“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 31 de outubro de 2015

Sanguinolento

    Do mexicano Guillermo Del Toro, de que conhecia e apreciara "O Labirinto do Fauno"/"El laberinto del fauno" (2006), estreou agora "Crimson Peak: A Colina Vermelha"/"Crimson Peak" (2015), um filme de terror gótico que decorre no final do Século XIX, na sua maior parte numa mansão inglesa 
                    Crimson Peak
   O cineasta tem de positivo ser sempre argumentista ou co-argumentista e produtor ou co-produtor dos filmes que realiza, o que aqui volta a acontecer num filme sobre argumento seu e de Matthew Robbins. Poderia dizer-se contra o filme que ele leva demasiado a sério os seus elementos de terror, os fantasmas, mas mesmo assim ele parte de uma personagem que se quer semelhante a Mary Shelley, Edith Cushing/Mia Wasikowska, que com apelido e tudo introduz uma referência de segundo grau.
    O par que se lhe opõe, os irmãos Lucille/Jessica Chastain e Thomas Sharp/Tom Hiddlestone, está bem visto e bem caracterizado em termos de época e de terror, e a intrincada intriga para que arratam Edith depois de lhe terem morto o pai, Carter Cushing/Jim Beaver, apresenta características reconhecíveis do género ao decorrer numa mansão de família.
                    Crimson Peak
     Guillermo Del Toro trabalha também o contexto, com elementos e referências avulsas de época (os rolos de cera e Conan Doyle), de forma a fazer passar uma maior credibilidade, e explora bem os interiores da mansão como espaços vastos, vazios e desabitados, como uma enorme casa dos mortos que apenas aqueles três vivos habitam - os cenários de Thomas E. Sanders e a fotografia de Dan Laustsen, com uma iluminação preciosa, são muito bons.
      Os confrontos estão todos bem encenados, com realce para o último entre Edith e Lucille, de modo que este "Crimson Peak: A Colina Vermelha" não fica a dever nada ao género de que participa e que enriquece, sem envergonhar o cineasta em confronto, por exemplo, com John Carpenter ou Dario Argento, os mestres modernos do filme de terror, embora a maior proximidade seja com "Drácula de Bram Stoker"/"Dracula", de Francis Ford Coppola (1992), devido ao comum cenografista. Os actores estão todos bem, muito obrigado.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Poética de Orson Welles

    Nos seus escritos sobre cinema, em "L'image-temps" (1) Gilles Deleuze observa justamente que Orson Welles foi um grande cineasta do espaço, do tempo e do falso. Do espaço por causa da profundidade de campo com efeitos dramáticos e dos movimentos de câmara, em especial o travelling. Do tempo porque, em plano-sequência, a profundidade  funcionava em termos espaciais mas também temporais, de temporalização. Do falso por causa do carácter falsificante de algumas das suas personagens, por oposição às verídicas (2).
    Espacialmente, desde "O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane" (1941) que os planos adoptam nos seus filmes a profundidade de campo, aliás nesse caso muito trabalhada pela grande angular de Gregg Toland. Essa tendência para uma certa deformação da profundidade vai ser continuada, por exemplo, na sequência final de "A Dama de Xangai"/"The Lady from Shanghai" (1948) por causa e efeito dos espelhos, depois em "Macbeth" (1948), um dos melhores filmes shakespearianos de sempre, e "Otelo"/"Othelo" (1952), feito já na Europa com recursos escassos.
                    
      O seu filme mais famoso por causa do plano-sequência com profundidade de campo, "A Sede do Mal"/"Touch of Evil" (1958), viu a pertinência da sua imputação parcialmente negada pela versão que do filme Jonathan Rosembaum estabeleceu em 1998 seguindo as indicações do próprio cineasta à época, embora contra a vontade de Welles a versão original do filme permaneça, nomeadamente na sua abismal abertura.
    O tempo surge verbalmente evocado quer em "O Quarto Mandamento"/"The Magnificent Ambersons" (1942), em que, sem que o final seja da responsabilidade dele, funciona muito bem a evocação do tempo passado - tão bem como em "O Mundo a Seus Pés", o mesmo sucedendo no filme mais falsificante dele nos anos 50, "Relatório Confidencial"/"Confidential Report" ou "Mr. Arkadin" (1955), geralmente minimizado porque pouco conhecido.
     Mas quer em termos espacio-temporais quer em termos narrativos são "O Processo"/"The Trial" (1962), baseado em Franz Kafka e em que regressa à deformação espacial, e "As Badaladas da Meia-Noite"/"Chimes at Midnight" (1965), baseado em quatro peças de William Shakespeare, que condensam em si a mestria de Orson Welles, apontando mesmo o segundo para a figura da generosidade, da "bondade" da vida em si mesma que leva à criação na personagem tornada central de Falstaff (3).
                    
    Depois de "Uma História Imortal"/"Histoire immortelle"/ The"Immortal Story" (1968), também baseado no falso e que foi o seu primeiro filme a cores, os seus filmes finais regressam à questão do falso: "F for Fake" (1975) através da figura do falsário, superiormente trabalhada, ""Filming Othelo" (1978) através da observação na mesa de montagem do falso do filme de 1952 que o cinema faz passar por verdadeiro.
     Além do mais Orson Welles foi um grande actor, nomeadamente nos seus próprios filmes em que interpretou a personagem falsificante ("Relatório Confidencial", "A Sede do Mal", "Uma História Imortal") mas também Falstaff. A questão do homem falsificante era por ele esclarecida quando dizia que ele o detestava moralmente mas não humanamente na sua falsidade de força esgotada pela vida, quando oposta ao homem verídico, que se toma por homem superior e por isso capaz de julgar: contra este, o primeiro era uma força em devir, uma irredutível multiplicidade, uma forma em que as personagens se transformam umas nas outras (4).
     Enquanto "O Estrangeiro"/"The Stranger" (1946) confirma a ambiguidade do homem falsificante perante o homem verídico, o ainda inédito e deixado inacabado por ele "The Other Side of the Wind" mais do que o seu "Dom Quixote de Orson Welles"/"Don Quijote de Orson Welles", que apenas confirma expressamente o quixotismo na sua obra numa versão que não lhe faz justiça (Jess Franco, 1992), aponta para uma experiência total semelhante à de "O Mundo a Seus Pés" e de "As Badaladas da Meia-Noite". Um filme que, acabado por eles, os especialistas wellesianos americanos nos devem a todos - e lhe devem a ele.
                   
     Se percebermos que no tratamento do espaço e do tempo por Orson Welles há uma tendência para os "falsificar" em termos de cinema, exacerbando-os em termos realistas mas também expressionistas - Gilles Deleuze chama-lhe mesmo neo-expressionismo (5) - poderemos perceber que o praticante das artes mágicas foi o mago que ele pôs a trabalhar nos seus filmes, entre homem falsificante e homem da dádiva, especialmente quando envelheceu gordo como actor. A sua foi, pois, uma poética da magia do cinema e no cinema: da profundidade de campo e do espaço, das sombras e das oposições e combinações de claro e escuro (6), do tempo e das potências do falso que põem em causa a capacidade de julgamento, que nem "It's All True" (1942), o documentário que filmou no Brasil mas não pôde montar, nem os dispersos filmes curtos em que se desdobrou a partir dos anos 50, permitem desmentir, antes confirmam. 
    Sem Orson Welles não se pode compreender o primeiro século do cinema nem o cinema enquanto arte maior, de que ele foi, com Sergei Eisenstein, o maior génio, a que apenas Fritz Lang, Friedrich Murnau, Alfred Hitchcock e Jean Renoir podem ser comparados. Influenciados por ele, Stanley Kubrick e Alain Resnais, Francis Ford Coppola e Martin Scorsese foram os seus principais continuadores (7). 
     Sobre Orson Welles, ver "Génio de Orson Welles", de 10 de Julho de 2015.
                   
         
        Notas
      (1) Paris: Les Éditions de Minuit, 1985 (edição portuguesa "A Imagem-Tempo" - Lisboa: Assírio & Alvim, 2006; Lisboa: Documenta, 2015).
      (2) Gilles Deleuze e Félix Guattari referem-se também a Welles em "Kafka - Para uma Literatura Menor", Capítulo 8, "Blocos, séries, intensidades", Observação III, pág. 130 da edição porutuguesa (Lisboa: Assírio & Alvim, 2003). 
        (3) Cf. Gilles Deleuze, op. cit. na nota (1), págs. 185-186.
        (4) Idem, ibidem, págs. 181-192.
        (5) Idem, ibidem, págs. 187-189. 
        (6) Idem, ibidem.
        (7) Da bibliografia mais recente, vasta como era devido por altura do centenário, permito-me destacar aqui "My Lunches With Orson: Conversations Between Henry Jaglom and Orson Welles", edited and presented by Peter Biskind (New York: Metropolitan Books, Henry Holt and Company, 2013) - edição francesa "En tête à tête avec Orson - Conversations entre Orson Welles et Henry Jaglom", editées et presentées par Peter Biskind (Paris: Robert Laffont, 2015).

Vida por vida

     Com argumento e realização de Fabio Grassadonia e Antonio Piazza (2013), "Salvo" é um filme sóbrio e muito bem construído sobre um assassino profissional, Salvo/Saleh  Bakri, que depois de assassinar um homem se aproxima da irmã dele, Rita/Sara Serraiocco, que é cega e acompanháramos enquanto o assassinato do seu irmão decorria fora de campo. Tudo se passa em Palermo, na actualidade, como somos informados logo no início.
     No convívio entre ambos, que começa enquanto ela é cega, e sobretudo quando mais tarde é retomado de forma mais próxima depois de Rita ter recuperado a visão, Salvo vai-se apercebendo de alguma coisa relativamente à sua "profissão" de modo que, quando é intimado pelo seu chefe a liquidar também a irmã do homem anteriormente morto, ele se recusa a fazê-lo. Como sucedera no início, também o combate final decorre fora de campo, a partir da presença de Rita na imagem, no plano.         
                     Salvo
      Muito bem construído sobre o fora de campo sobretudo sonoro, muito bem orquestrado em ruídos, palavras, gritos, em especial nas duas cenas referidas a que não assistimos e apenas temos acesso através dos sons provenientes do fora de campo e dos planos seguintes, o filme de Grassadonia e Piazza mantém uma planificação seca mas diversificada, que cria distância e proximidade segundo as circuntâncias - muito bons os planos em plongé distante, que esmagam e isolam -, e uma excelente fotografia de Daniele Cipri.
     A referência a "O Samurai"/Le Samouraï", de Jean Pierre Melville (1967), é clara e bem explorada, de forma inteligente que a assume sem se eximir de relativamente a ela marcar distâncias. Os actores são excelentes em sobriedade expressiva, em especial Saleh Bakri e Sara Serraioco, muito bem como Rita cega e muito bem depois de ela recuperar a visão.  
                   
     O final em que ela carrega Salvo, ferido, ao longo de um um curso de água remete para o filme de perseguição no cinema americano, e na sua serena ambiguidade o plano final volta a remeter-nos para o som: o ruído das ondas do mar visto ao longe pela janela, o apito de um navio que não se vê. Rimando com a abertura, sobre uma cortina desfocada, o ecrã fecha a negro sobre Salvo de costas e sozinho depois de Rita ter saído do seu lado e do plano.
    Sem qualquer tentativa de forçar o aprofundamento psicológico das personagens, apenas a partir do exterior de corpos, comportamentos e acções, e com muito poucos diálogos, "Salvo" é uma filme muito expressivo, inteligente e bem feito, que recomenda Fabio Grassadonia e Antonio Piazza na sua primeira longa-metragem de ficção vista esta semana no Arte.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Geometria negra

    Depois de "Raptadas"/"Prisoners" e "O Homem Duplicado"/"Enemy" (2013), estreou agora em Portugal "Sicario - Infiltrado"/"Sicario" (2015), o mais recente filme do canadiano Denis Villeneuve, até agora o seu melhor.
                     Sicario
     Com actores muito bons em rendimento máximo (Emily Blunt como Kate Macer, Josh Brolin como Matt Graver, Benicio Del Toro como Alejandro em especial), a partir de argumento de Taylor Sheridan o cineasta constrói o seu filme sobre o tráfico de drogas na fronteira sul dos Estados Unidos e o combate que a polícia americana, o FBI, com os seus meios próprios, contra os seus cartéis trava - para manter a ordem enquanto o consumo no seu país do norte mais rico não diminuir sensivelmente, como explica Matt a certa altura.
    Bem estruturado com a inclusão de uma mulher na equipa operacinal, "Sicario - Infiltrado" torna-se um filme aliciante e especialmente bem feito graças a uma construção geométrica do plano, em que o cineasta vai mais longe do que nos seus filmes anteriores, e à progressiva emergência da personagem sombria e central de Alejandro, a que Benicio Del Toro confere o seu carisma pessoal.
                    Sicario    
     Insensivelmente, passamos do filme policial clássico ao filme negro, de modo que cada novo patamar narrativo se resolve simultaneamente para melhor e para pior, com um final muito bem resolvido em duas cenas de alta tensão: Alejandro face a Fausto Alarcon/Julio Cedillo, o líder do narcotráfico, e a sua família, primeiro, face a Kate Macer, depois.
    Recuperando de "Raptadas" o director de fotografia Roger Deakins e o compositor Jóhann Jóhannsson, e com montagem de Joe Walker ("12 Anos Escravo"/"12 Years a Slave", de Steve McQueen, 2013, "Blackhat: Ameaça na Rede"/"Blackhat", de Michael Mann, 2015), com bom desenvolvimento narrativo, justa construção formal e boa resolução não se podia pedir mais ao filme nem a Denis Villeneuve (sobre o cineasta ver "Equívoco", de 6 de Julho de 2014).

domingo, 18 de outubro de 2015

Um caso muito sério - 3

   O terceiro volume de "As Mil e Uma Noites", de Miguel Gomes (2015), intitulado "O Encantado", fecha muito bem este tríptico, em tom diverso mas retrospectivamente esclarecedor - aliás em sentido um tanto diferente do segundo volume, "O Desolado".
   Num filme que é, no seu todo, declaradamente político, é aqui que o cineasta mostra melhor a sua estratégia de olhar para o aparentemente acessório, para as margens para, através dele, delas chamar a atenção dos espectadores para o essencial: os efeitos de um país em crise. Uma estratégia inteligente e que funciona bem, por entre claras alusões avulsas, que se entendem sempre muito bem.
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    De facto, contra um certo grau de ficcionalização que "O Desolado" implicava, depois de um prólogo que podia ser melhor sobre a própria Sherazade, este "O Encantado" trata em tom documental - tendencialmente documetal em função da maioria dos seus intérpretes, encenado com a participação dos que lhes são exteriores, ao que nada tenho a objectar - dos passarinheiros de Lisboa num capítulo intitulado "O Inebriante Cantar dos Tentilhões", que constitui a sua parte mais importante e mais longa. Pelo meio, há um curto capítulo intitulado "Floresta Quente", em que uma chinesa, que nunca se vê, conta a sua vida em Potugal enquanto é mostrada nas imagens uma manifestação de polícias, e uma manifestação política contra o Governo em que se canta "Grândola" e o hino nacional.
   Perante tanto "politicamente correcto", os passarinheiros, as suas histórias e as suas competições dadas em pormenor funcionam como centro agregador mas também de distracção - sem qualquer outra alusão profissional, durante a crise a população continuou a sua vida comum, o que serve como despertar para a realidade com crise e para além dela, e era já era sinalizado contrapontisticamente pelo curto episódio de apicultura no início do primeiro volume, "O Inquieto".
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   Não sendo, nem querendo parecer ingénuo, numa sucessão de acontecimentos sem história Miguel Gomes acompanha aqui um grupo populacional mal conhecido de que capta e transmite muito bem as práticas e os hábitos, muito característicos e largamente alusivos. Com a ideia de que os passarinheiros existem assim há muito e vão continuar a existir por muito tempo, com crise ou sem ela, sem que ninguém dê por eles e sem incomodarem ninguém.
    Para compensar do início equívoco e de circunstância, destinado a estabelecer a narradora no seu papel, no final o cineasta despede-se com uma pirueta cinematográfica, em jeito português de "ora toma e embrulha": as ervas ao vento, uma panorâmica de 360º (lembrem-se quem e quando o fez antes no cinema) e um longuíssimo travelling de acompanhamento do protagonista que caminha - tudo nos quinze minutos finais, o que por mim não era preciso, embora compreenda, e até aplauda, como necessidade de "demarcação de território" cinematográfico.
                    Miguel Gomes
     Com os reincidentes Crista Alfaiate, Carloto Cotta e Gonçalo Waddington, volta a ser Chico Chapas como passarinheiro-guia a dominar o filme, revelando de novo ter sido ele a grande descoberta e criação de Miguel Gomes neste seu tríptico.
     Como balanço, só agora possível, discute-se, por exemplo, qual dos três filmes é o melhor - eu sou pelo segundo volume, "O Desolado", apesar da grande qualidade que reconheço aos outros dois. O grande final está no primeiro volume, "O Inquieto" - e percebe-se agora melhor que, com desempregados, nem sequer era excessivo -, enquanto este terceiro volume, "O Encantado", termina em grande em termos formais sobre um homem que caminha só. 
     Sabe-se que Miguel Gomes trabalhou longamente a montagem final de "As Mil e Uma Noites" e este terceiro volume, "O Encantado", aparenta ser, dos seus três volumes, aquele em que ele terá levado mais longe uma via de compromisso e aquele que, talvez por isso, surge como menos equilibrado (sobre este tríptico, ver "Um caso muito sério - 1", de 4 de Setembro de 2015, e "Um caso muito sério - 2", de 29 de Setembro de 2015).

Sobre poesia

    "Tar"/"The Color of Time" (2012) é um curto filme inesperado, escrito e realizado por 12 estudantes da New York University sobre o conhecido e laureado poeta americano C. K. Williams (1936-2015). Vi-o quase por acaso e tenho a ideia de que muito poucos mais o terão, mesmo por acaso, visto.
    Composto como memórias do poeta, da infância até jovem adulto, transvasadas nos seus poemas, "Tar" tem a ingenuidade da juventude e de memórias felizes ou mais difíceis, que surgem dispersas em breves fragmentos, quase flashes do passado, enquanto o poeta lê e são lidos alguns dos seus poemas.
                                    C. K. Williams
     O filme interessa-me por dois motivos: primeiro porque procura traduzir poesia em filme, o que é raro e ainda mais raramente conseguido; segundo porque, composto como uma sucessão de curtas-metragens, com planos em geral curtos, por vezes bordejando o vídeo-clip, não se dispensa de recorrer ao grande-plano, ao plano de pormenor e, ocasionalmente, ao plano subjectivo, o que cria uma grande variedade expressiva.
    "Tar" tem sopro, excertos livres, ritma-se ao sabor da memória e das palavras, também da música, mudando rapidamente de espaço e de tempo devido a uma montagem veloz. Num tal gesto de amor pela poesia e pelo cinema traduzido em experimentação conseguida, todas as críticas formais me parecem perfunctórias
     Com James Franco a interpretar Williams na juventude, Jessica Chastain a interpretar a sua mãe ("os lábios da minha mãe)" e Mila Kunis como a sua jovem mulher, Catherine, com música de Garth Neustadter e Daniel Whol, "Tar" é um filme jovem, feliz e inspirado, que sem maçar enriquece e por isso aqui vivamente aconselho.

sábado, 10 de outubro de 2015

O irmão mais novo

    "O Olhar do Silêncio"/"The Look of Silence", do americano Joshua Oppenheimer (2014), é o segundo filme de um díptico sobre o genocídio cometido na Indonésia nos anos 60 do Século XX, de que o primeiro foi "O Acto de Matar"/"The Act of Kiling" (2012) - ver "O lugar do outro", de 29 de Dezembro de 2014.
    Muito justamente, este segundo filme assume expressamente a perspectiva das vítimas na pessoa do irmão mais novo de uma das vítimas do terror e do massacre de então. É através dos olhos e das palavras dele que nos aproximamos das testemunhas da época, quer os seus familiares, quer os assassinos.
                                             
    Estes, contrariamente ao que sucedia no filme anterior, não são levados a recriar na actualidade, em modo de psicodrama, o que aconteceu há meio século, antes se limitam a ouvir e a ver imagens, que o próprio inquiridor vê e mostra.
      Perante a evidência do passado e as questões colocadas, a atitude actual destes torcionários assassinos é diferente da assumida em "O Acto de Matar": obedeciam a ordens, as vítimas eram comunistas, passou muito tempo e é preferível não falar mais no assunto. E é aqui que Joshua Oppenheimer, repetidamente interpelado pelas personagens com hostilidade, se revela extremamente pertinente e muito oportuno perante o inaceitável, moralmente condenável e a negação radical de qualquer ideia de direito - por isso considerado crime contra a humanidade -, que os seus próprios perpetradores se recusam a aceitar como mal, como errado.
                    Adi Rukun and his mother, Rohani, in ‘The Look of Silence'
   "O Olhar do Silêncio" é, pois, o olhar das vítimas, nomeadamente do irmão mais velho, convocado pela memória do irmão mais novo e recordado pelos pais. Mas percebe-se que também os assassinos o recordam sem arrependimento nenhum. Silenciar o crime abominável e horrendo significaria ignorá-lo, contra o que o cineasta muito justamente constrói este seu díptico de documentários: para que não seja esquecido, nem minimizado, nem repetido.
    Para tratar de um caso concreto o dispositivo ocular é muito apropriada e oportunamente utilizado no filme pelo optometrista, criando distância mas indicando que é preciso ver bem, ver sempre melhor, qualquer que seja a idade, em todos os sentidos e tempos. E não olhar para o lado, não esquecer nem calar, até porque esta é uma história que não tem cessado de se repetir, sempre com as mesmas boçais, grotescas, odiosas explicações, para vergonha de toda a humanidade.

Sem palavras

   Fico sempre sem palavras quando morre alguém de entre os que mais amo. Voltou a acontecer-me agora com a notícia da morte inesperada da cineasta belga Chantal Akerman (1950-2015).
    Penso conhecer a quase totalidade da sua obra, uma das mais importantes do cinema dos últimos 50 anos e, para mim, a mais importante de uma mulher-cineasta. 
                    
    Ligava-me a ela ter visto o fundamental "Jeanne Dielman: 23, Quai du Commerce: 1080 Bruxelles" (1975), um dos filmes mais importantes e influentes do primeiro século do cinema. A partir daí passei a acompanhar todos os seus filmes em festivais de cinema, em distribuição comercial ou na televisão. Sem ter gostado especialmente de "Um Divã em Nova Iorque"/"Un divan à New York" (1996) ou "Amanhã Mudamos de Casa"/"Demain on déménage" (2004), no entanto dois filmes muito bons, apreciei o seu regresso a um tom mais pessoal nos seus outros filmes, em que insistiu sempre e mesmo nesses dois filmes mais "comerciais", e por isso mais conhecidos, estava presente.
     Depois de "Jeanne Dielman", entre "Os Encontros de Anna"/"Les rendez-vous d'Anna" (1978), "Toute une nuit" (1982), "Golden Eighties"  (1986), "Letters Home" (1986), "Histoires d'Amérique" (1989), "Nuit et jour" (1991) e "A Cativa"/"La captive" (2000) Chantal Akerman construiu o melhor, que foi também o mais pessoal, da sua obra, .
                    
   Mas os seus documentários foram também sempre excepcionais - "D'Est" (1993), "Sud" (1999), "De l'autre côté" (2002), "Là-bas" (2006), nomeadamente - e a sua passagem para a vídeo-instalação, que reforçou o seu estatuto de grande artista visual, um sucesso que pude acompanhar. Aí ela pôde, sem peias narrativas, prosseguir a estética do plano fixo e longo, aberto ao espaço mas também ao tempo, que em "Jeanne Dielman" inaugurara de forma superior, sem dela fazer questão quando não lhe interessava. Fiel à sua ascendência judaica, debruçou-se em alguns dos seus filmes sobre os locais e épocas mais controversos. Praticou também a curta-metragem, em que se iniciou em 1968, e o filme para televisão. 
    Chaltal Akerman foi, com Jean Eustache (1938-1981) e Philippe Garrel, dos últimos e melhores modernos do cinema europeu, surgidos a seguir à eclosão da nouvelle vague francesa e na mesma onda. Como com eles aconteceu, assumir a subjectividade da criação cinematográfica foi para ela absolutamente de rigor. (Sobre Chantal Akerman, ver "Obsessões", de 27 de Fevereiro de 2012, "Instalações em diálogo", de 26 de Outubro de 2012, e "O sopro das origens", de 24 de Outubro de 2014.)

sábado, 3 de outubro de 2015

O coleccionador

     Na retrospectiva integral de Jacques Tati (1907-1982) que a Medeia Filmes promoveu este Verão, uma iniciativa muito importante ao nível de outras sobre grandes nomes da história do cinema realizadas em anos anteriores, dos poucos filmes do grande cineasta e actor francês limitei-me a assistir à sessão que reúne as suas curtas-metragens iniciais a preto e branco, interpretadas por si em filmes que, salvo num caso, não dirigiu, e duas outras mais recentes, já a cores, feitas com a sua filha Sophie Tatischeff (1946-2001).
      Mesmo que já tivesse podido ver um ou outro desses filmes iniciais em sessões desgarradas da Cinemateca Portuguesa, foi agora que pude olhar para eles no sentido que fazem ao esboçarem, já com o cinema sonoro, a figura e os filmes com Monsieur Hulot, que marcaram uma época e anteciparam a nouvelle vague francesa, que influenciaram.
                      
     É muito curioso não só observar os movimentos desajeitados do alto e magro jovem Tati, que procuram, ainda no escuro, uma outra coisa que só com o tempo se viria a definir em figura física, inocente e ingénua mas observadora, perturbadora e reveladora, como verificar mesmo breves momentos em que são esboçados, de forma incipente, gags que viriam a ser desenvolvidos pelo cineasta nas suas longas-metragens. 
     De resto, são patentes as influências dispersas dos que o tinham precedido no burlesco mudo: Max Linder, sobretudo Chaplin mas também Buster Keaton. As curtas-metragens iniciais com Jacques Tati são "Procura-se Brutamontes"/"On Demande une brute", de Charles Barrois (1934), "Domingo Animado"/"Gai Dimanche", de Jacques Berr (1935), em ambos dos quais ele contracena com o palhaço Rhum, "Cuida do teu Gancho Esquerdo"/"Soigne ton gauche" (1936), de René Clément, e "A Escola dos Carteiros"/"L'École des facteurs", já realizado por ele próprio (1946).
                      L'Ecole des facteurs : Photo Jacques Tati
      No final desta sessão o documentário de circunstância "Força, Bastia"/"Forza Bastia", de Jacques Tati e Sophie Tatischeff (1978), e "Especialidade da casa"/"Dégustation maison", de Sophie Tatischeff (1976), que recorda de modo breve, em interior familiar e em exterior, o universo do grande Jacques. 
        De Jacques Tati interessa ainda "O Mágico"/"L'illusionniste", de Sylvain Chomet (2010), filme de animação baseado em argumento original seu. Sempre que posso, como um coleccionador vejo todos os filmes dos cineastas que amo. E falo disto agora porque ainda vão a tempo de ver, em versões digitais restauradas, os filmes todos que passam neste ciclo dedicado a um nome maior do cinema.

Sobre o fado

    O mais recente documentário de Bruno de Almeida, que já tinha feito "Amália - Uma Estranha Forma de Vida" em vídeo (1995) e "A Arte de Amália" (2000), volta a dedicar-se ao fado, desta feita sobre aquele que é provavelmente o melhor e mais conhecido fadista da actualidade em "Fado Camané" (2014).
    Ao filmar e ouvir o fadista durante os ensaios para a gravação de um novo álbum, "Sempre de Mim", o filme de Bruno de Almeida acompanha-o enquanto, sob a direcção de José Mário Branco, vai buscando e encontrando progressivos aperfeiçoamentos das suas interpretações tendo em vista os ritmos e as vocalizações perfeitos da sua voz, seguindo a música tocada por Carlos Bica e o seu grupo mas também cada poema.
    Sem ser um apreciador do fado, posso admirá-lo quando interpretado a este nível, com perfeita articulação das palavras por uma voz pujante e própria, como neste caso acontece. Sem nunca dar um fado completo, filmando excertos o cineasta intercala-os com os diálogos do fadista com o director musical, com os músicos e com Manuela de Freitas, autora de poemas para fado, mas também com a entrevista feita a Camané por um interlocutor presente na imagem.
                      
     A preto e branco e sem sair do interior do estúdio de gravação, apoiado no grande-plano e na montagem dinâmica "Fado Camané" é um filme de grande expressividade e afecto sem cair no vídeo-clip, um filme equilibrado, quase perfeito, em que são ditas coisas fundamentais sobre o fado e sobre o próprio fadista num tom descontraído, de proximidade.
     Enquanto saúdo este filme muito bom e bem vindo, aproveito para felicitar José Mário Branco pela atribuição este ano do prémio Carlos Paredes pelo 5º festival bienal Cantar Abril, uma distinção que muito justamente liga dois nomes fundamentais da música popular portuguesa.
      (Sobre Bruno de Almeida ver "A verdadeira história", de 21 de Agosto de 2014.)