“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Uma ilha

           Recentemente estreado, o documentário "É Na Terra Não É Na Lua", de Gonçalo Tocha (2007-2011), é um filme ambicioso que cumpre com brio tudo aquilo que se propôs: filmar tudo e todos na Ilha do Corvo, nos Açores.
         Tratando-se de uma ilha muito pequena com uma população muito reduzida, 400-450 pessoas, tornava-se necessário que o realizador com a sua equipa procurasse guardar as distâncias possíveis e se aproximasse muito daquilo e daqueles que filmava sempre que tal se revelasse adequado. Além disso, tornava-se necessário filmar os diferentes lugares com os respectivos habitantes e/ou frequentadores, filmar as diferentes actividades, que não são muitas, e especialmente fazer seus os diferentes pontos de vista dos habitantes sobre a sua ilha, a sua realidade.
            Graças a uma longa permanência no Corvo e a um trabalho persistente, Gonçalo Tocha conseguiu ganhar a confiança da população local, o que é indispensável nestas condições, criar laços pessoais com cada um dos habitantes de maneira a que cada um deles acedesse a confiar-se à sua equipa de filmagens, composta por ele e o técnico de som. Deste modo, o realizador faz da senhora que, em sua casa, faz trabalhos de malha e conversa com ele o centro do seu relacionamento e do filme, de um modo que dir-se-ia ser exemplar para o próprio trabalho do filme, que se vai desenvolvendo a pouco e pouco, por aproximações sucessivas, mas sempre a partir de dentro, do interior da própria ilha, de que nunca saímos a não ser para o mar.
                     Fotogaleria do documentário «É NA TERRA NÃO É NA LUA»          
             Dividido em 14 capítulos, com um prólogo e um epílogo (último capítulo), "É Na Terra Não E Na Lua" acompanha os habitantes na natureza, com o gado e na pesca, nas ruas e largos da vila, nos interiores e no que a partir deles se pode ver, na estrada, no ciclo do leite, no matadouro, na discoteca, etc. Desse modo, acedemos à realidade da terra e das suas gentes, a uma vivência particular da insularidade que acaba por torná-la inteiramente central, por exemplo quando mostra a rica vegetação local, de um tipo a que no continente só temos acesso em jardins botânicos (aliás muito bons), ou os turistas que visitam a ilha por causa de uma ave que têm notícia de só ali existir.
           Além disso, a religião ocupa no filme um lugar que conserva junto da população mais velha, embora seja mostrado também um baptizado - os mais novos estão na discoteca -, a política local merece o devido relevo, com as críticas feitas ao poder regional e ao poder central e as propostas para o futuro, as aspirações culturais, que se centram na criação de um espaço multiusos, surgem já na parte final, jogando, aliás, com as imagens, fotográficas e de um ensaio, da filarmónica local. Mas o universo da ilha, que é também e inevitavelmente concentracionário, como é próprio de um ambiente fechado num meio pequeno, o que as imagens do porto, com as suas cargas e descargas, o baptismo de uma lancha, e as imagens do aeroporto vêm sublinhar - os contactos com o exterior são escassos -, e o espantoso monólogo de um homem verbaliza em termos muito claros no final de um capítulo, o capítulo 12, que começara numa lixeira (o capítulo anterior fora inteiramente preenchido por um homem que pesca num barco), o universo da ilha, dizia, tem facetas de uma espantosa beleza na natureza, na terra e no mar, no céu e nas nuvens, na noite e na lua, no entardecer. 
                      «É na Terra Não é na Lua»                 
            Aí são surpreendentes as imagens da chuva, na vidraça da casa ou no vidro do carro, das sombras das nuvens que correm sobre a estrada, a que se vai seguir a chuva, como das sombras da rocha na falésia ou da própria equipa de filmagens, como são de uma estarrecedora beleza as imagens das ribeiras que caem da falésia sobre o mar depois da chuva, rivalizando na natureza com as memórias da história do final da baleia e da Vigia da Baleia, com as histórias da imagem da santa e da estátua. Mas há também as imagens dos homens mais velhos da ilha, o mais velho dos quais toca mesmo acordeão, as imagens dos homens que conversam no interior da taberna, na rua, num largo, das mulheres que trabalham, por exemplo na queijaria, que se envolvem na política, que trabalham em casa ou se reunem na igreja.
           Quero, contudo, chamar a atenção para a breve cena no matadouro, muito bem resolvida em termos sonoros, e para as cenas da matança do porco e do nascimento de um vitelo, que dão uma característica cor local ao meio e à vivência da população. Mas também para a maneira como, em certas circunstâncias - o homem mais velho, a senhora que faz malha, as mulheres na igreja - o realizador resolve as situações com planos aproximados do rosto, mesmo dos olhos, e das mãos, permitindo-se aí muito justamente quebrar qualquer distância. Mesmo no exterior, mostra os dedos que tocam, os pés que caminham.
           Em "É Na Terra Não É Na Lua" há música, canções populares, uma lição de canto e um pianista a tocar, e há sobretudo momentos em que com grande pertinência e oportunidade são mostradas fotografias, que quebram o movimento, no final mesmo recortes legíveis de jornais, assim como há momentos em que, filmada de cima, a vila parece uma maqueta, momentos assombrosos como a subida ao ponto mais alto, no Caldeirão - movimento ascendente que contrasta com a queda da água das ribeiras do alto da falésia -, um homem a correr pelos campos, um barco que baloiça no mar, momentos de silêncio entre personagens imóveis sobretudo próximo do fim, tudo enquadrado pela aproximação de barco à ilha, vista do mar, pela perspectiva, as perspectivas do mar visto da terra, pelas aproximações ao porto.
                      It's the Earth Not the Moon 
          Uma pequena ilha que não tinha uma memória escrita, como é dito na parte final do filme, passa assim a contar, graças a Gonçalo Tocha, com uma memória fílmica inteiramente conseguida, digna e fidedigna (embora inevitavelmente incompleta), que não esquece o passado próximo, o século XX, nem o passado distante, do tempo da descoberta da ilha pelos navegadores portugueses. Este documentário é um filme precioso de um muito jovem realizador, que vem reafirmar que o documentarismo português atravessa uma fase muito boa. O próprio cineasta gere muito bem a participação da sua própria voz e da voz do técnico de som, Dídio Pestana, o diálogo que estabelecem e a informação adicional que proporcionam, o que torna ainda mais importante a sua criação deste filme.
      Algumas imagens em pose de mulheres, meninas e homens, breves palavras sobre a inevitabilidade da morte, a oferta do boné feito à malha com cinco agulhas, amplamento merecido, e depois é o fim deste filme belíssimo sobre o tempo que passa, o tempo que já passou na Ilha do Corvo, no arquipélago dos Açores, que nele fica, decantado, para memória futura.

Memória irrecusável

        Os presos políticos, que personificaram a oposição e a resistência ao regime ditatorial e fascista que governou Portugal durante 48 anos, de 1926 a 1974, encontraram em "48", de Susana de Sousa Dias (2010), uma cineasta inteiramente à altura para recolher num documentário as suas fotografias de cárcere juntamente com depoimentos pessoais, simples e directos, sobre a sua experiência de sujeição a torturas tremendas por parte polícia política, de cidadãos de um estado em que as mais elementares liberdades democráticas eram recusadas, os mais elementares direitos humanos desprezados. Penso que havia esta dívida do cinema português para com esses portugueses exemplares, de grande fibra, que não se vergaram nem desistiram ao longo de décadas, uma dívida que só um documentário com a dignidade e a qualidade cinematográfica que este filme tem poderia alguma vez pagar.
                                       
      A opção pelas fotografias de prisão, feitas a preto e branco durante o seu encarceramento, revela-se uma opção justa e com o maior impacto, pois retira qualquer veleidade de reconstituição outra que não seja a das palavras, que justamente as fotografias convocam. A este respeito, o cinema tem sempre a possibilidade, ocasionalmente explorada, do filme de ficção, que se sente, em geral, na obrigação de tudo mostrar e, portanto reconstituir visualmente. A grande secura da opção de Susana de Sousa Dias é também a sua ousadia, pois concentra toda a atenção do filme nos rosto e nos olhos dos presos nas fotografias, que não mentem e falam por si, e nas palavras que as acompanham sem serem mostrados na actualidade os autores dos depoimentos, do que resulta a maior emoção mesmo quando as vozes tentam a neutralidade. Assim, a dignidade do filme acompanha eticamente a dignidade daqueles que mostra e faz ouvir, retirando o maior partido da natureza indicial da fotografia.
        Porque hoje muitos, sobretudo os mais novos, desconhecem esta realidade do Estado Novo, da ditadura portuguesa, e também porque se verifica na actualidade uma tentativa de apagamento, de rasura da memória colectiva a vários níveis, era urgente que este filme fosse feito, recolhendo imagens e depoimentos. As torturas - do sono, da estátua, entre outras -, os choques eléctricos, a pancada, o isolamento, a humilhação, a tortura física, psicológica e moral de homens e mulheres ao ponto de chegarem a preferir a morte ou a loucura, tudo por que os presos políticos passaram na prisão está aqui documentado por aqueles que são os únicos que o podem testemunhar por o terem vivido, o terem sofrido, que falam também sobre os torcionários que o inflingiram. Em certos casos, diferentes fotografias tiradas aquando de diferentes prisões dão visualmente a noção da passagem do tempo. As referências ao clima social e político do tempo da ditadura, à guerra colonial e à Revolução de Abril, que pôs fim à ditadura e à guerra colonial, surgem com naturalidade no decurso dos depoimentos, que por vezes envolvem várias gerações.
                                
        Não tenhamos dúvidas em reconhecer nas imagens e nas palavras deste filme o rasto e os rostos dos comunistas portugueses, que encabeçaram o maior movimento de oposição e resistência clandestina ao regime. Com um grande rigor e um grande respeito por aqueles que mostra e ouve, Susana de Sousa Dias fez um filme com imagens de arquivo e com depoimentos vivos de protagonistas conhecidos destas andanças pelo século XX português que merece ser visto e divulgado para que se cumpra o seu propósito: recolher e transmitir as memórias do horror, para que o esquecimento não caia sobre elas e sobre aquilo e aqueles que estiveram na sua origem.
       Nestas coisas não se pode transigir, como a cineasta não transige, nem facilitar, como a cineasta não facilita. O preto e branco das fotografias, a ausência de cor e de música, o fechar a negro do ecrã entre depoimentos estão lá justamente para isso: não transigir nem facilitar. O penúltimo depoimento, sobre Angola, fundamental por permitir entrever a extensão do horror, decorre mesmo na sua maior parte sobre um ecrã negro, por momentos cortado por breves pontos luminosos, pois não puderam ser conservados os arquivos da polícia política. Aquela foi a realidade em toda a sua crueza, uma parte dela inevitavelmente mas muito significativa, de que os portugueses presentes e futuros devem ter conhecimento para a compreenderem e poderem apreciar a crueldade de uns, a resistência, o sofrimento e o sacrifício pessoal dos outros. Agora é preciso ver "48", divulgá-lo e comentá-lo, pensar nele e não o esquecer, para que a história não se repita sob nenhum pretexto, muito menos o do desconhecimento.
                                
        Sem qualquer forma de ilusionismo do tipo que o cinema permite, e a que convida, de olhos secos e coração pesado este é um filme exemplar de um modo sério, sereno e eficaz, que é também moderno, de fazer documentário. O filme que o assunto sem dúvida merecia e exigia, com o cinema no seu melhor de rigor e exigência, à altura daqueles que grava e mostra, de que conserva intacta a autenticidade do testemunho e a enorme dignidade humana.
       "48", de Susana de Sousa Dias é, por tudo isto, um grande filme político, que pensa e nos obriga a pensar. Pelo seu carácter de testemunho pessoal apresenta um enorme interesse para a História de Portugal, que vai ter que levá-lo em consideração em toda a sua dimensão política. Além disso, é muito possível que decorram ainda hoje por todo o mundo situações semelhantes às aí descritas, pelo que a divulgação internacional do filme se impõe também.

Nota
Sobre o fascismo, como reconhecê-lo e preveni-lo, tem muito interesse o breve ensaio "O Eterno Retorno do Fascismo", de Rob Riemen (Bizâncio, Lisboa, 2012 - a edição original em neerlandês é de 2010).

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Morrer novo

       O título do último filme de Gus Van Sant, "Inquietos"/"Restless" (2011), é por si mesmo um programa, que sinaliza o regresso do cineasta ao melhor da sua inspiração e inteligência fílmica depois do biopic "Milk" (2008), um filme compreensível por tratar de uma personagem, Harvey Milk, que lhe diz alguma coisa de especial mas em que se nota demasiado a sua preocupação de fazer bem feito e à altura daquele que homenageia. "Inquietos" é outra coisa, pois aí o cineasta regressa às personagens jovens e em perda dos seus melhores filmes, mas num regresso superior pois enfrenta sem paliativos a condenação à morte por cancro na cabeça de Annabel Cotton/Mia Wasikowska, que conhece Enoch Brae/Henry Hooper num funeral, numa época em que, depois da morte dos seus próprios pais e de ter ele próprio estado morto durante três minutos, ele se dedica ao passatempo de assistir a funerais.
        Declarado, deste modo, à partida um propósito fúnebre e funesto a propósito de personagens muito novas, o filme avança ao ritmo do desenvolvimento da relação entre Annie e Enoch, que se vão revelando um ao outro a pouco e pouco, até atingirem uma relação de amizade e cumplicidade que passa pelo conhecimento de que ela tem três meses de vida e de que ele tem uma amigo fantasma/fantasiado, Hiroshi Takahashi/Rio Kase, que fora piloto kamikaze japonês durante a II Guerra Mundial e é na actualidade com quem ele conversa e joga à batalha-naval. Ela considera-se naturalista e é uma grande admiradora de Charles Darwin, ele entra no jogo dela depois de lhe ter apresentado os pais, mortos, e procura fazer-lhe uma boa companhia.
                     
           Com um desenlace anunciado pouco depois do seu início, "Inquietos" dá, assim, conta da inquietação vital dos seus dois jovens protagonistas, admiráveis de serenidade ao apaixonarem-se um pelo outro, ele admirável na sua revolta contra o médico, ela admirável ao encenar com ele o momento e consequências da sua própria morte. 
            O que para mim neste momento é mais assinalável é que estes dois apaixonados criam a sua própria luz pessoal, que os vai acompanhar e manter até ao fim - contrariamente ao pai e filha de "O Cavalo de Turim"/"A Torinói ló", de Béla Tarr, que não conseguiam acender a sua, e tal como os O'Brien de "A Árvore da Vida"/"The Tree of Life", de Terrence Malick, que nunca deixavam extinguir a deles (ver "Nas trevas interiores", 29 de Junho de 2012, e "Começar de novo", 12 de Agosto de 2012). Ora essa luz é uma luz fundamental, criadora e animadora até ao fim, sem a qual, dê-se-lhe o nome que se lhe der, amor, fé ou outro, não se pode viver, o que Gus Van Sant mostra compreender perfeitamente e transmite com grande felicidade - no final, a lareira na casa da tia de Enoch. É mesmo a falta dessa luz indispensável que torna o filme de Béla Tarr mais interessante e expressivo no seu sombrio negrume a preto e branco.
                      Restless
          Além disso, a experiência de ter estado morto e ter visto o nada é algo que já Alain Resnais tratara de forma superior em "Amor Eterno"/"L'Amour à mort" (1984), é uma antecipação da experiência que Annie sem regresso vai ter e justifica alguns dos melhores momentos do filme entre Enoch e Hiroshi. De facto, no contexto de "Inquietos" este último é uma personagem que vem acentuar todo o lado fúnebre e fantomático do filme, salientando permanentemente que a vida é uma experiência sem retorno a não ser como fantasma e prevenindo os vivos de que devem fazer em vida tudo o que tiverem para fazer, mesmo mandar as cartas que tiverem para mandar, o que ele não chegou a fazer antes da sua última missão.
        A sombra que deste modo sobre o filme e as suas personagens paira transmite-se inteira, na sua inquietação inconformada, aos espectadores, que secundam Enoch no seu amor, na sua revolta e na sua oferta final de um xilofone, mesmo se infantil. Tantas coisas que se podem fazer em três meses! A morte de alguém muito novo é sempre inescapavelmente injusta, apesar do que sobre ela escreveu Rainer Maria Rilke - "os que os deuses amam morrem cedo" -, mas aqui quero chamar a atenção para uma personagem de "Unknown Pleasures"/"Ren xiao yao", do chinês Jia Zhang-ke (2002), que questiona se vale a pena viver depois dos 30 anos, questão moderna que nos vem da literatura do século XIX no Ocidente e no cinema dos modernos do pós-guerra - viver depressa e morrer cedo, como James Dean e Marilyn Monroe.         Certamente não por acaso, por momentos os corredores do hospital fazem lembrar os de "Elephant" (2003), mostrando que Gus Van Sant não dorme nem nos dá tréguas. A fotografia de Harris Savides, a música, com escolhas excelentes e muito apropriadas, de Danny Elfman, e a montagem de Elliot Graham, que estavam presentes em "Milk" (os dois primeiros colaboradores de longa data do cineasta), conferem um reconhecível tom de família a um filme em que, tal como no anterior, o realizador trabalha sobre um argumento que não é seu - neste caso, de Jason Lew - sem perder por tal facto nada da sua autoria e sem que "Inquietos" perca nada da sua superior qualidade.

Uma fábula moralista

     A terceira longa-metragem do russo Andrey Zvyagintsev, "Elena" (2011), é um filme muito interessante e bem construído sobre uma situação e personagens de melodrama que ele, com o apoio de grandes actores consegue erguer à altura de um grande filme humano e filosófico sobre a vida e a morte, a relação entre os sexos e a relação entre gerações, pondo de lado fantasias humanistas e melodramáticas para em volta da protagonista, que dá o nome ao título, fazer desenharem-se e desenvolverem-se as teias da vida, da herança e do vil metal. 
                 
        Há um casal de sexagenários, Vladimir e Elena, ele com uma filha com quem não se dá, ela com um filho e dois netos que precisam de um auxílio económico que só Vladimir lhes pode proporcionar - e acaba por, depois de ter morrido, permitir graças ao movimento oportuno de quem era a única a poder fazê-lo. Esta é, assim, uma história minimal, pela qual nada se daria não fosse a excelente realização e a superior interpretação, que anima as personagens de maneira a retirá-las do mero estereótipo no interior de um filme que visual e sonoramente - a soberba música de Philip Glass muito bem utilizada - cria um espaço crepuscular, entre luz e sombra, entre vida e morte, que é o espaço delas, o espaço justo daquele drama em que tudo se desenrola segundo uma lógica imparável.   
       Estabelecendo muito bem, em termos espaciais, a distinção entre a casa do casal e a casa do filho dela, e dando em termos visuais - o espelho em que Elena se reflecte - o drama da protagonista, bem como o local neutro em que esta se encontra com a enteada, o filme vai-se impondo a pouco e pouco, vai impondo a sua própria lógica interna numa linguagem cinematográfica depurada, deixando pelo menos um retrato feminino sólido e convincente, sem concessões a uma sentimentalidade fácil mas evitando também um moralismo tranquilizador.
                 
       A vida é difícil, é complicada para todos, as soluções mais evidentes nem sempre têm tempo para se imporem - o testamento de Vladimir -, a morte, que para quem morre é um mal, para quem fica pode ser aproveitada na justa medida da proximidade e da premência das necessidades, e desta forma simples "Elena" impõe a sua própria moralidade inquieta, expressa nas imagens finais, elípticas, que jogam com o início sobre os espaços vazios, de uma grande beleza. Este é, pois, um filme que dá muito mais do que aquilo que promete, indo muito além das suas premissas narrativas com um tom convincente de crónica do quotidiano, com actores que assumem com brio as personagens que lhes cabem e credibilizam, com destaque para Nadezhda Markina como Elena e Andrey Smirnov como Vladimir, numa fábula moralista muito bem construída em temos fílmicos e que funciona muito bem em termos humanos - a descoberta de Vladimir morto está muito bem dada, na sequência da cena na piscina, e o tratamento do espaço é sempre muito bom, jogando com as formas da cenografia, com o vazio e o preenchido.
                 A scene from 'Elena' - Elena, review                          
      Num filme em que nada surge como exagerado, antes tudo é exacto e preciso, impondo-se por si próprio graças ao domínio e à fluência da linguagem cinematográfica utilizada por Andrey Zvyagintsev, talvez só o propósito demasiado explícito de "Elena" surja como perturbador da sua inequívoca beleza e perfeição.

domingo, 19 de agosto de 2012

Um desejo

         Felizmente, conhecemos alguma coisa do actual cinema japonês, e o que dele conhecemos permite-nos dizer que tem cineastas e filmes muito bons. Os meus preferidos são, neste momento, Kyioshi Kurosawa e Hirozaku Koreeda, qualquer deles com filmes muito interessantes realizados até agora - isto além de Takeshi Kitano, um dos grandes mestres do cinema contemporâneo, e de Hayao Miyazaki, o mestre incontestado da animação. A estreia  de "O Meu Maior Desejo"/"Kiseki" (2011), o mais recente filme de Hirozaku Koreeda, permite mesmo perceber que não há sombra de ingenuidade num cineasta que sobre ela constrói o seu filme, sobre dois irmãos que vivem cada qual com um dos progenitores, e por isso separados, que acreditam poder operar o milagre de os reunir de novo se conseguirem ver cruzarem-se dois comboios de alta velocidade. É esse o seu maior desejo.
              Todavia, antes de aí chegar o cineasta leva-nos a acreditarmos, como espectadores, na ingénua fé das duas crianças, cada uma delas arrastando consigo alguns amigos, e para isso faz com que o filme descreva, com inteira credibilidade, o respectivo quotidiano, Koichi/Koki Maeda em casa da mãe e dos avós, Ryu/Ohshirô Maeda em casa do pai. É principalmente o primeiro, mais velho, que o filme segue, no seu dia a dia entre a casa e a escola, o que é motivo para uma recriação realista mas vista a partir dos olhos de Koichi, com apontamentos muito saborosos nomeadamente com o professor e com o avô que faz pão-de-ló - o momento em que se tenta definir o sabor deste é soberbo. Além dele, assumem relevo dois pequenos amigos, um deles com um cão, e uma rapariga mais velha que ambiciona ser actriz, o que a mãe não conseguiu ser por muito tempo.  
                    
             Deste modo, e sem darmos por isso, a partir de pequenos apontamentos entramos na vida de personagens comuns na actualidade, com numerosas referências ao passado, ao desejo de ver reunidos de novo os pais e ao futuro - os dois irmãos mantêm-se em contacto através do telemóvel. A descoberta de uma ideia salvadora, capaz de fazer cumprir os seus desejos, surge a pouco e pouco a Koichi, mas uma vez ela desenhada trata-se de com o irmão acertar os pormenores e fazer os preparativos.
           Hirozaku Koreeda consegue, com grande simplicidade e sem concessões fáceis nem mesmo ao melodrama, construir o aparecimento de um desejo que se torna um desígnio comum aos dois irmãos, segurando sempre o filme entre o quotidiano e a crença partilhada, o que consegue tanto melhor quanto nos convence daquilo que nos mostra, nos faz partilhar a fé infantil das duas crianças. Ora há algo de mágico nisto, pois não é facil nos dias de hoje fazer os espectadores partilharem, sem artifícios, os problemas e os anseios dos mais novos, tornados inteiramente verosímeis e dignos de que neles se acredite. Para tal contribui a "mise en scène" do cineasta, muito boa e bem dominada em todos os momentos, mas também a não ingenuidade, pelo menos total, das próprias personagens, em especial das crianças. 
                    
             O que se torna digno de maior apreço no filme é que as crianças, em especial Koichi mas também Ryu, vão mudando a pouco e pouco, sob a influência do que vão vivendo, do que e daqueles que os rodeiam, e de tal maneira vão mudando que quando chega o momento decisivo, muito bem preparado e muito bem dado em si mesmo em termos visuais, o desejo que cada um deles vai formular vai ser, afinal, um outro desejo, entretanto surgido e tornado mais forte. Este simples facto, a mudança de desejo, muito bem dado com recurso a actores infantis e adultos de grande qualidade por uma realização sagaz, faz com que acreditemos mais e melhor no filme e na ingénua fé infantil que ele apresenta, recria e constrói. Sim, eles acreditam que daquele cruzamento de dois comboios de alta velocidade pode surgir o cumprimento do seu maior desejo, mas este, que inicialmente era um, a nova reunião dos pais, no final vem a ser outro.
              A ingenuidade, em especial a ingenuidade infantil, é algo por vezes difícil de descobrir e de construir precisamente por isso, porque nunca é inteiramente ingénua. Preservá-la em personagens em evolução, cujos desejos mudam com o aumento do que vão aprendendo sobre o mundo e do que descobrem dele desconhecer, é no fim de contas o segredo deste excelente filme e o segredo da verdadeira ingenuidade, que para ser plena nunca o é em termos absolutos, como os verdadeiros ingénuos sabem, porque há sempre mais coisas desconhecidas que despertam a curiosidade. Assim, "O Meu Maior Desejo" dá uma continuação inteiramente à altura a uma obra assinalada nomeadamente por "Ninguém Sabe"/"Dare mo shiranai" (2004) e "Andando"/"Aruitemo aruitemo" (2008), dois filmes muito bons que também eles encenam universos em que as crianças e o convívio de gerações são, como aqui, fundamentais.            

O sabor do fim

         "Chelsea Hotel" (2009), um excelente documentário sobre o mítico hotel novaiorquino onde Andy Warhol (1928-1987) filmou o mítico (e pouco visto até porque não é fácil de projectar) "The Chelsea Girls" (1966), foi o último filme de Abel Ferrara a estrear entre nós, apesar de depois dele o cineasta ter feito mais dois filmes: "Napoli, Napoli, Napoli" (2009) e "Mulberry St." (2010). O seu mais recente filme, "4:44 Último Dia na Terra"/"4:44 Last Day on Earth" (2011), agora estreado, volta a passar-se em New York, cidade onde nasceu, e é uma obra revigorante e muito bela sobre o fim do mundo, que foi tema de super-produções apocalípticas aqui há uns anos, pois desenrola-se a maior parte do tempo entre um casal fechado em casa, cujo contacto com o mundo se resume a um televisor através do qual lhe chegam as notícias, opiniões e comentários do exterior.
         Salvo no fim, e mesmo assim muito parcimoniosamente, o cineasta não se sente sequer tentado a encenar a catástrofe final, no caso com razões ecológicas. Muito pelo contrário, são as reacções de gente comum, habitantes comuns de New York que o interessam e motivam, as reacções ao anúncio, com hora e tudo, do fim do mundo. Não espanta, por isso, que o filme seja sobre um casal no interior do seu apartamento, sujeito às pequenas/grandes crises habituais nos dias que correm numa grande cidade, o que é um tema que Ferrara como tal, e separadamente, ainda não tinha tratado - embora,  com motivações dramáticas precisas, "Linha de Separação"/"Dangerous Game" (1993) e "R Xmas - Nosso Natal"/"R Xmas" (2001), sejam precedentes de vulto e as relações homem-mulher sejam em geral importantes em toda a sua obra. 
                   
        Com actores excepcionais dirigidos superiormente, Willem Dafoe como Cisco, actor, e Shanyn Leigh como Skye, pintora, o filme coloca-nos diante das reacções comuns de gente comum, sem encenar o histerismo de massas com que o cinema de Hollywood não se cansa de nos bombardear, o que transforma aquele último dia de vida, antes do fim anunciado, num dia mais de vidas que se debatem nas suas pequenas e grandes questões quotidianas, que são as questões próprias dos dias de hoje numa grande metrópole, repito. Todavia, Ferrara faz o protagonista sair de casa passados 50 minutos do início do filme, e mesmo antes disso fizera-o sair para o terraço e ter, desse modo, contacto com o mundo exterior na cidade, contacto esse que permitira que o espectador o estabelecesse também.
           Sem querer ver no filme o que nele não está, parece-me que o cineasta volta a filmar a sua cidade a partir do interior, como fizera em "Chelsea Hotel", não de forma especulativa ou turística mas para lhe sentir o pulso, a respiração, que ele bem conhece, e os partilhar connosco. Assim, para Skye o fim do mundo parece ser quando interrompe a conversa de Cisco com a ex-mulher via Skype, enquanto para ele o que surge como despedida é a visita que faz a um amigo, acompanhado por outros amigos em sua casa, o que é pretexto para um pitoresco diálogo afectivo e significa também que parte considerável do filme passa pelas palavras, as dos diálogos das personagens e as que lhes chagam através da televisão. Por seu lado, em vez de ser mostrado em directo na televisão, o fim do mundo dá-se quando ela cessa de transmitir.
                     Willem Dafoe - «4.44 Last Day on Earth»
          Mas como o cineasta é um grande cineasta, o segredo do filme está, em larga medida, no modo como ele o realiza, no tratamento dos espaços e das personagens no interior desses espaços, interiores ou exteriores - e é uma sensação espantosa ver Dafoe andar, caminhar pelas ruas de New York como se estivesse num filme de John Cassavetes. Além disso, o cineasta não recua nas cenas de intimidade do casal, o que lhe fica muito bem e os actores suportam perfeitamente, de modo a transformá-las em momentos cassavetianos, a partir dos rostos. E há ainda cenas de grande intensidade dramática entre o casal e dois momentos, o último quase no final do filme, em que Ferrara assume com brio a profundidade de campo no interior do apartamento, o que dá perfeitamente conta de que ele é um cineasta invulgar.
          Há também os comentários que surgem no televisor, nomeadamente de Al Gore e do Dalai Lama, que são bem escolhidos para uma ocasião como aquela com aquele pretexto, mas o que sabe especialmente bem em "4:44 Último Dia na Terra" é ser um excelente filme em termos cinematográficos e humanos, puro e duro Abel Ferrara que nos devolve ao contacto com um dos melhores cineastas americanos da actualidade, hoje em dia o grande cineasta de New York, e também ao contacto com Willem Dafoe, que desde "New Rose Hotel" (1998) e, especialmente, "Histórias de Cabaret"/"Go Go Tales" (2007) assume nos seus filmes a figura e o tom de um actor cassavetiano como foi Ben Gazzara (1930-2012) continuando a ser ele próprio - Shanyn Leigh é, por sua vez, uma excelente surpresa. A banda sonora, incluindo a música, contribui de forma importante para a tensão urbana e apocalíptica do filme, sem contrariar a sua violenta carga humana, a que pelo contrário inteiramente se adequa.

domingo, 12 de agosto de 2012

Começar de novo

      "A Árvore da Vida"/"The Tree of Life" (2011), a justificadamente aguardada quinta longa-metragem de Terrence Malick, o mais raro dos cineastas americanos da sua geração, é um filme inesperado e excelente. Partindo, como sempre, de argumento seu, o cineasta ocupa-se de uma família americana numa pequena cidade do Texas durante os anos 50 do século XX, um motivo temático muito comum no cinema americano dessa mesma década de 50, nomeadamente no melodrama, que ele trata de forma pessoal e superior, de tal maneira que coloca em questão não apenas as personagens em situação mas também a sua evolução no tempo.
       Dita esta palavra, tempo, entramos de pleno no cinema de Malick, embora aqui de uma maneira nova e inesperada na obra dele. Filho de Mr. e Mrs. O'Brien (Brad Pitt e Jessica Chastain), Jack vai ser acompanhado em dois momentos diferentes, enquanto jovem (Hunter McCracken) e enquanto adulto (Sean Penn), e vai ser deste acompanhamento diacrónico que nasce a construção narrativa do filme. Não, esta história nunca tinha sido contada antes, nem desta nem de outra maneira, de modo que com este filme o cineasta reinventa-se a si próprio e reinventa o cinema.
                    
       De facto, num prólogo seguimos o monólogo interior de Mrs. O'Brien aquando da morte de um filho, questionando Deus a esse respeito, e o monólogo interior de Jack adulto questionando-se sobre o seu afastamento de Deus. Só que isto acontece enquanto se sucedem diferentes imagens da natureza (com os seus quatro elementos e os seus diversos animais, mesmo pré-históricos) e da Terra, do cósmico ao microscópico, a que as vozes se sobrepõem, o que vem dar a esse início um tom de mistério, de inexplicável, e faz com que no filme desde aí, à semelhança dos outros filmes do cineasta, se estabeleça uma dual narrativa subjectiva indirecta livre.
        Vamos, deste modo, parar ao que Pier Paolo Pasolini definiu como "cinema de poesia" (1), e posteriormente Gilles Deleuze na esteira dele estudou a partir do uso da "subjectiva indirecta livre" (2), enquanto estamos perante uma espécie de caótico cosmos natural. Por pouco não julgamos que com esse questionamento de Deus está a terminar o filme. Enganamo-nos, porém, se tal pensarmos, pois é depois dessa primeira meia-hora que "A Árvore da Vida", afinal mais felliniano do que kubrickiano, se vai instalar temporalmente nos anos 50, na casa dos O'Brien, de onde, aliás, partira mais tarde com a chegada da notícia da morte de um dos filhos, recebida pela mãe - Jessica Chastain está excelente em todo o filme, desde esse início.
                    The Tree of Life
         Durante essa parte, a mais longa do filme, seguimos sempre que possível o ponto de vista de Jack criança e adolescente, o que sugere a recordação do Jack adulto, que o regresso a este no final confirma. Na casa de família acompanhamos três momentos distintos: primeiro, a família com a presença de Mr. O'Brien, com a sua própria encenação da sua autoridade, um tempo durante o qual o jovem Jack se confronta com a imaginária morte da mãe, com a morte de um outro rapaz (o que introduz a pulsão de morte), com a fúria paterna; depois, durante a viagem paterna, a família sem ele, com uma outra liberdade de convívio que vai permitir que desperte em Jack alguma coisa que ele desconhecia (o que estabelece a pulsão sexual); por fim, com o regresso do pai ele vai descobrir que deseja a sua morte, que o que quer fazer não pode fazer, que faz o que lhe desagrada (o que insinua a frustração), para depois se aproximar do irmão mais novo e do pai, após o despedimento deste. Aliás, o motivo temático da morte está presente desde o início do filme, com a morte do outro irmão, já adulto, aquele que durante a infância e a adolescência é o menos mostrado.              
          O percurso de Jack vai assim ser estabelecido para um passado em que encontra as suas raízes e que lhe permite reconhecer-se, na recordação de um convívio familiar partilhado, que é mostrado (e a reconstituição de época, sendo simples é muito boa), rumo a uma compreensão interior, que se vai materializar num final simbólico mas não cósmico, como durante o prólogo, em que ele reencontra tal como eram as personagens da sua casa nos anos 50, incluindo-se a si próprio. Ora este final simbólico assume uma conformação de relação directa com Deus, ao qual a mãe, presumivelmente então já morta, oferece o seu próprio filho, embora a última imagem do filme remeta brevemente para o enigma cósmico do início.
                   The Tree of Life
           Poderei identificar em "A Árvore da Vida" as características do cinema de Terrence Malick que já identifiquei aqui (ver "Poética de Terrence Malick", 5 de Fevereiro de 2012), nomeadamente quanto a um percurso para as origens, quanto à integração na natureza e à desregulação desta - aqui passada na separação entre humanos e a natureza no prólogo, no próprio meio familiar depois -, quanto à inserção de planos de pormenor de espaços vazios e quanto a uma poética de carácter musical, até porque a música propriamente dita acompanha quase todo o filme ao ponto de se notar quando ela se suspende no momento em que pela primeira vez Jack encara a morte do pai, mas também no que respeita a um elaborado trabalho fílmico: movimentos de cãmara e montagem. Devo, contudo, notar que neste filme o cineasta se socorre mais da montagem de planos menos longos, o que condiciona e determina o tratamento do tempo, estabelece a musicalidade do filme mesmo em termos visuais e faz parte do encanto dele. Além disso, os movimentos de câmara são menos amplos do que nos seus filmes anteriores, pois pela primeira vez ele remete-se ao espaço de uma casa e respectivo quintal no interior do espaço de uma pequena cidade - e a cidade vista a partir dos olhos dos habitantes da casa está muito bem dado.
        Duas coisas supreendem em especial: Mr. O'Brien nunca é ouvido em pensamentos, mediante um monólogo interior semelhante ao da mulher e ao do filho, talvez por ser a personificação da autoridade e do poder, e a única revolta de todo o filme é a do filho contra o pai, não havendo em qualquer momento revolta declarada contra Deus, que é apenas questionado por mãe e filho no início e por ambos aceite no final. Assim, sublimada no pai humano a revolta do filho (e até em parte a da mãe), o lugar do Pai celeste fica disponível para que nele se concentre a proposta deste filme, por entre questionamentos e angústias pessoais moldada sobre um Édipo freudiano, em que a morte do terceiro irmão (presumivelmente na Guerra do Vietname) é colocada logo no início para funcionar plenamente como morte simbólica de substituição - exemplar a liberdade temporal de todo o filme. O que, sendo feito de boa-fé e sem ambiguidades, deve ser devidamente apreciado num filme todo ele de muito grande qualidade, até porque esse lado religioso, se conforta também inquieta o protagonista. Esse o mistério da "árvore da vida", que o filme encena e propõe de forma superior - a partir de uma citação do "Livro de Job".

Notas
(1) Cf. Pier Paolo Pasolini, "O «cinema de poesia»" (1965), in "Empirismo eretico", Garzanti, Milão, 1972 - edição portuguesa "Empirismo hereje", Assírio & Alvim, Lisboa, 1982, pág. 137. Sobre literatura, ver também "Intervenção sobre o Discurso Indirecto Livre", idem, ibidem, pág. 63.
(2) Cf. Gilles Deleuze, "L'Image-mouvement", Les Éditions de Minuit, Paris, 1983, páginas 104-111.

Um americano em Paris

         Continuando na Europa, depois de "Tudo Pode Dar Certo"/"Whatever Works" (2009), rodado em New York, e "Vais Conhecer o Homem dos Teus Sonhos"/"You Will Meet a Tall Dark Stranger" (2010), filmado em Londres, Woody Allen realizou "Meia-Noite em Paris"/"Midnight in Paris" (2011), com argumento seu como costuma acontecer, um filme surpreendente que não parece rimar com nada na sua obra mas de uma enorme imaginação sobre... a viagem no tempo.
      Não fazendo as coisas por menos, ele faz o protagonista, Gil Pender/Owen Wilson, um aspirante a escritor de viagem a Paris com a noiva e os seus pais, ir ao encontro da "geração perdida" da literatura americana na Cidade Luz, o que é um bom pretexto pois os anos 20 do século XX foram de facto uma época de grande efervescência artística na Europa, em geral, e na capital francesa em especial. Ao cumprir essa viagem involuntária no tempo, o aspirante a escritor não só encontra o que, quem não procurara conscientemente (Cole Porter, Ernest Hemingway, F. Scott e Zelda Fitzgerald, Gertrud Stein, Pablo Picasso, Luis Buñuel, Man Ray, Salvador Dali, entre outros), como encontra a resposta para os seus problemas: o livro que está a escrever, a noiva que não o quer - nem ele a ela.
                     
            Como uma cinderela, à meia-noite Gil entra no carro que o transporta ao convívio de alguns dos mais importantes e famosos escritores e artistas do século passado, que ele apenas conhecia, como apenas podia conhecer, por os ter lido, ouvido, visto as suas obras na pintura ou no cinema. Assim, ele encontra aquela que é para ele a Idade de Ouro e nela quem considere a época anterior, a Belle Époque, a verdadeira Idade de Ouro - Adriana/Marion Cotillard, com quem a essa época vai aceder para aí encontrar Toulouse-Lautrec, Paul Gauguin, Edgar Degas e o french cancan. Ora com este pretexto o cineasta questiona o tempo, questiona-se e questiona-nos sobre o tempo com grande pertinência, pois todos vivemos sempre a ilusão de um passado perdido como a miragem inalcansável e incomparável, que tomamos como ponto de referência, o que se compreende pois partimos sempre do que conhecemos, do que foi feito antes de nós.
             A época é muito bem escolhida, pois foi decisiva para a modernidade na literatura, nas artes e no cinema, podendo por isso ser legitimamente vista como a Idade de Ouro do século XX, ainda mais para um americano culto, como Woody Allen é. Assim, o contexto do protagonista na actualidade é um simples pretexto para nos levar a uma época mítica, muito bem recriada com precisão e humor (a rivalidade sentimental, a ideia dada por Gil a Buñuel), que não esconde a nostalgia, de um modo que leva a que os momentos no passado surjam como um musical, que a própria música (Cole Porter) desde o início introduz, e por isso também como um sonho. Aliás, esta viagem no tempo tem muito que ver com a saída do filme de uma personagem e a entrada nele de uma espectadora em "A Rosa Púrpura do Cairo"/"The Purple Rose of Cairo" (1985), com cada um acedendo ao mundo que lhe suscita curiosidade e interesse.
                    
            Portanto, Woody Allen está aqui no seu melhor de inspiração e atrevimento, deixando pelo caminho as suas farpas na política americana, muito claramente embora de passagem, pois o que mais chama a atenção no filme é o passado, apesar de haver momentos muito bons na actualidade, como a cena típica dos brincos desaparecidos, que não deve ser esquecida. Mas é o passado que surge como fonte de inspiração e de luz para o protagonista, que dela muito precisa e a vai acabar por encontrar, e que é para onde cada um de nós deve "viajar" na sua procura pessoal ou pelo que se deve deixar encontrar. Aliás, o cinema americano tem frequentado com regularidade a Europa com bons resultados, e é bom não esquecer que a geração da literatura americana aqui em causa teve uma enorme influência no cinema americano e no cinema mundial, até porque foi a primeira geração posterior ao nascimento do cinema, cuja influência ela própria recebeu, e também porque soube conviver com as outras artes, os outros artistas do seu tempo, assim contribuindo para a criação de um "ar do tempo", de um "clima intelectual de época".
             O filme vê-se de um fôlego e sofregamente, pois percebe-se desde a primeira viagem que estamos a assistir a uma verdadeira surpresa, capaz de nos fazer sair a todos da fase de negação. "Meia-Noite em Paris" é "mais um pequeno Woody Allen"? Não, "Meia-Noite em Paris" é mais um grande Woody Allen, surpreendente e quase comovedor na sua simplicidade e na sua sabedoria. De uma Idade de Ouro todos precisamos, tanto mais quanto os tempos são hoje incertos, mas interessará perguntar se no futuro o tempo que vivemos não será ele também considerado como tal. E aí penso que o tempo de Woody Allen será no futuro considerado uma época de referência no cinema, como o foi o tempo de Charles Chaplin - e não forço em nada a comparação, que nem sequer sou o primeiro a fazer.

Nota
Sobre a aprendizagem de um escritor, é fundamental "Fogos"/"Fires", do americano Raymond Carver (1938-1988), agora editado em português.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Poética de Chris Marker

           Foi um desses gigantes do cinema francês que se revelaram no cinema no pós-guerra e com os quais verdadeiramente começou uma modernidade no cinema, que veio a ser absorvida e integrada pela "nouvelle vague" francesa. Apesar de o seu nome ser fundamentalmente ligado ao documentário, Chris Marker (1921-2012), também fotógrafo e escritor, soube integrar nos seus filmes um nível narrativo e ficcional muito importante em que as questões do espaço e do tempo se tornam indissociáveis, se implicam uma à outra. Além disso, na parte documental dos seus filmes esteve implícita uma aguda visão antropológica, enquanto que na construção fílmica a montagem, da imagem e do som, foi absolutamente fulcral.
           Antigo membro da Resistência francesa durante a II Guerra Mundial, estreou-se no cinema com "Olympia 52" (1952), a que se seguiu o mítico "Les statues meurent aussi" (1953), co-realizado com Alain Resnais, mas talvez continue a ser ainda hoje mais conhecido por "La Jetée" (1962), um filme de ficção-científica visionário sobre a viagem no tempo de um prisioneiro durante a III Guerra Mundial, filme genial apresentado como foto-romance e construído sobre imagens fixas, portanto sem movimento, em que a continuidade nasce da montagem e das palavras que constroem um espaço de memória em que ao protagonista, depois de outras imagens e da recordação de uma mulher, é dado encontrar numa imagem da sua infância o instante da sua morte. Para isso ele fora enviado pelos seus carcereiros e torturadores para o futuro, a partir do qual viu tudo e viu mais claro, do princípio até ao fim.
                                        
            "Sans Soleil" (1982) é um filme prodigioso construído sobre as mensagens e as imagens enviadas por um correspondente imaginário de vários pontos do mundo, em especial do Japão, Tóquio e Okinawa, da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, de São Francisco e da Islândia. Assim construído sobre imagens dispersas, o filme encontra a sua unidade através da montagem e das palavras, que como sempre no cineasta não são redundantes, dado acrescentarem sempre ao que está na imagem. Já presentes em "La Jetée", além dos comentários aqui se acrescentam em tom poético as reflexões fulgurantes (por exemplo, a distância no espaço que compensa a proximidade no tempo, a chaga sem corpo que sobrevive à morte dos amantes, o sonho individual como parte de um sonho colectivo, a fina divisória entre a vida e a morte, perder o esquecimento em vez da memória). Neste filme Chris Marker utiliza a imagem digital e a digitalização da imagem e do som.
           No Japão surpreendem os contrastes entre a velocidade e a imobilidade, a modernidade e a tradição, entre homens e mulheres. Na Guiné-Bissau e em Cabo Verde estão presentes imagens do presente e imagens do passado, da luta contra o colonizador português, com uma reflexão fundamental sobre a Revolução de Abril baseada em Miguel Torga dada de passagem. Aí releva, contudo, o encontro decisivo do olhar da câmara do cineasta com os olhares das mulheres dos mercados da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Da Islândia ficam imagens e ideias para um filme futuro.
                      Chris Marker
            Estes dois filmes, mas sobretudo o segundo, mostram claramente que o cinema de Chris Marker se baseou fundamentalmente na montagem, a um nível de tal modo estruturante e de uma forma de tal modo criativa que leva a que deva ser considerado o grande continuador de Dziga Vertov no cinema. De facto, em "Sans Soleil" está presente não apenas a montagem visual mas também a montagem sonora (audiovisual neste sentido), em que se integram as reflexões fulgurantes que se estendem ao próprio cinema - "A Mulher Que Viveu Duas Vezes"/"Vertigo", de Alfred Hitchcock (1958), encontra aqui uma das suas reflexões mais originais e convincentes. Aliás, este filme estava já presente em "La Jetée", com a ideia de olhar o tempo de fora do tempo. Por isso mesmo, pelo seu decisivo lado reflexivo em que imagens e sons construíam um pensamento pessoal elaborado, os seus filmes foram classificados como filme-ensaio. Por sua vez, os animais fétiche do cineasta, a coruja e sobretudo o gato, assumem lugar de pleno relevo.
          Antes, ele tinha consolidado a sua fama como um documentarista muito especial com filmes como "Lettre de Sibérie" (1957), "¡Cuba Sí!" (1961), "Le joli mai" (1963), "Loin du Vietnam" (1967) - supervisão -,"La solitude du chanteur de fond" (1974), "Le fond de l'air est rouge" (1977), todos eles muito importantes na época em que foram feitos, de que constituem ainda hoje um testemunho irrecusável e insubstituível. Mas quero recordar aqui brevemente mais dois filmes de Chris Marker, para mostrar que ele foi não só uma testumunha qualificada do século XX, de que mostrou e documentou a realidade de forma empenhada, mas também uma testemunha especialmente qualificada do próprio cinema.
                      
          Em "Level 5" (1997) o cineasta volta a trabalhar sobre a memória japonesa da II Guerra Mundial, desta feita sobre a batalha de Okinawa, para proceder a uma reflexão fundamental sobre a história, sobre a vida e sobre o próprio cinema. Para tanto coloca Laura/Catherine Belkhodja, encarregada de criar um jogo de computador baseado naquela batalha, a falar para a câmara e a fazer a despesa fundamental das palavras, a que se juntam, contudo, as de depoimentos japoneses. Então há lugar para recordar coisas pequenas mas fundamentais: que Deus está sempre do lado dos perseguidos, que por trás de uma mulher (ou de um homem) visível há uma outra mulher (ou um outro homem) invisível, que é fina a separação entre memória e esquecimento. Mostrando mais uma vez não querer ter nada a ver com a banalidade do pensamento comum, Chris Marker faz explicar como foi possível matar os entes queridos mais próximos por amor, lembra as mentiras da guerra e as mentiras do cinema em diálogo com "Laura" de Preminger, Hiroshima e Marienbad de Resnais, "Let There Be Light" de John Huston, de novo "Vertigo" de Hitchcock, mas sobretudo em diálogo com as imagens em falta que seriam as imagens indispensáveis no documentário, ao qual não pode, por isso, ser aplicado sem mais o princípio subtractivo de que fala Gilles Deleuze a propósito do cinema.
           Para a série "Cinéma, de notre temps", de André S. Labarthe e Janine Bazin, fez "Une journée d'Andrei Arsenevitch" (2000), dedicado a Andrei Tarkovski, sobre cuja obra, temática e estilo é um verdadeiro ensaio, com o apoio de excertos dos seus filmes e algumas imagens dos seus últimos tempos de vida. Esse filme é tanto mais importante quanto em 1985 Marker dedicara já um outro filme, "A. K.", a Akira Kurosawa, e em 1993 concluíra "Le Tombeau d'Alexandre", sobre Alexandr Medvedkine (1900-1989), relevante cineasta soviético do final do mudo e do início do sonoro cujo nome fora dado a um grupo de cinema militante criado em 1967 sob o impulso do próprio Chris Marker, de quem é retido um depoimento sobre Tarkovski no filme que ele a este dedica.
                       chats_perches_4 
          Não sei, pois, de outro cineasta (salvo Godard e Scorsese) que como Chris Marker se tenha ocupado tão sistematicamente da sua arte e de alguns dos seus melhores artistas e problemas, a que dedicou o melhor do seu talento e da sua atenção como oficial do mesmo ofício inteirado de tudo o que lhe dizia respeito. Aliás, pela utilização que faziam da linguagem cinematográfica os seus outros filmes eram também reflexões sobre o próprio cinema, cujas fronteiras alargavam. Mas mesmo estes dois últimos filmes, em que o cineasta se move ao seu melhor nível para fazer justiça aos assuntos de que trata, são em medida fundamental filmes de montagem e de reflexão mediada pela palavra, continuando a caber no conceito de filme-ensaio. Poderei, por isso, definir a poética de Chris Marker como uma poética filosófica do tempo e da montagem no documentário e no cinema
         Quando já tinha iniciado uma criação multimédia própria, realiza ainda "Chats perchés" (2004), a sua última longa-metragem, feita em vídeo para a televisão, que é um filme irónico, divertido e cruel sobre a actualidade política, em que se insinuam referências cinéfilas e gatos proliferam em Paris, sorridentes e subversivos, o que poderá ficar como uma assinatura do esquivo cineasta, lúcido e desassombrado, que ele sempre foi.