“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Um caso muito sério - 2

    O segundo volume da "As Mil e Uma Noites" de Miguel Gomes, "O Desolado" esclarece melhor o filme que, no seu volume primeiro, "O Inquieto", vagabundeava entre o documentário e a ficção, sempre a partir de notícias da imprensa da época, entre 2013 e 2014, em Portugal, como se sabe porque o cineasta não se tem cansado de o dizer e repetir.
    Menos ligado a uma realidade documental, que nele só vagamente está presente, "O Desolado" constrói nas suas três partes uma realidade mais real do que a própria realidade, valendo-se da ficcionalização para mais expeditamente dar conta do que está em causa: um país em crise. E de forma de tal maneira feliz o consegue que o que nos apresenta é (acaba por ser) a crise permanente de um país que sem ela não se reconhece. 
                    "As Mil e uma Noites" (2015)_3
    O primeiro espisódio, dito de "Simão Sem Tripas", resolve-se com um homem solitário e a monte que transporta consigo a queixa generalizada dos portugueses de só arranjar mulheres que lhe dão cabo do juízo. O actor, Chico Chapas, é um achado e todo o episódio flui em espaço aberto, a montanha, e em tempo dilatado, cinematograficamente justo. 
    O segundo episódio, "As Lágrimas da Juíza", desenvolve-o muito bem ao esclarecer sobre o excesso de sentido que da falta dele resulta numa sucessão de deixas patéticas e aparentemente desligadas que, no grotesco agridoce das suas personagens, na sua falta de sentido constroem, num espaço fechado de anfiteatro ao ar livre, simultaneamente tribunal e teatro, um sentido maior a partir de dados imediatos da realidade - delicioso o "detector de mentiras" de Manuel Mozos. 
    O terceiro episódio, "Os Donos de Dixie", remete-nos para o subúrbio em que todos vivemos, entre vizinhanças que se desconhecem, problemas que se partilham, desesperos e imagens dúplices da realidade. A banalização da crise surge-nos, assim, como a crise banal de um país banal que no seu quotidiano se debate e tenta transcender-se sobrevivendo a todo o custo. 
                     "As Mil e Uma Noites, Volume 2: O Desolado" vai representar Portugal nos Oscars 2016
       Neste "O Desejado" pode estar, pois, o mais esclaredor e melhor desenvolvido de "As Mil e Uma Noites", de cujo projecto de facto não fazem senão marginalmente parte o documentário ou falar das causas e dos responsáveis da crise mas desta em vias de se desenrolar em nossa volta, connosco incluídos. Com um muito bom tratamento do plano e do fora de campo e um entendimento sagaz do tempo, este segundo volume constrói-se sobre narrativas múltiplas, três, cada uma das quais se vai subdividindo em outras, mais breves micro-narrativas.
       Se o cinema devia uma resposta à famigerada crise ela está em "As Mil e Uma Noites" de Miguel Gomes ao falar do absurdo que se agrava com ela num país de gente rude e complicada que, sem ser má, no seu orgulho é muito dada ao contrasenso, ao engano, ao diálogo de surdos e ao conflito. A plena entrega dos actores, com destaque para Margarida Carpinteiro, Luísa Cruz, de novo Adriano Luz, José Manuel Mendes, Teresa Madruga e João Pedro Bénard, estabelece num patamar de crença o que aparece como mais banal, que o jogo do cineasta com os sentidos múltiplos exponencializa e acrescenta - como o duplo Dixie no final esclarece.  
                     As Mil e Uma Noites- Volume 2, O Desolado (2015) de Miguel Gomes
    Inesperado apesar de tudo depois de "Aquele Querido Mês de Agosto" (2008) e "Tabu" (2012), este filme em forma de tríptico surge como apoteose do talento do seu autor: com todos os ingredientes banais e corriqueiros transfigurados por forma a com eles e sobre eles criar um grande filme visionário sobre um país difícil, que se desconhece a si próprio, quando atravessa dificuldades maiores que lhe permitem, talvez, conhecer-se melhor.
   A estreia por partes faz todo o sentido neste caso. Vamos ver o que nos espera em "O Encantado", o terceiro volume deste "As Mil e Uma Noites", que nos seus dois primeiros volumes nos dá grande cinema.

Sobre a fotografia

   O último filme de Anton Corbijn, "Life" (2015), é decididamente um filme sobre a fotografia e o cinema, o cinema visto por um fotógrafo, que o realizador começou por ser e também é, o que faz dele um objecto visual insólito e muito interessante.
   Corre o ano de 1955 na América e um fotógrafo em busca de trabalho e visibilidade, Dennis Stock/Robert Pattinson, persegue literalmente uma jovem revelação do cinema, James Dean/Dane DeHaan, apanhado entre dois filmes, "A Leste do Paraíso"/"East of Eden", de Elia Kazan, e "Fúria de Viver"/"Rebel Without a Cause", de Nicholas Ray, o que nos coloca no coração da última década prodigiosa da idade de ouro da Hollywood clássica.
                       LIFEHQ
    O problema, que é também a vantagem deste filme, é o seu realizador se comprazer na relação estabelecida então entre o fotógrafo, um desconhecido com problemas familiares, e o objecto das suas fotografias, que constantemente se escapa aos seus propósitos, propostas e desejos artísticos. Contudo, quem procura drama ou melodrama num filme que se desengane pois não o encontrará aqui.
   Sobre argumento de Luke Davies, "Life" de Anton Corbijn resolve-se, de facto, entre as artes visuais que a fotografia e o cinema são, na tentativa bem sucedida de paralisar os bastidores da imagem em movimento para uma arte mais séria, com uma relação directa mais imediata, se bem que instantânea, com a realidade. E escolher um mito que morreu jovem prossegue  muito bem um programa fílmico que, na obra do cineasta, vem de "Control" (2007).
   Com uma imagem cinematográfica limpa, sem efeitos mas mesmo assim uma imagem de fotografia, o cineasta consegue seguir James Dean nas suas deambulações pelo meio do cinema, entre festas (de Nicholas Ray/Peter Lucas), a namorada (Pier Angeli/Alessandra Mastronardi), agentes e produtores (Jack  Warner/Ben Kingsley) e o Actors Studio, até à festa de finalistas em que participa no seu Indiana natal, durante a visita que faz à sua família, na qual, dirigindo-se aos mais novos mas falando de si, ele fala da juventude como idade de amor e perda.
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    Contando com um grande encantamento fotográfico (direcção de fotografia de Charlotte Bruus Christensen), em que insisto, este um filme de época muito bem construído para aqueles que amam a fotografia e o cinema e prezam as histórias respectivas, muito bem simbolizadas no título, o de uma revista que foi célebre pela qualidade e oprtunidade dos trabalhos fotográficos que publicava, com os quais marcou uma época muito importante. As fotografias originais sobre o genérico de fim estão bem vistas e justificam-se plenamente
     Sem ser ainda um grande cineasta, Anton Corbijn está a construir-se no cinema de uma forma pessoal nestes já avançados anos 10 do Século XXI, pelo que se deve continuar a contar com o seu genuíno talento original (sobre ele ver "Homens de confiança", de 17 de Agosto de 2014).

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Vitor Silva Tavares (1937-2015)

    O homem que agora nos deixou foi um homem independente, radical e rebelde perante a cultura portuguesa oficial, a literatura e o gosto dominante.   
     O seu nome ficou indissoluvelmente ligado à editora & etc que, como editora independente de tudo e de todos, depois de preliminares não menores no jorrnalismo e na edição livreira fundou em 1973 e dirigiu até ao fim com o seu gosto pessoal, uma editora que marcou indelevelmente o mundo editorial em Portugal com obras trabalhadas uma a uma, peça a peça, a partir da capa, em edição única.
                      Vitor Silva Tavares Vítor Silva Tavares
       Sem ele e o & etc a literatura publicada em português (original ou tradução), prosa e poesia misturadas, não teria sido aquilo que foi até às suas margens mais extremas, também as mais vivas e esclarecedoras. A sua história está contada pelos participantes, incluindo o próprio Viítor, em "& etc - Uma Editora no Subterrâneo" (Lisboa: Letra Livre, 2013).
    Personalidade maior, embora discreta, da cultura portuguesa dos últimos 50 anos, indispensável para que os mais conhecidos tivessem onde publicar o que queriam em qualquer altura, os menos conhecidos fossem acolhidos e permanecessem (enquanto ele quisesse) e os melhores estrangeiros menos ortodoxos tivessem lugar, o Vítor Silva Tavares permanece e perdura na sua cultura invulgar, integridade pessoal, honestidade intelectual, sentido do risco e da provocação mas também do humor - esgotando o meu vocabulário num crivo pessoal em que muito poucos outros como ele (se algum) passam.
                      Vitor Silva Tavares Autor Vitor Silva Tavares
      Deixou organizada a edição em 5 (cinco) volumes da "Obra Escrita" de João César Monteiro, que coordenou e introduziu em Intróito Inaugural ao Volume I (Lisboa: Letra Livre, 2014) - e na & etc tinham sido publicados antes, e em vida dele, três livros do João César. Por ele e por causa dele a cultura portuguesa não é só uma história de gente bem comportada e politicamente correcta, de mesuras e "melhores cumprimentos" em conivência cúmplice. Honra lhe seja prestada por causa disso na hora da sua morte, em que Lisboa entristece. E que o seu exemplo continue a frutificar.
      (Torna-se para mim ainda mais agreste conviver com os vivos depois da partida de mais este. Vocês só percebem isto se compreenderem que houve um tempo do & etc, o do Herberto, como houve um tempo do Orpheu, o do Pessoa. Funesto e luminoso centenário.)

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Um homem sombrio

     Pontualmente, como num ritual destinado a matar o vício e a curiosidade dos espectadores, chegou-nos o mais recente filme de Woody Allen, "Homem Irracional"/"Irrational Man" (2015), um filme muito curioso e cheio de diálogos, com duas vozes off narrativas.
    Com a  variedade de grandes actores em pequenos ou grandes papéis nos filmes dele, pergunta-se sempre quem ainda não entrou em nenhum para criar expectativa. Calhou desta vez ser Joaquin Phoenix, uma escolha excelente para Abe, um professor de filosofia e filósofo sombrio, segundo o cliché da profissão e da actividade.  
                   
     A questão que se coloca no filme é também a do costume nessas circunstâncias, ou seja, a de uma aluna, Jill/Emma Stone (actriz que reincide depois de "Magia ao Luar", 2014), que se apaixona pelo professor que vive uma crise existencial e se entrega ao alcool. Com o seu físico e a sua expressividade, Joaquin Phoenix dá-nos um Abe que procura os limites da existência e da sua afirmação como ser humano, partindo da sombra para atingir alguma claridade a partir do momento em que consegue ter sexo com uma mulher, o que não lhe acontecia há um ano.
     Mas tudo isto rodeia a decisão de Abe de, sem ninguém saber, eliminar, envenenando-o, um homem que ele casualmente fica a saber estar a fazer mal aos outros no exercíciio da sua profissão de juiz de família. E aqui saltamos logo para "A Corda"/"Rope", de Alfred Hitchcock (1948), um filme que, justamente com um antigo professor e dois ex-alunos seus, levantava essa questão, a da "legitimidade de matar", embora seja sobretudo recordado pela sua filmagem num único cenário e num único plano-sequência. A diferença está em que aqui a aluna, Jill, quando descobre o que Abe fez e este lho confessa, ameaça denunciá-lo se ele não se entregar voluntariamente à polícia.
                     irrationalman
      Correndo ligeiro ao sabor do ritmo imposto pelos seus dois narradores off, "Homem Irracional" dedica-se a jogos filosóficos, conduzidos pelo mestre, que acaba por se deparar com os limites paradoxais dos seus actos: a fundamentação filosófica ou moral de um crime é em geral muito complicada e leva normalmente ao absurdo, o que aqui uma vez mais acontece. Que o cineasta tenha abordado esta questão neste filme, como sempre com argumento seu, revela-se muito oportuno num momento em que, nos Estados Unidos em especial, se mata tanto e com tanta facilidade.
     Sem grandes complicações formais e com boas ideias narrativas (o parque de diversões, a lanterna), Woody Allen cumpre com aprumo aquilo a que está obrigado e a que nos habituou: mais um filme por ano. Evidentemente que o mal de vivre de Abe é sem remédio, os seus actos são sem regresso e a razão, em especial quando jovem, acaba por impor-se contra ele. Ainda bem que assim acontece.
                     Emma Stone and Joaquin Phoenix in "Irrational Man"
        "Homem Irracional" é um filme bom e desembaraçado, em que Woody Allen mantém o bom gosto e a elegância a que nos habituou, uma pequena jóia, discreta e sombria, na sua obra, cumprindo bem a sua função de parábola dostoievskiana demonstrativa, excessivamente demonstrativa mesmo, para o meu gosto - e nesse excesso está o seu maior limite. Por sua vez, o encontro entre Joaquin Phoenix e Emma Stone funciona muito bem e marca uma data neste filme.   
        (Sobre o cineasta, ver "Um americano em Paris", de 12 de Agosto de 2012, "Blue Moon", de 21 de Setembro de 2013, e "O dom e o sinal", de 13 de Setembro de 2014).       

sábado, 19 de setembro de 2015

Um artista africano

    Rui Simões, o prestigiado documentarista português autor dos seminais "Deus Pátria Autoridade" (1976) e "Bom Povo Português" (1980), resolveu dedicar um documentário longo ao mais conhecido e internacional artista angolano, o que resulta em "Ole António Ole" (2013), que só agora tive oportunidade de ver e aqui refiro por ser um filme notável.
     Entramos no filme pela visita do artista ao espaço desactivado e em ruínas de um antigo cinema, para depois continuarmos a acompanhar António Ole entre o seu atelier em Luanda e as suas deambulações pela cidade mas também pela sua memória, o que é especialmente bem feito com recurso a imagens de filmes tanto de Rui Simões como do próprio artista, também cineasta, fotógrafo e criador de instalações.   
                    Rui Simões
      Ora as memórias de Ole têm o maior interesse por se referirem tanto ao período anterior à independência, incluindo a sua permanência em Portugal, como à própria independência de Angola e à sua vida daí para a frente, tudo ilustrado por excertos de filmes de um e do outro e por imagens de arquivo. Por sua vez, os comentários e esclarecimentos, naturais e descontraídos, do artista sobre o seu trabalho com diversos materiais são muito significativos e sempre pertinentes.
       Mas é na última meia-hora que o filme sai do apesar de tudo comum no documentário sobre artistas, ao acompanhar António Ole na sua saída da cidade justamente à procura na praia dos materiais para o seu trabalho e no seu mais recente e mais amplo espaço de trabalho, perspectivando trabalhos futuros. E aí o filme de Rui Simões atinge a sua verdadeira dimensão ao reunir os quatro elementos, Terra, Água, Fogo e Ar, de uma maneira justa e feliz.
                    Ole extraindo o material que usará para pintar. DR
      Diz António Ole em dado momento que precisa do contacto com a realidade porque a sua arte parte da vivência pessoal, e esclarece mais que as suas obras mantêm um essencial espírito crítico, o que deve ser especialmente notado. Além disso, ele insere-se, como artista angolano, numa estética africana, o que é muito bem visto e esclarecedor (esclarecido por ele), pois todos nós precisamos de conhecer mais a arte africana, incluindo a angolana, e de conhecer melhor a estética africana.
       Com um objecto à sua altura, é, pois, muito bom este novo documentário de Rui Simões, que a música angolana anima.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

A palavra

     Nestes tempos de crise humanitária dos refugiados que procuram fugir à guerra e às privações nos seus países de origem rumo à Europa, quem me tem dado a informação e o comentário apropriado, diversificado e esclarecedor não tem sido a BBC World News (sem Zeinab Badawi, em geral entregue a teenagers de todos os sexos e de todas as idades e baseada  sobretudo nos seus bons correspondentes internacionais), nem a CNN (com uma Amanpour que no escasso tempo de que dispõe diaramente tem de tratar três assuntos diferentes, o que significa muito pouco tempo para cada um deles), mas Élisabeth Quin no Arte.
   Contra a noção do "politicamente correcto", neste como noutros casos completamente desajustada, no seu programa diário "28 minutes" ela tem conseguido, com a participação de convidados diversificados e conhecedores dos assuntos, além dos permanentes, dar-nos um ponto de vista justo com a desmultipliação de perspectivas que, frequentemente em controvérsia, nos permitem ajustar a nossa e perceber melhor.
                     La journaliste Elisabeth Quin, aux commandes du magazine d'actualité "28 minutes" sur Arte.
     A questão é muito difícil e muito dolorosa para aqueles que a vivem, tem implicações políticas diversas para intervenientes diferentes, e onde os outros não chegam a não ser pelas imagens chocantes, que também interessam e devem ser vistas, chega Élisabeth Quin no seu programa, com o seu comentário e o dos seus convidados, de modo que permite situar tudo em tempo real, doa a quem doer. Nesta e noutras questões, francesas, europeias e mundiais, a variedade de problemas envolvidos, problemas actuais e muito duros, é neste seu programa de debate que se encontra. Por isso aqui o aconselho sem reservas.
     Neste caso, eu sou pelo Arte porque sou por Élisabeth Quin. Sou pela televisão porque sou pela palavra. Sem ela tudo fica frio e seco na evidência da própria imagem que se trata, justamente, de interrogar, de pensar na sua própria evidência e no que por trás dela está. Para melhor compreender a actualidade. E atenção ao assomar avulso da extrema-direita, xenófoba e racista.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Altos e baixos

    Depois de alguns filmes mal recebidos pela crítica e pelo público ("O Acontecimento"/"The Happening", 2008, sobretudo "O Último Airbender"/"The Last Airbender", 2010, e "Depois da Terra"/"After Earth", 2013), M. Night Shyamalan estreou "A Visita"/"The Visit" (2015), que é um filme mais ao jeito dos seus filmes iniciais, "O Sexto Sentido"/"The Sixth Sense" (1999) nomeadamente, que lhe valeram a boa fama de que ele começou por beneficiar.
                   The Visit     
    Comparo, contudo, o seu caso com o de Atom Egoyan, que como ele caiu em desgraça a partir de certa altura sem ter deixado de ser o grande cineasta que era. De facto, os três filmes anteriores de Shyamalan não eram tão maus como os quiseram pintar, pois todos eles mantinham, apesar de tudo, a sua marca criativa de autor. Na obra de todos os grandes cineastas há filmes maiores e filmes menores, filmes em que mantiveram maior ou menor controlo criativo, de modo que acontecer-lhe também a ele não tem, a meu ver, nada de original nem de especialmente grave.
    Este "A Visita" devolve-nos, mesmo assim, a imagem conforme de Shyamalan, com falsas pistas em falsos momentos dramáticos e súbita revelação em grande tensão do que de facto está em jogo numa aparentemente inofensiva visita de dois irmãos a casa dos seus avós. De novo neste filme, declaradamente de terror, apenas o filme que, bem integrado, a irmã mais velha está a fazer, os contactos via skype com a mãe e o casal idoso que está em vez de um outro, o que em todo o caso implica a presença de três gerações diferentes.
                      The Visit
    Com o cineasta de novo como realizador, argumentista e co-produtor, no que à mise en scène respeita interessam-me sobretudo os planos de interiores tirados em diagonal do espaço - e "A Visita " decorre na sua maior parte no interior de uma casa perdida no meio da floresta -, a montagem e a dinâmica das interpretações, em contrastes etários muito bem defendidos em termos de diálogos. Pelo dispositivo cenográfico e mesmo narrativo, o filme não deixa de trazer à nossa memória "Shining"/"The Shining", de Stanley Kubrick (1980).
     Agora de novo bafejado pelos favores de alguma crítica de referência, vamos ver o que M. Night Shyamalan vai fazer a seguir a um filme que, pela pena de Manohla Dargis, foi considerado pelo The New York Times um "Hansel and Gretel" dos novos tempos, sempre com a noção de que ele é um cineasta importante. No cinema, nomeadamente no cinema americano, estes altos e baixos são muito comuns, pelo que não devem ser sobrevalorizados.

sábado, 12 de setembro de 2015

Entre o temor e o amor

   "A Vingança de Michael Koolhaas"/"Michael Kohlhaas", de Arnaud des Pallières (2013), é o primeiro filme desta cineasta francês a estrear entre nós e, portanto, o seu primeiro filme que conheço.
   Embora baseado na mesma novela de Heinrich von Kleist, não se trata propriamente de um remake de "Michael Kohlhaast, O Rebelde"/"Michael Koolhaas - Der Rebell" de Volker Schlöndorff (1969) mas de uma nova leitura do mesmo texto, sem deixar nada a dever à anterior.
                      Michael Kohlhaas - Justiça e Honra : Foto David Kross, Mads Mikkelsen
   Num ambiente muito bem reconstituído, o protagonista/Mads Mikkelsen debate-se com a sua revolta, transformada em revolta camponesa, contra a injustiça da aristocracia dominante, não por causa da não devolução de dois cavalos negros nem por causa da morte da sua mulher e mãe da sua filha, Judith/Delphine Chuillot, como ele explica a esta, Lisbeth/Mélusine Mayance, mas porque...
    Em contexto de época muito bem reconstituída e com excelentes interpretações, com recurso regular e judicioso ao grande-plano e ao plano de pormenor em contraste com planos gerais o cineasta não desdanha os diálogos, neste caso essenciais, em que avultam os que Kohlhaas trava com a filha, com o Pastor/Denis Lavant e com a Princesa/Roxane Duran, este último com o precioso esclarecimeno de que ele se debate entre o amor dos que o seguem e o temor dos inimigos.  
                      Mads Mikkelsen. © Les Films du Losange
    O tom de tragédia do texto kleistiano é respeitado e o abismar-se do protagoniata perante o seu destino ainda hoje, apesar da ausência sistemática de individualiazação suficiente dos seus seguidires, na realização de Arnaud des Pallières nos comove. E aqui é preciso ler no rosto de Michael Kohlhass e de Lisbeth, a sua filha, o enigma deste filme.
     "A Vingança de Michael Kohlhass" é, pois, um filme muito bom, que revela um cineasta que vale a pena conhecer.

Uma ficção australiana

     Foi desta maneira seca que o Arte apresentou ontem "Mes garçons sont de retour"/"The Boys Are Back", de Scott Hicks (2009), um melodrama exemplar baseado em factos reais. Sobretudo conhecido por "Simplesmente Genial"/"Shine" (1996) e "A Neve Caindo Sobre os Cedros"/"Snow Falling on Cedars" (1999), o cineasta desenvolve neste filme mais recente um trabalho dramático e cinematográfico muito bom, que volta a chamar a atenção para o seu nome pelas melhores razões.
                    
       De facto, com uma narrativa dilatada no tempo baseada na relação entre um pai, o jornalista desportivo Joe Warr/Clive Owen, e os seus filhos depois da morte da mãe da sua filha mais nova, Katy/Laura Fraser, o filme tem um desenvolvimento dramático sereno, em que avultam o aparecimento recorrente da mãe morta e a relação difícil de Joe com o filho mais velho, de uma mãe diferente, Artie/Nicholas McAnulty, o que uma montagem tensa, baseada em planos curtos, por vezes no limite do vídeo-clip, contraria, instaurando um novo dramatismo onde ele parece quase afastado.
     Além disso, ao tratar de problemas de famílias modernas, transversais (e neste caso monoparental), Scott Hicks faz, em termos de realização cinematográfica, o "cerco" ao seu actor principal, Clive Owen, que aqui mostra todo o seu talento com sobriedade física e expressividade fisionómica, mostrando ser um actor perfeitamente à altura dos papéis mais exigentes.
                     https://blackboxblue.files.wordpress.com/2010/09/the-boys-are-back-16.jpg
        Com o desporto australiano (natação, ténis) muito bem incluído na televisão, na sombra física da presença fantomática de Katy paira o fantasma de "Rebecca", de Daphne Du Maurier e Alfred Hitchcock (1940), tanto mais significativo quanto no final, depois de uma separação rápida entre pai e filho e uma vez recuperado este em duas cenas muito bem encenadas, ela aconselha a Joe que compre um descapotável, com o qual ele desaparece no final, acompanhado pelos filhos, no flanco da montanha - como num filme de Abbas Kiarostami que segue princípios técnicos e estéticos opostos aos deste, embora trate no fundo de questões semelhantes.
         Não vi na estreia - chamou-se em português "Só Eles" -, vi agora e gostei, eu que, sempre nos antípodas de tudo isto, gosto do cinema australiano (ver "Um regresso significativo", de 18 de Novembro de 2012) e da televisão australiana (ver "A Austrália, evidentemente", de 29 de Setembro de 2013) e não aprecio em especial o melodrama como género cinematográfico.

sábado, 5 de setembro de 2015

Adaptação livre

    Passou ontem no Arte "Três Irmãs"/"Les trois soeurs", de Valeria Bruni Tedeschi (2015), adaptação livre da peça homónima de Anton Tchékhov feita pela realizadora, Noémie Lvovsky e Caroline Leruas e com interpretação de actores e actrizes da Comédie-Française.
                     http://backoffice.telecablesat.fr/business/img/photos/biz/news/trois_soeurs2.jpg
     Feito embora para televisão, o filme nada perde graças à excelente adaptação, às grandes interpretações e a uma realização inteligente, que deixa a câmara perder-se e divagar entre aquele punhado de personagens, seguindo-as e deixando-as para frequentemente deixar quem fala fora de campo, num filme todo ele construído sobre esta figura da linguagem cinematográfica.
     Tenho em grande apreço Valeria Bruni Tedeschi como actriz e como realizadora de cinema ("É Mais Fácil Um Camelo..."/"Il est plus facile pour un chameau...", 2003, "Actrizes"/"Actrices", 2007, "Um Castelo em Itália",/"Un château en Italie", 2013), qualidade esta em que ela aqui volta a mostrar todos os seu dotes de uma forma superior com um material narrativo superior.
                     http://cdn3-elle.ladmedia.fr/var/plain_site/storage/images/loisirs/television/on-ne-rate-pas-les-trois-soeurs-de-valeria-bruni-tedeschi-2979963/55969273-1-fre-FR/On-ne-rate-pas-Les-Trois-soeurs-de-Valeria-Bruni-Tedeschi.jpg
      Paradas num tempo indeciso, entre o final do Século XIX e o início do XX, as personagens de "Três Irmãs" desenvolvem no espaço de uma mansão de província uma teia cerrada de relações com diálogos fabulosos em que as palavras breves falam tanto como os grandes arroubos dramáticos, de forma a nunca juntar o que se aproxima e ir afastando o que estava próximo, com inevitável insatisfação e perspectiva de solidão revelando a modernidade do texto. 
      A justa inclusão da máquina de projectar do cinema, do ecrã e de filmes, um dispositivo muito bem utilizado visual e narrativamente, e um curto filme de Georges Méliès no final valorizam este grande filme. (Anton Tchékhov está publicado em português pela Relógio D'Água.)

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Um caso muito sério - 1

     O primeiro volume de "As Mil e Uma Noites", de Miguel Gomes (2015), intitulado "O Inquieto", introduz-nos numa saga de que não conheço ainda os dois volumes seguintes. Perplexo e expectante perante a vastidão do projecto, apesar do bom cruzamento entre documentário e ficção, já utilizado pelo autor em "Aquele Querido Mês de Agosto" (2008), este início deixa-me também apreensivo e insatisfeito, o que me leva a colocar-lhe algumas questões.
     Embora a introdução do cineasta em fuga seja muito boa e fundamental para entender o que se segue, filmar portugueses em crise durante o auge dela surge como um projecto generoso mas com o seu quê de diletante: porquê aqueles e não outros? sobretudo porquê aflorar questões avulsas sem aprofundar nenhuma delas? porquê um retrato tão inócuo dos governantes e outros responsáveis - embora eu reconheça que a caricatura que deles traça se destina a tornar-se compreensível para o comum dos espectadores? 
    As questões podiam suceder-se, pois o tom de encantamento que percorre este primeiro volume de "As Mil e Uma Noites" não ilude que há naquele material pontas de iceberg que interessaria trazer à superfície mesmo que em muito menos tempo que o total deste primeiro volume, o que o realizador, também argumentista com Telmo Churro e Mariana Ricardo, porque não é ingénuo sabe e faz com que fiquem como alertas para os espectadores e outros cineastas portugueses eventualmente interessados.
                    Miguel Gomes entre o vivido e o imaginado
        Mas o projecto de Miguel Gomes não foi esse, antes o de apresentar apesar de tudo uma imagem aceitável, diria mesmo patriótica do país e uma imagem ainda mais melhorada de si próprio como cineasta, para consumo interno e sobretudo externo - propósito legítimo, a que nada tenho a objectar e que, pelo que tenho podido apreciar, parece ter sido atingido, e ainda bem.
       Colocadas liminarmente estas objecções, o filme em si mesmo desenrola-se em termos acessíveis e com algum encanto que a fantasia ajuda a estabelecer, em que o episódio menor dos políticos e afins, na sua malícia a traço grosso mais eficiente, se integra bem. Ali está gente que foi explorada toda a vida e no momento das filmagens, 2013-2014, mais o foi ainda, ali está gente que sofreu, lutou, se debateu, e a amostra escolhida revela-se significativa. Uma vez introduzido o registo de Sherazade havia lugar para isso e para muito mais, para o que teremos que esperar pelos filmes seguintes da trilogia. 
        Não se nega, pois, antes se reconhece a este primeiro volume de "As Mil e Uma Noites" o mérito de dar rostos e vozes à crise, tirando-a do espaço quase abstracto para que o discurso político e a comunicção social a remeteram. Se esse era o objectivo principal é muito louvável e plenamente atingido, com dignidade e um enquadramento que o torna compreensível, num tom que chega a todos, o que no caso se impunha - também com a participação de grandes actores, como Adriano Luz, Rogério Samora, Maria Rueff, Diogo Dória. 
                   
      Mas no seu todo este "Volume 1, O Inquieto" deixa tudo como estava: não belisca seriamente ninguém ao nível que seria exigível (o que também permite compreender o unanimismo estabelecido a seu respeito), é superficial e mundano ("já viste o último filme do Miguel Gomes?"), o que se compreende e não lhe fica mal.      
     Agora deixar de fora ou definir por exclusão de partes os responsáveis pela crise parece-me leviandade, não usar de uma maior malícia uma oportunidade também ela perdida - o tom de encantamento estabelecido esquece a malandragem que impunemente há muito parasita e encrava o sistema de que se alimenta, sem assumir o tom abertamente malicioso que, por exemplo, João César Monteiro, que contudo penso teria apreciado pelo menos "a beleza do gesto", tinha, mas revelando-se devedor dele: tudo é fruto da imaginação de um cineasta em fuga. Mas esperemos pelos filmes seguintes.
                   Quando o cinema fala do nosso aqui e agora
       Evidentemente que aconselho sem restrições este filme e reservo a minha opinião final para o seu todo, quando o tiver visto: "Volume 2, O Desolado"; "Volume 3, O Encantado". Às minhas objecções supra poderá dar-se a resposta de que "o que é preciso animar a malta" e perante ela eu posso concordar que esse é um objectivo atingido por este "O Inquieto" - em excesso mesmo, com multidão, bandeira e hino no final. 
       Apesar de tudo mantenho a confiança - no filme no seu todo, entenda-se - porque o seu autor é um cineasta em crescimento, não apaziguado e inventivo, com muito boas provas dadas e que não se deixa abater (sobre Miguel Gomes ver "Festas de Verão", de 15 de Janeiro de 2012, e "Amores perfeitos", de 29 de Abril de 2012).