela expressividade da actriz. Mas ela aguenta, porque, contrariamente a Jasmine, nunca teve sonhos de grandeza. E são os contrastes desta, entre um passado, dado em flash-back muito bem utilizado, e um presente desolador em que ela vai de mal a pior que, com uma marca trágica e uma Cate Blanchett em grande nível em dois tempos de duas vidas diferentes, se impõem e a impõem.
                      Blue Jasmine
         Sem ser um moralista, que nunca foi, este é o filme em que Woody Allen mais se aproxima do grande drama trágico de Charles Chaplin, "Opinião Pública"/"A Woman of Paris" (1923), com um domínio superior do filme, da narrativa, das personagens e dos actores. Sem falsa piedade nem falsa compaixão, em "Blue Jasmine" o cineasta consegue um filme que, sendo diagnóstico de uma sociedade, a enfrenta pelo lado em que ela é mais eloquente: o da fragilidade humana e da tragédia - no final Jasmine faz pensar na Condessa Livia Serpieri/Alida Valli no final de "Sentimento"/"Senso", de Luchino Visconti (1954).
       No meio disto, mulheres e homens são joguetes uns dos outros, com o que fazem sofrer mas sofrem eles próprios também. Não há, como não costuma haver nos filmes de Woody Allen, bons e maus - qualquer que seja o nosso juízo sobre elas, todas as personagens deste filme são terrivelmente humanas. Vá, acordem. Este é um grande filme de um grande cineasta que é preciso conhecer e reconhecer (sobre Woody Allen, ver "A perversidade dos jogos", 4 de Março de 2012, "Um americano em Paris", 12 de Agosto de 2012, e "A meio do caminho", 7 de Outubro de 2012).

Por Victor Erice

      Natural do País Basco, Victor Erice é um grande cineasta espanhol, que realizou três longas-metragens memoráveis, "O Espírito da Colmeia"/"El espíritu de la colmena" (1973), "O Sul"/"El sur" (1983) e "O Sonho da Luz, o sol do marmeleiro"/"El sol del membrillo" (1992), este uma verdadeira obra-prima do tratamento do espaço, do tempo e da criação pictórica. Depois ficámos sem notícias dele. Tive ocasião de assistir na Cinemateca Portuguesa a três dos filmes que ele aí apresentou: "Allumbramiento", curta-metragem feita para o filme "Ten Minutes Older: The Trumpet" (2002), em que figura com o título "Lifeline", e "La Morte Rouge (Soliloquio)", feito no âmbito da exposição "Erice-Kiarostami. Correspondences" que, organizada por Alain Bergala, esteve em Barcelona, Madrid e Paris em 2006 e de que apenas conhecia o catálogo, com direcção de Bergala e Jordi Balló.
                     
        No primeiro ele estabelece uma surpreendente relação com o alastrar do nazismo antes da II Guerra Mundial e no segundo recorda o seu primeiro contacto com o cinema, com uma sala de cinema, com um filme projectado, recordando o ambiente da época e o filme então visto e como ele o marcou, mas também como ele lhe permitiu descobrir que há um país do cinema que não vem nos mapas. Ambos a preto e branco, são filmes muito bons, que trazem a marca inconfundível de um grande cineasta, mas se fosse só por eles não estaria a escrever isto neste momento.
       Ora Erice mostrou também, como surpresa, o seu segmento para "Centro Histórico" (2012), uma encomenda da Guimarães - Capital Europeia da Cultura cujos outros três segmentos são da responsabilidade de Manoel de Oliveira, Pedro Costa e Aki Kaurismäki e que permanece inexplicavelmente inédito. E nesse filme, "Vidros Partidos", sim, a cores temos de novo o sabor do melhor de Erice, o das suas longas-metragens já antigas, pois ele filma, num dispositivo devedor de "24 City"/"Er shi si cheng ji" do chinês jia Zhang-Ke (2008) mas muito bem adoptado e adaptado, os testemunhos de operários e operárias desempregados devido ao encerramento de uma fábrica da indústria têxtil do Vale do Ave.
                     
          O cineasta explicou como recolheu primeiro os testemunhos, os transcreveu e depois os fez decorar a cada um dos operários para as filmagens. Os testemunhos de vidas de trabalho desde cedo é impressionante, mas o que a mim mais me impressionou foi o cenário de cada depoimento ter por fundo uma grande fotografia a preto e branco, tirada no refeitório da mesma fábrica numa data indeterminada. O filme encerra com os comentários de alguns dos operários entrevistados a essa fotografia, então mostrada em contracampo, enquanto o mais novo dos entrevistados, que já fez um curso superior e toca acordeão, faz ouvir uma música inspirada na "Trova do vento que passa", de Adriano Correia de Oliveira. E então um filme que é todo ele sobre o tempo e a memória exorbita e vai juntar-se ao melhor de Victor Erice, naqueles rostos anónimos que nos olham do abismo do tempo em que as suas imagens foram retidas.
                     
        Posto "Vidros Partidos" como a amostra mais recente do génio pessoal de um grande cineasta, a que aqui presto a minha homenagem, há que exigir a divulgação integral de "Centro Histórico", que pelos nomes que nele estão envolvidos, além do próprio Victor Erice, deve ser realmente um filme memorável, que é criminoso não mostrar.

A criação no cinema

        Foi agora lançado um livro de Pedro Costa, "Casa de Lava - Caderno", com edição Pierre von Kleist editions e data de 2013, que é tão importante como um filme e permite compreender a uma nova luz a obra do cineasta. Há, no cinema português, um mistério Pedro Costa, como há um mistério Manoel de Oliveira, um mistério Paulo Rocha, um mistério António Reis, e este livro é, neste momento e depois da publicação de outras obras sobre o cineasta (ver "Uma excelente notícia", 31 de Janeiro de 2013), decisivo para esclarecer o mistério dele.
       Quem tivesse estado atento, teria percebido logo que "O Sangue" (1989) não era mais uma primeira na longa-metragem de ficção portuguesa. Aí havia já um grande cineasta em embrião, mas um grande cineasta que, em plenitude, se desconhecia ainda. Num país recém-chegado à democracia havia questões a colocar ao optimismo beato dominante, questões de história antiga e recente a colocar no cinema, e foi ele quem primeiro as colocou.
                                    
       "Casa de Lava - Caderno" permite descobrir em Costa o artista na sua acepção clássica, como aquele que se questiona e questiona o mundo em que vive, não o mero espelho reflector de um estado de coisas. Filmado em Cabo-Verde, "Casa de Lava" (1994) foi a sua segunda longa-metragem e é o filme que antecipa, sem ele o saber talvez, a chamada "trilogia das Fontaínhas", que o veio a impor definitivamente como nome maior do cinema contemporâneo. Se há um mistério Pedro Costa ele situa-se aí e este caderno é decisivo para o compreender.
         O inconformismo dele no cinema surge, perfeito e intacto, neste livro, em que, em facsimile do caderno original, em colagens de recortes (de jornal, de postais, de fotografias), ele se explica extensamente sobre as suas perplexidades, a sua consciência dos meios ao seu dispôr e dos seus limites, do mesmo passo que ensaia a colagem como fundamento-base do cinema. Um artista como ele é descobre-se e inventa-se perante a resistência dos meios e materiais que tem ao seu dispor, não perante a facilidade de um argumento ou de um orçamento. Neste livro, que vale um filme, muito mais que um making-of, descobrimos um artista que, confrontado com as dificuldades em prosseguir as filmagens, se interroga perante o seu tempo e interroga a sua arte num tempo concreto e num espaço específico.
                     
       Ora isto é a arte, a grande arte: não seguir ao ritmo e no sentido do tempo, mas questionar-se a si próprio enquanto se questiona o espaço e o tempo em que se vive - e aqui ele vai no sentido do artista renascentista no cinema, que questiona a criação do mundo para por sua vez o criar de novo, o que ele vai fazer na trilogia. É fácil, muito fácil dizer que Pedro Costa é um grande artista contemporãneo, mas o que é preciso é passar por este "Casa de Lava - Caderno", que é acompanhado por uma conversa actual do cineasta com Nuno Crespo e um ensaio de Philippe Azoury, para perceber como ele se auto-engendrou em diálogo com a história, incluindo a do cinema, e em monólogo consigo próprio.

sábado, 14 de setembro de 2013

A construção da memória

        Alain Cavalier foi outro dos cineastas que, contemporâneos da nouvelle vague francesa, nunca tiveram nada a ver com ela (ver "Duro de roer", 10 de Junho de 2013). Tendo enveredado por um tipo de filme mais pessoal, subjectivo mesmo, já neste século, a partir de "Le filmeur" (2005), chega a um seu pleno desenvolvimento em "Pater" (2011), embora "Irène" (2009) seja o melhor dos seus últimos filmes.
         De facto, é aí que, a solo, ele se entrega a um exercício sobre a memória de Irène Tunc que, muito mais nova do que ele, muito nova morreu na sequência de um acidente de viação em 1972. O que torna este filme superior aos outros é nele o cineasta, ao abrir a memória, abrir as agendas em que escreveu um diário da vida comum de ambos entre 1970 e 1972, e, ao filmar e ler o que então aí escreveu, ir desdobrando as suas memórias mais pessoais e íntimas de uma personagem há muito desaparecida para as comentar na actualidade.
                     
        Para fazer tudo como deve ser e como ele quis, Alain Cavalier fez aí tudo sozinho, captação da imagem, do som, voz-off, mostrando-se mesmo a si próprio, primeiro partes do corpo, depois o rosto, a seguir à sua queda nas escadas de uma estação de Metro de Paris. Foi um risco muito grande, o de uma exposição completa, mas um risco que se justificava porque a sua subjectividade o exigia e que o levou a criar um filme em que reverbera a presença actual de uma morta querida.
        Em "Irène" assume plena dimensão o cinema como arquivo de memória mas também, e até sobretudo, como construtor dela - da própria Irène surgem escassas fotografias já próximo do final, por vezes o cineasta parece dirigir-se a uma fotografia de Sophie Marceau sobre uma parede e num determinado momento surge uma outra mulher muito nova que, na actualidade, ele encara como podendo vir a interpretar Irène num filme. De resto, são as imagens dos locais em que ela viveu, em que eles os dois viveram juntos, as palavras em dois tempos: as escritas em vida dela, as ditas na actualidade do filme pelo cineasta (a palavra lisível, lida, e a palavra dita, acrescentada), imagens novas que mostram o que ele diz - espantosa a sequência da melancia - e o regresso de diferentes pontos de vista ao local de que ele a viu partir pela última vez, que assinala a culpa que ainda sente por naquele dia a ter deixado partir sozinha.
                      irene-2
       Posto isto, em que só vendo se acredita como Alain Cavalier acreditou, "Irène" é, depois de "Teresa"/"Thérèse" (1986), a verdadeira obra-prima do cineasta, em que ele faz o que mais ninguém fez daquela maneira, que é simultaneamente a mais verdadeira e a mais difícil, levando até ao fim a sua própria subjectividade e criando com ela. Em "Pater" há já uma ideia muito consciente de mise en scène de se próprio numa relação pai-filho, mestre-discípulo enunciada em termos políticos, que por muito que possa dizer aos franceses a mim me deixa frio, quase indiferente como exercício de estilo narcísico, pese embora a reflexão que apesar de tudo proporciona.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O bom blockbuster

     Quer gostemos mais ou menos dele, o blockbuster faz parte do cinema americano dos últimos quarenta anos, em que ocupa mesmo um lugar importante, de referência. Há-os para todos os gostos e sobre vários assuntos, mas o que caracteriza primariamente o blockbuster é ser um filme de acção espectacular, envolvendo grandes meios para criar maiores efeitos. Por definição, o blockbuster é, portanto, um filme de grandes multidões e de grande sucesso, embora outro dos seus princípios, nem sempre seguido, seja o de envolver uma narrativa infantil, programada, que infantiliza os espectadores.
     Sem ser um fã do conceito, fui ver "O Mascarilha"/"The Lone Ranger", de Gore Verbinski (2013), por se tratar de uma personagem com a qual travei contacto precoce, primeiro em banda desenhada a preto e branco, depois na televisão. Personagem da cultura popular americana também no cinema, penso que os filmes que dela se ocuparam na época da série televisiva que lhe foi dedicada, a década de 50, nunca passaram de uma série B muito fraca. Mesmo assim, compreendo que esses filmes tenham ocupado o seu lugar no cinema americano para o americano espectador médio de cinema dos anos 50, tanto mais quanto a personagem tem origem ainda nos anos 30.
                  The Lone Ranger NECA Action Figures 
       Mas fui ver este filme por um segundo motivo, que é de ter sido anunciado pela Disney, antes da sua estreia em Portugal, que "O Mascarilha" ia obter resultados de bilheteira muito inferiores ao esperado. Ora um blockbuster que perde dinheiro decididamente interessa-me.    
       O filme, dirigido pelo realizador dos filmes "O Pirata das Caraíbas"/"Pirates of the Caribbean", interpretados pelo mesmo Johnny Depp que aqui faz o papel do índio, Tonto, tem aspectos muito interessantes e curiosos que fazem dele um bom filme, qualquer que seja o seu resultado de bilheteira.    
                 The Lone Ranger                                    
    
       O dispositivo narrativo está bem imaginado e bem gerido a partir do índio envelhecido numa barraca de feira do Wild West em 1933, o que confere distância e permite jogar com a indefinição entre a história e a lenda, as personagens do Lone Ranger/Armie Hammer, do Tonto e daqueles que eles combatem estão muito bem caracterizadas, com destaque para Tonto que, na interpretação de Johnny Depp, assume traços keatonianos, insinua-se um humor bem utilizado, por vezes declarado, e o uso frequente do comboio, inteiramente justificado num filme que trata da construção do primeiro caminho-de-ferro da América, é acompanhado repetidamente pelo o gag-maquínico de Tonto e no final é mesmo pretexto para um arremedo de gag-trajectória, como lhes chama Gilles Deleuze, nomeadamente de "Pamplinas Maquinista"/"The General", de Buster Keaton (1926), o cineasta que o mesmo autor considera que, por contraposição a Charles Chaplin, inscreveu um género de pequena forma da Imagem-Acção, o burlesco mudo, na grande forma (1).
        Há outras referências à história do western, de Monument Valley dos filmes de John Ford ao seminal "The Great Train Robbery", de Edwin S. Porter (1903), mesmo a questão da mulher do irmão, mas o filme é sobretudo marcado por um mal radical instalado na direcção da companhia do caminho-de-ferro que, usando o seu irmão, Butch Cavendish/William Fichtner, para o efeito, leva primeiro à morte do irmão do Lone Ranger, Dan Reid/James Badge Dale, e desencadeia depois o massacre dos comanches, acusados falsamente do que os seus próprios homens cometeram, um mal que se trata de abater.    
                           
        Com bons elementos técnicos, como era de esperar, que sobressaem sobretudo na corrida desvairada de vários comboios em simultâneo do final, o mítico cavalo branco Silver e a música da abertura da ópera "Gulherme Tell", de Rossini, que emblematicamente acompanham a personagem, "O Mascarilha" ocupa, do lado do cinema, uma posição muito honrosa no conceito de blockbuster, que não me é especialmente simpático. Mas isto digo eu, que conheço a história da personagem e a história do cinema, o que provavelmente não é o caso da maioria dos espectadores actuais.
         A questão é o western não estar na ordem do dia, apesar do seu carácter lúdico o filme se prestar menos aos jogos de vídeo e a personagem ter sido popular especialmente numa época anterior ao movimento pop. Mas Helena Bonham Carter, com Johnny Depp actriz de Tim Burton, vale bem o que se achar que falta a este filme. 

Notas
(1) Cf. Gilles Deleuze, "L'image-mouvement", Paris, Les Éditions de Minuit, 1983, páginas 231-242.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O bom ponto de vista

      "Apenas o Vento"/"Csak a szél" (2012) do húngaro Benedek Fliegauf poderia não passar de mais um filme bem intencionado por uma boa causa, a do respeito da etnia cigana, como acontece com os filmes de Tony Gatlif, não se dera o caso de assumir o único bom ponto de vista sobre o assunto: o das vítimas.
                    Apenas o Vento : Foto Katalin Toldi
      Sem pretender assumir o estatuto de documentário mas baseando-se em factos reais, o cineasta segue à vez a mãe, a filha e o filho de uma família de ciganos pobres cujo pai está ausente, no Canadá, e sem os abandonar vai-nos dando o meio social mas também o contexto de assassinatos de famílias ciganas em que aquelas personagens vivem, o que, acompanhado pela crispação de grupos de vigilantes e pela displicência policial, condescendente, se torna muito esclarecedor.
     Num caso como este, o ponto de vista errado seria dar a perspectiva das vítimas e a perspectiva dos assassinos, como se fosse possível a respeito desta questão uma partilha de opiniões. A opção de Benedek Fliegauf é, pois, a opção certa, que lhe permite construir a individualidade e o mistério de cada um dos membros daquela família, em especial do filho a partir do momento em que ele se esconde de um automóvel entre as ervas.
                    Apenas o Vento : Foto Lajos Sárkány
          Era preciso mostrar tudo daquele ponto de vista, o dos que são discriminados e vão morrer, como era preciso da morte mostrar os cadáveres no final. Tudo preciso e exacto, sem idealização nem contemporização, com uma câmara sempre em movimento e uma fotografia com cores luminosas e gritantes. Se aquilo aconteceu é preciso que todos o saibamos para que nos indignemos e façamos por que não se repita. E para isso não precisamos de saber quem foram, concretamente, os assassinos - mostrá-los significaria reconhecer-lhes uma dignidade que eles obviamente não têm.
     "Apenas o Vento" não é um filme espectacular e emocionante ao jeito a que estamos habituados no cinema? Não, de facto não é, pois não pretende esclarecer por intermédio de uma retórica fácil, antes nos quer mostrar secamente alguma coisa que devemos conhecer do único ponto de vista justo. Por casos como o deste filme passa uma preocupante difusão de ideias neo-nazis e racistas ameaçadoras e muito perigosas nos nossos dias, questão a que aqui fiz referência (ver "Um cineasta sério", 17 de Agosto de 2013). Depois não digam que o cinema passa ao lado destas questões - a questão é que não passemos nós ao lado dos filmes certos.

Sob protesto

       Num país em que é quase completamente desconhecido o maior cineasta israelita, Amos Gitai, como são pouco ou nada conhecidos grandes nomes da filosofia e mesmo da literatura contemporâneas, estreou com alarido um bom filme da mesma proveniência sem que ninguém tenha acusado o toque da grande ignorância em que somos indignamente mantidos do melhor daquela cinematografia. Se a ideia de distribuidoras e programadores é punir a política sionista do Estado de Israel estão completamente enganados, pois Amos Gitai, um dos nomes maiores do cinema contemporâneo, homenageado no Centro Georges Pompidou, em Paris, e no MOMA - Museum of Modern Art, em New York, está longe de contemporizar com ela, movendo-se a um nível de dignidade intelectual comparável ao do seu compatriota Amos Oz, escritor . E, enquanto esta situação miserável, semelhante àquela que, no seu tempo, atingiu entre nós o egípcio Youssef Chahine, persistir, eu escrevo sobre filmes israelitas sob protesto, embora ela seja uma situação que nem sequer me espanta num país que, de um modo geral e na melhor das hipóteses, encara como simples curiosidade macróbia um cineasta como Manoel de Oliveira.
                     rama burshtein noiva prometida
      Dito isto, "Noiva Prometida"/"Lemale et ha'halal" (2012), até agora o único filme de Rama Burshtein, argumentista e realizadora, que o dedica à memória do seu marido, é uma obra muito interessante sobre uma família judia ultra-ortodoxa em que a morte da mulher ao dar à luz levanta o problema do segundo casamento do marido viúvo. Considerando a natureza fechada da comunidade em que as personagens se inserem, está em causa "arranjar-lhe um casamento".
       Poderia pensar-se que não temos nada a ver com isso, é o problema deles, não se dera o caso de, em termos narrativos e em termos fílmicos, a cineasta resolver muito bem o seu filme de uma forma e num tom em que, naquela comunidade ultra-ortodoxa, ninguém sequer põe em causa que se arrange um novo casamento daquele homem. De facto, o que ali ressalta é a ideia proposta de a segunda mulher dele... ser a irmã mais nova da primeira.
                    
      Para além de a comunidade em causa estar muito bem caracterizada, em todas as suas práticas religiosas e sociais, inextrincavelmente ligadas, cada personagem assume identidade e vida própria, de tal modo que torna perfeitamente identificável e reconhecível o problema que o filme equaciona. Os afectos transbordantes tendem a abafar qualquer ideia de autonomia pessoal, que os próprios visados nem sequer reivindicam. Ao que acresce o perfeito domínio do filme pela realizadora, com as recorrentes desfocagens parciais a conferirem um carácter pictórico mas também afectivo à imagem e o uso da música só no início e no final.
     Sem pretenciosismo mas com completa intransigência, Rama Burshtein constrói "Noiva Prometida" como um filme comovedor na sua simplicidade e no seu bom gosto, em que o universo feminino assume o comando das operações e os cânticos masculinos exprimem também a solidão dos homens - belíssima a triste canção final. Um filme de tal modo concebido e construído que, na sua aparente singularidade religiosa, assume ressonância universal.

Desenvolto e atento

    A primeira longa-metragem de ficção de um documentarista é, por si mesmo, um acontecimento que merece especial atenção. É o que acontece com "Uma Família Respeitável"/"Yek Khanévadéh-e Mohtaram", do documentarista iraniano Massoud Bakhshi (2012), argumentista e realizador do filme. Pelo-me sempre quando qualquer cineasta comete estas tropelias sobre fronteiras cada vez mais questionadas. 
     Ficcionalizando um professor universitário que regressa do estrangeiro após 22 anos de ausência, o cineasta baseia-se na sua própria experiência pessoal do seu país para a construção da narrativa, começando pelo fim para a ele regressar conclusivamente no final. Entretanto o filme oferece as peripécias e percalços do protagonista na sua tentativa para sair de novo do Irão, com flashes sobre a infância dele, aquando da revolução iraniana. A maior parte do tempo é dedicada à relação de Arash/Babak Hamidian com a família, em especial com o seu sobrinho Hamed/Mehrdad Sedighian, que com o filme já muito adiantado vem a revelar a sua duplicidade diante de um espelho, em que a sua imagem surge reflectida na sombra, num plano inspirado, muito bom.
                    Fotogaleria do filme «Uma Família Respeitável»
         O que mais impressiona é a falta de moralidade das personagens num país que diz agir em nome de Deus, do que nos são dadas imagens documentais do início da revolução iraniana e posteriores, o que permite ao filme recapitular a história recente do Irão no tempo de vida do protagonista - e do cineasta. Ali, naquela família respeitável, todos se aproveitam de Arash e da sua situação, que envolve a morte do pai dele. Salva-se a mãe de Arash/Ahu Kheradmand, que não vai em compromissos nem aceita o dinheiro que lhe querem destinar.             
        Ao narrar uma história baseada na sua experiência da vida Massoud Bakhshi dá conta de um estado de coisas revelador de um jogo mal-intencionado com os laços familiares em favor de propósitos escondidos e de negócios esconsos muito lucrativos. Exemplarmente, no final Arash desaparece e sozinho perde-se no meio da multidão.
                    Fotogaleria do filme «Uma Família Respeitável»
       "Uma Famía Respeitável" é um trabalho limpo que revela desenvoltura e atenção da parte do seu autor. Desenvoltura pelo muito bom uso que faz da linguagem cinematográfia, nomeadamente com o recurso recorrente e muito apropriado ao fora de campo, como a cena na torre exemplarmente demonstra, e aos flashes do passado. Atenção porque não está com meias medidas ou paliativos, vai direito ao que dói, ao que lhe doeu a ele e a nós nos dói naquela experiência pessoal, tornada relevante ao ser posta em filme de modo que lhe confere um carácter universal - as pessoas no Irão não são, afinal, diferentes do que são no resto do mundo. Os aspectos especificamente iranianos estão muito bem representados, com subtileza e ironia que revelam respeito (não auto-paródia), conferindo realismo aos cenários, às personagens e às situações, que no desenrolar gradual dos acontecimentos se revelam autênticas a nível local, o que permite nelas vislumbrar o universal.
       Já aqui escrevi sobre o cinema iraniano ("ver "Uma questão familiar", 5 de Julho de 2012) e este filme vem corroborar que há muito bom cinema num país em situação difícil como o Irão é, um cinema que, movendo-se ao nível de um realismo elementar mas não ingénuo, cumpre com brio o seu papel de revelador crítico de uma sociedade.