“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

De todas as cores

     "Os Sete Magníficos"/"The Magnificent Seven", de Antoine Fuqua (2016), o remake de "Os Sete Samurais"/"Shichinin no samurai", de Akira Kurosawa (1954), e do filme homónimo de John Sturges (1960), que era já um primeiro remake americano do filme anterior, é um filme que merece o meu apreço e que pelas melhores razões chama a atenção  para o seu realizador, um homem experiente e com uma obra já apreciável atrás de si, que começou a ser notado a partir de "Dia de Treino"/"Training Day" (2001), a sua terceira longa-metragem.
     Sem se prender a nenhum antecedente específico, com argumento de Richard Wenk e Nic Pizzolatto baseado no argumento de Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e Hideo Oguni envolve os protagonistas, homens de todas as cores, idades e credos, num confronto impidoso com o péssimo senhor do ouro, das terras e dos homens, Bartholomew Bogue/Peter Sarsgaard, a pedido da população de Rose Creek encabeçada por Emma Cullen/Haley Bennett e Teddy Q/Luke Grimes.           
                      The Magnificent Seven Review: Action Packed But Empty                 
       Formado o grupo heterogéneo liderado por Sam Chisolm/Denzel Washington, composto por Josh Faraday/Chris Pratt, Goodnight Robicheaux/Ethan Hawke, um antigo confederado, Jack Horne/Vincent D'Onofrio, entrado em idade e gordo, Billy Rocks/Byung-hun Lee, chinês, Vasquez/Manuel Garcia-Rulfo, mexicano, e  Red Harvest/Martin Sensmeier, índio, em especial os quatro primeiros em composições notáveis, o filme identifica cada um deles e as respectivas ligações desde o seu início e a aceitação da missão que lhes é cometida.
     Num gesto aberto e muito bem utilizado, Antoine Fuqua não se limita a uma ou outra referência ao cinema americano, nomeadamente ao western, antes acolhe parte do melhor do cinema americano e do western "clássico" - para abreviar até Sam Peckinpah e Sergio Leone e passando inesperadamente por Orson Welles na figura de Jack Horne e no mais - as badaladas e o campanário - que até remete para Shakespeare. 
                                         
      Industriada a população no uso de armas de fogo e depois da partida, com regresso de Goodnight, o confronto sangrento dá-se ao amanhecer, com muitos mortos de um e do outro lado e com o duelo final entre Chisolm e Bogue resolvido por Emma depois de o primeiro ter explicado ao segundo de onde se conheciam - Goodnight dissera-lhe no início que se tratava apenas do futuro.
     Os mortos ficam, os vivos partem, mas todos os sete serão sempre lembrados pela população. Numa América dividida em termos raciais e políticos, a pluralidade deste "Os Sete Magníficos" está muito bem vista e é muito oportuna. Contra um homem riquíssimo que tudo e todos compra, mentiroso e traidor, que tudo destrói e todos mata, no limiar do filme de gangsters de forma inteiramente controlada.
                    The Magnificent Seven
       Não me parece sequer pertinente a comparação com o filme de John Sturges, porque este filme apoia-se mais no original de Akira Kurosawa e constrói-se hoje para o presente, um tempo em que o western, salvo muito escassas excepções - "O Assassínio de Jesse James Pelo Cobarde Robert Ford"/"The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford" (2007), de Andrew Dominik, e os dois últimos filme de Quentin Tarantino, "Django Libertado"/"Django Unchained" (2012) e "Os Oito Odiados"/"The Hateful Eight" (2015) - há muito deixou de ser um género popular e/ou pertinente no cinema americano (ver "Poética do western", de 29 de Setembro de 2013). 
      Apesar das suas muito óbvias referências à actualidade, que se compreendem, "Os Sete Magníficos" de Antoine Fuqua é um bom filme, dirigido com sabedoria e com grandes interpretações, um filme para ver e rever que marca a produção cinematográfica americana deste ano e rapidamente se tornará um filme de culto.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Uma verdade inconveniente

     Com o seu habitual sentido da oportunidade, Oliver Stone dirigiu "Snowden" (2016) sobre um dos mais estranhos e controversos acontecimentos da política contemporânea, mas teve que o fazer na Europa devido à falta de apoio dos estúdios americanos e sem outros apoios que lhe foram negados.
    Dramatizando factos e situações que o documentário de Laura Poitras "Citizenfour" (2014) tratara de outra maneira (ver "Actualidade escaldante", de 31 de Março de 2015), mas incluindo-a a ela enquanto trabalha, a abordagem do cineasta torna-se ainda mais violenta e demolidora, embora os acontecimentos sejam conhecidos pelo menos na sua fase final. Que tenha sido um aluno brilhante quem se colocou os problemas que Edward Snowden colocou e coloca não é em qualquer caso indiferente ao tratamento deste assunto, tal como interessa conhecer melhor a sua vida pessoal, o seu lado humano e o seu percurso.
                      
    No seu terreno de biopic disfarçado, este  filme de Oliver Stone cumpre os seus objectivos como cumpriam os deles biopics anteriores seus de que o melhor, não o sendo exactamente, sem desmerecer os outros era "JFK" (1991). A escolha de assuntos politicamente sensíveis caracteriza, aliás, os filmes mais conhecidos deste cineasta, assuntos esses que geralmente superam o valor cinematográfico de cada um deles mas permitem rotulá-los como "cinema político" - american way.
     Em todo o caso trata-se de um bom filme de um cineasta bem intencionado, que neste caso pretende mesmo interferir na actualidade ao expor o passado de um caso actual, tanto mais escaldante politicamente quanto mais mediatizado. Senhor de um estilo seguro que se adapta e reinventa a cada filme, o que justamente terá sido fundamental para o seu entendimento como um novo clássico do cinema americano - um estilo que neste filme, com a sua justificada secura nem sequer atinge o seu melhor -, deve-se reconhecer que quando Oliver Stone arrisca mais formalmente saem coisas melhores como "JFK", "Assassinos Natos"/"Natural Born Killers" (1994) - a partir de história de Quentin Tarantino -, "World Trade Center" (2006) ou, mesmo se discutível, "Selvagens"/Savages" (2012), por exemplo.
                       snowden trailer
      Com argumento de Kieran Fitzgerald e do realizador a partir do livro de Anatoly Kucherana e Luke Harding, com Edward Snowden interpretado por Joseph Gordon-Levitt, Lindsay Mills por Shailene Wooddley e Laura Poitras por Melissa Leo num cast muito homegéneo, "Snowden" é um filme que não desmerece do seu protagonista nem do seu realizador, neste momento um cineasta com uma obra importante e empenhada, se bem que desigual, atrás de si. Que as questões que levanta e que permanecem em aberto incomodem só lhe fica bem, mesmo se o protagonista justifica ainda hoje o epíteto que lhe foi dado no início de "Branca de Neve".
      Prefiro o documentário de Laura Poitras, mas mesmo assim penso que quem viu um filme deve ver o outro. Sobre Oliver Stone ver "Indeciso", de 12 de Outubro de 2012.     

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

A outra ficção-científica

    A terceira longa-metragem de Neill Blomkamp, "Chappie" (2015), devolve-nos o cineasta sul-africano em boa forma, de novo às voltas com a ficção-científica tratada em termos de Série B. Agora está em causa um robot que pensa e sente e, como tal, foi concebido para trabalhar para a polícia em Joanesburgo.
     A questão passa-se em três tempos narrativos: a relação da criatura, Chappie/Sharito Copley, com o seu criador, Deon Wilson/Lev Patel, que trabalha numa empresa de inteligência artificial dirigida por Mchelle Bradley/Sigourney Weaver; o desvio do primeiro por um grupo de gangsters que prepara um assalto e o quer pôr a trabalhar para si; a rivalidade do segundo com um outro engenheiro da mesma fábrica, Vincent Moore/Hugh Jackman, que criou um outro robot que disputa a preferência das autoridades com o seu. 
                     chappie review
       Valha o que valer a discussão da inteligência artificial nestes termos, na senda do "Robocop, o polícia do futuro"/"RoboCop" de Paul Verhoeven (1987), que tanto sucesso teve - foi feito um novo filme em 2014 por José Padilha - mas levando a ideia por outros caminhos "Chappie" de Neill Blomkamp consegue humanizar o seu robot e fazê-lo reagir por repetição daquilo que lhe dizem, que é uma coisa quando está com o seu criador e é outra quando está com o gang que o rapta.
      Esta dualidade da máquina humanizada está bem explorada e está na origem de peripécias contraditórias e acção intensa, a que se vem juntar a tentativa de sabotagem do criador rival do robot rival e a posterior entrada em acção deste quando Chappie é dado como perdido para o crime.
                     chappie review
       Dado em termos quase infantis pois o protagonista aprende como uma criança e reage como uma criança, assumindo o gang como a sua família, o filme desenrola uma linha narrativa sóbria e clara com os seus meandros, que os actores valorizam com o seu talento e entrega total - o gang é composto por Ninja, Yo-Landi/Yo-Landi Visser e Amerika/Jose Pablo Castillo.
    Com argumento do próprio realizador e de Terri Tatchell (a sua mulher que já fora co-argumentista de"Distrito 9"/"District 9", a sua longa de estreia em 2009), fotografia de Trent Opaloch (que exerceu idêntica função nos filmes anteriores do cineasta), música de Hans Zimmer (o mesmo de "Interstellar", de Christopher Nolan, 2014) e montagem de Julian Clarke (que também trabalhou nos filmes anteriores de Neill Blomkamp) e Mark Goldblatt, este é um filme muito bom que discute os limites da inteligência artificial e os do seu uso, o que o leva para um campo de ambiguidade muito curioso.                  
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     Sem espectaculares efeitos especiais, de uso nas grandes produções do género, justo e bem feito como filme da Série B. De tão perfeito, Chappie ressuscita-se e ressuscita o seu criador e outros fazendo para eles migrar a consciência, o que está por dentro da máquina e não se vê. 
     Por mim, robots só os que tiverem a capacidade de pensar e de sentir, que tenham medo da morte e queiram viver, como o Hall 9000 de "2001: Odisseia no Espaço"/"2001: A Space Odyssey", de Stanley Kubrick (1968) e agora Chappie. Sobre Neill Blomkamp, um realizador a acompanhar com atenção,  ver "Isto sim", de 29 de Agosto de 2013.     

sábado, 24 de setembro de 2016

Destinos trágicos

     O mais recente filme de Pedro Almodóvar, "Julieta" (2016), assinala o seu regresso a um nível mais de acordo com a sua justa fama de grande cineasta. O grande trunfo deste filme é a sua construção em flash-back da protagonista ao escrever uma carta para a sua filha em que lhe conta a sua própria história, pois essa revela ser a melhor construção, a mais apropriada à sua estrutura narrativa e fílmica.
     É dessa maneira que o passado de Julieta, marcado por tragédias masculinas dos homens que a marcaram, surge como relevante para ela e para quem o não conhece. Por definição os mortos não falam, e por isso ela escreve o que viveu, a que assistimos a partir da recordação dela - interpretada por Adriana Ugarte quando jovem, por Emma Suárez na actualidade - com Marian/Rossy de Palma e Ava/Inma Cuesta como testemunhas mais próximas de acontecimentos decisivos, enquanto Lorenzo/Dario Grandinetti, o seu homem tardio, viaja até Portugal.
                      'Julieta' Review: Pedro Almodovar Adapts Alice  
     Com argumento do cineasta a partir de contos de Alice Munro, "Julieta" traça um retrato de mulher pungente e poderoso, ao nível dos melhores melodramas de Almodóvar centrados em mulheres, construído com recurso a planos frequentemente próximos, com a consequente concentração nas personagens e em certos objectos ou elementos cenográficos específicos. E quando, depois de escrita a carta, o filme regressa ao presente é para a protagonista ser atropelada antes de saber pela filha, através de uma carta, da morte do seu neto mais velho.
     A profissão de Julieta como professora de literatura clássica está bem vista, embora o reforço da tragédia que traz ao filme não fosse rigorosamente indispensável - ele tem por si as alusões à tragédia mas não tem nem quer ter o tom de epopeia, embora a refira. Mas aqui a tragédia masculina é também feminina, como no cinema de Almodóvar geralmente acontece. E reunir quatro gerações de uma mesma família está por si mesmo conseguido, num filme elíptico a partir da escrita.
                     julieta10
    Saúdo aqui o regresso quase em surdina ao seu melhor de um cineasta que foi considerado o herdeiro de Luis Buñuel, o que nos seus últimos filmes estava muito atenuado, um regresso sem o espalhafato formal e narrativo que para muitos constituiu a sua imagem de marca mas também a sua maneira, agora estilisticamente depurada.
    História de mulheres como melodrama com destino trágico delas e deles, "Julieta" retoma uma inspiração que, nos filmes do cineasta, deu sempre os melhores resultados - em "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos"/"Mujeres al borde de un ataque de nervios" (1986), "A Flor do Meu Segredo"/"La flor de mi secreto" (1995), "Em Carne Viva"/"Carne trémula" (1997), "Tudo Sobre a Minha Mãe"/"Todo sobre mi madre" (1999) e mesmo "Fala com Ela"/"Habla con ella" (2002). Sobre Pedro Almodóvar ver "Decorativo", de 21 de Outubro de 2012, e "Em queda", de 12 de Maio de 2013.         

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Estrela brilhante

   Depois de um "filme fácil", "Vencer a Qualquer Preço"/"The Program" (2015), Stephen Frears meteu-se a dirigir um filme verdadeiramente difícil, "Florence, Uma Diva Fora de Tom"/"Florence Foster Jenkins" (2016), com argumento de Nicholas Martin baseado na vida de uma personagem real.
                     
   Corre o ano de 1944 em New York quando uma actriz de sucesso em pequenas aparições teatrais e de variedade, a rica e ambiciosa Florence/Meryl Streep, quer à viva força treinar a sua voz como cantora de ópera, para o que, com a cumplicidade do marido, St. Clair Bayfield/Hugh Grant, um inglês na América como fraco actor, contrata um pianista privativo, Cosmé McMoon/Simon Helberg, e um professor de voz. Por momentos pensamos na Susan Alexander/DorothyComingore de "O Mundo a Seus Pés"/"Citizen Kane", de Orson Welles (1941), a quem o professor começa por dizer "impossible, impossible, impossible".
    No intuito de satisfazer o desejo dela de actuar em público, St. Clair, que leva uma vida dupla com consentimento da mulher, compra os que vão assistir para que se portem bem e aplaudam no final de cada actuação, convencendo assim Florence dos seus dotes e do seu talento vocal.
                           
     A popularidade da péssima cantora aumenta graças a uma gravação apoiada pelos amigos de St Clair, e ela, que hesita na sua última actuação pública para os militares americanos, acaba por ser persuadida da verdade pela crítica da imprensa a que dificilmente tem acesso: um jornalista no New York Post, que não aceitara vender-se, acaba por assistir a essa última apresentação pública e sobre ela escreve. Esta parte final do filme está especialmente conseguida. 
     Mas o grande mérito de "Florence, Uma Diva Fora de Tom" acaba por recair em Meryl Streep, que consegue aguentar a sua personagem em auto-ilusão induzida, que não se apercebe, porque o vive, do seu ridículo que nós, que assistimos a tudo de fora desde o início, percebemos imediatamente, mesmo antes dos espectadores da sala ao vivo. O que nos impede de rir, antes nos constrange. Incrivelmente difícil, o trabalho da actriz dá aqui plenamente conta do seu enorme talento - Florence Foster Jenkins é a sua melhor interpretação de tempos recentes, ao que a realização de Stephen Frears não é de modo nenhum alheia.  
                     florence uma diva fora de tom
    Do mesmo passo que expõe os bastidores do mundo do teatro novaiorquino e a criação do sucesso e da popularidade na sociedade americana do espectáculo, sempre com a indispensável participação das audiências mesmo se não convencidas da melhor maneira, "Florence, Uma Diva Fora de Tom" de Stephen Frears consegue apresentar a sua protagonista como alguém crédulo e ingénuo, que devido aos seus sonhos de grandeza acaba por morrer, sonhando com o sucesso que ambicionara mas não tivera a não ser fictivamente, ao saber a verdade a seu próprio respeito.

sábado, 17 de setembro de 2016

Um artista admirável

     A exposição "António Ole. Luanda, Los Angeles, Lisboa", uma retrospectiva do grande artista angolano patente no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian com Rita Fabiana e Isabel Carlos como curadoras, é uma oportunidade única para ficar a conhecer uma obra riquíssima que cobre 50 anos de produção artística multímoda, original e muito importante.
     Tive o privilégio de acompanhar esta tarde a visita guiada do artista em conversa com as duas curadoras e de ouvi-lo falar extensamente sobre cada obra exposta, com referências à escravatura, ao colonialismo, à fragilidade e à dignidade de um povo pobre, à grandeza da sua memória, mas também aos diferentes materiais com que trabalhou. Como constante, a grande capacidade de conceber o limite do quadro de cada obra, pintura, colagem, instalação, fotografia, cinema, como corte que delimita um campo, um espaço que assim se define em que as formas e os volumes proliferam.
                      
     Trabalhada por uma intensa poética do material banal, da sombra e da luz, com um extraordinário domínio dos materiais, das formas, das cores e do preto e branco, a obra de António Ole agora exposta é de visita obrigatória para quem quiser conhecer o melhor da arte africana e da arte contemporânea em todo o seu esplendor, que a ideia de inacabado, de incompleto por vezes trabalha. Destaco especialmente as instalações Pai e Margem da Zona Limite na obra muito variada, marcada pelo simbólico e por uma muito visível linha do tempo, de um homem sempre atento à realidade em sua volta.
       Com coordenação científica de Isabel Carlos e Rita Fabiana, o catálogo cumpre muito bem a sua função. Fico à espera de todos os filmes do artista, que no cinema se interessou especialmente pelo documentário, dos quais me lembro apenas de coisas antigas e soltas mas muito boas. Sobre António Ole ver "Um artista africano", de 19 de Setembro de 2015.

Em território desconhecido

     "Se as Montanhas Se Afastam"/"Shan eh gu ren", a mais recente longa-metragem do chinês Jia Zhang-ke (2015), é uma nova surpresa na sua obra, que o faz entrar e nos faz entrar em território desconhecido.
     Dividido em três partes distintas, acompanha Shen Tao/Tao Zhao com aqueles que a rodeiam em três fases distintas. Primeiro em 1999, no ano dos festejos da mudança de século e de milénio, quando ela é disputada por dois pretendentes: Zhang Jinsheng/Yi Zhang e Liangzi/Jing Dong Liang, o primeiro a subir na vida, o segundo um pobre trabalhador. Como é bom de ver ela escolhe o primeiro e o segundo parte, deixando atrás de si as chaves da sua casa, que vão ressurgir mais tarde.     
                       se as montanhas se afastam
        Depois de uma breve passagem por uma época intermédia, que vai corresponder à morte do pai de Shen Tao numa estação ferroviária, momento soberbo de cinema, numa época em que ela já está divorciada e acolhe o filho para a acompanhar no funeral, passamos para 2014 para seguir Liangzi, que entretanto se tornara mineiro, casado e com um filho, numa época em que lhe é diagnosticado um cancro que ele não tem dinheiro para tratar. De regresso à terra, a emblemática Fenyang onde Jia Zhang-ke nasceu e onde se passam os seus filmes iniciais, vai ser Shen Tao a resolver a situação e a devolver-lhe as chaves da sua casa, que ele deitara fora ao partir.
       Por último, a entrada em território desconhecido explicita-se totalmente com a passagem para 2025, para acompanhar o filho de Shen Tao, Zhang Daole/Zijian Dong, que se mudou com o pai para a Austrália e já só fala inglês (é conhecido por Dollar), pelo que tem de receber aulas da língua materna, e se envolve com a respectiva professora, Mia/Sylvia Chang. Pelas mãos desta regressam as chaves de casa e no final regressa Shen Tao que dança sob a neve que cai. 
                      se as montanhas se afastam
     Por este breve mas indispensável resumo se percebe que o cineasta investe aqui o tempo como nunca antes fizera, para se confrontar com passagem do tempo e a caducidade de tudo. Enquanto a própria China vai passando também, no final já como uma experiência distante para Zhang pai e Zhang filho. Não sei de outro filme em que o cineasta tenha arriscado tanto com tão pouco para nos transmitir a deslocação no espaço (significativas as várias viagens de comboio) e a passagem do tempo, perante o que o melodrama se entende plenamente numa civilização milenar que continua a ter a família como seu núcleo fundamental.
      Do ponto de vista cinematográfico são especialmente importantes os diálogos num só plano e os diálogos com campo-contracampo, num jogo fascinante e sempre justificado. Jia Zhang-ke continua a ser, mais do que nunca agora que contraria todas as expectativas, um dos mais destacados cineastas emergentes do Século XXI  - sobre ele ver "Contra o esquecimento", de 29 de Janeiro de 2012, e "O devir-violento", de 15 de Dezembro de 2013.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Indispensável partilha

   "Amanhã"/"Demain", de Cyril Dion e Mélanie Laurent (2015), é um excelente documentário sobre o "estado do mundo" e o que há que fazer para dele sair. O que há que fazer a partir de agora, de amanhã, para o que em cada uma das suas cinco partes apresenta algumas questões tal como elas estão a ser enfrentadas já. 
                     Un projet de permaculture cité en exemple dans « Demain »
    Sobre agricultura, energia, dinheiro, democracia e ensino, este documentário percorre o mundo em procura de novas soluções, de novas respostas que estão neste momento já a ser dadas, e é em todos os pontos de uma clareza impressionante porque dá a palavra àqueles que protagonizam essas mudanças.
   Um primeiro ponto comum entre as cinco questões, que se seguem a um prólogo muito importante, é que a diversidade é sempre melhor do que a concentração. Um segundo ponto comum é que se trata de soluções complementares, não alternativas. O terceiro é que as novas soluções estão nas mãos de todos e de cada um de nós. O quarto é que não se pode contemporizar com os interesses e os poderes estabelecidos ou esperar por eles, que por si próprios manterão e até agravarão o presente estado de coisas. Um quinto ponto é que temos todos que falar uns com os outros a este respeito, sem receio de o fazer. Por último, tem que se começar já. 
                    Gram_sabha_15
      A grande vantagem do invento dos irmãos Lumière é mesmo a de permitir fazer filmes como este, em que se parte do real que se mostra e se dá a palavra àqueles que estão a mudar a realidade. Com o meu modo de vida atribulado, que me leva a chegar muitas vezes com atraso a cada novo filme que se estreia, ainda consegui ter tempo para assistir à única sessão diária a uma hora complicada. Mesmo assim, estava muita gente a assistir.
     É preciso que o maior número de pessoas possível veja este documentário indispensável, movido por um espírito de partilha, que é tudo menos indiferente. O que aqui está não passa no discurso da generalidade dos "políticos profissionais", demasiado ocupados com os cenários macro-económicos e as leis do mercado para atenderem a estas minudências, eles que se revezam no poder sempre ao serviço dos mais poderosos, cujos interesses acima de tudo servem e defendem. 
                     K3-finlande
     As mudanças em curso, que deparam por vezes com a oposição dos poderes estabelecidos, estão a começar por baixo, onde nos movemos, e assim devem continuar a acontecer. E passem a palavra. Embora a proposta deste filme não seja a única possível, é preciso conhecê-la e ponderá-la como ela merece.

Está tudo certo

    Quando se estreou "Que Horas Ela Volta?", da paulista Anna Muylaert (2015), perante os resumos promocionais não tive pressa em ver o filme. Com aquela descrição só havia uma boa hipótese de duas, o que confirmei agora ao ver o filme. 
                       Que-Horas-Ela-Volta-6.jpg
     De facto, perante a chegada de Jéssica/Camila Márdila à casa em que a sua mãe, Val/Regina Cassé, trabalha como empregada domésica, ida para São Paulo para estudar arquitectura, só se podia esperar que ela viesse mexer com a família abastada, Bárbara/Karine Teles, Carlos/Lourenço Mutarelli e o filho de ambos, Fabinho/Michel Choelsas. Restava saber se o filme seguia um rumo buñueliano, definido nos seus melodramas feitos no México nos anos 50, ou um rumo pasoliniano, segundo o modelo de "Teorema" (1968), que talvez não se oponham um ao outro tanto como isso.
    O filme escolhe muito claramente o modelo pulsional de Luis Buñuel, de que apresenta alguns sinais inequívocos: a recorrência de uma escada e de um cão, as águas paradas da piscina, que acaba por ser esvaziada por causa de um rato morto, os assomos de Carlos e de Fabinho - que Val conhece desde criança e confia mais nela do que na mãe -, a queda acidental de Bárbara.
                      val e jessica.jpg
   Relativamente cedo no filme Jéssica tenta sair daquela casa em que a mãe é simples empregada, reduzida a esse estatuto, antes que seja tarde demais, mas da primeira vez não consegue e vê-se obrigada a regressar. Entretanto o melodrama faz a sua entrada com a descoberta de Val de uma fotografia de criança pequena, o que abre a porta para o final familiar e contra a prepotência dos senhores, em que o fracasso escolar de Fabinho contrasta com o sucesso de Jéssica.
    Mas o esquema pulsional de Luis Buñuel implicava, entre outras coisas, uma queda e um declive enquanto Anna Muylaert prefere um final moralizador e feminista, que é também de inconformismo social, com a subida e a independência de quem estava submetido e a partida para longe do filho da família. Apesar do seu compromisso final com o melodrama, que Buñuel também adoptava, "Que Horas Ela Volta?" é perfeitamente claro e inequívoco nos sinais que deixa, até demasiado ostensivamente. "Está tudo certo", como Jéssica diz ao telefone.
                     Que horas ela volta - Jessica ante la piscina y los chicos dentro
   Segundo entendi, no Brasil foi destacado o filme adoptar o ponto de vista de Jéssica e o seu significado sociológico, o que se compreende mas é meramente resultante da construção certeira da realizadora, também argumentista, e relativo ao seu circunstancial politicamente correcto. A mim fica-me o pano de fundo pulsional como grande mancha que muito pertinentemente singulariza este filme. De resto, todos sabemos que o Brasil conta com grandes actrizes e actores.
    Em  resumo, "Que Horas Ela Volta?" é um filme inteligente mas limitado, feito sobretudo para o consumo interno, que nos faz desejar de novo que nos chegue mais do melhor que o cinema brasileiro está a fazer neste momento. No Brasil o realismo psico-social passa melhor na telenovela.

domingo, 11 de setembro de 2016

José Rodrigues (1936-2016)

     Escultor e artista plástico, desenhador e pintor de grande mérito, foi um dos fundadores em 1963 da Cooperativa Árvore, no Porto, que desde o seu início desenvolveu intensa actividade na criação e na divulgação artística com uma dimensão crítica que fez dela uma referência de intervenção cultural que se mantém até hoje. Autor de obras monumentais importantes, teve exposições individuais de obras suas em Portugal e em vários outros pontos do globo. 
                      
     Foi também um dos impulsionadores da Bienal de Vila Nova de Cerveira e deixou uma fundação com o seu nome, a Fundação Escultor José Rodrigues. Recebeu distinções relevantes pela sua obra, de que se destaca a parte dedicada à arte sacra, e foi uma figura muito importante da vida cultural portuguesa, em especial no norte do país. Aqui me despeço do autor do famoso Cubo da Praça da Ribeira, no Porto, apresentando à família e à Cooperativa Árvore, de que foi Presidente, a expressão do meu muito sentido pesar.

Um exercício inteligente

     "11 Minutos"/"11 minut", o mais recente filme do polaco Jerzy Skolimovski (2015), não acresecenta nada de especialmente importante à sua já vasta obra, embora também nada lhe retire nem a diminua. De facto, percorre um caminho anteriormente seguido por "Amor Cão"/"Amores perros", de Alejandro Gonzalez Iñarritu (2000), e por "Colisão"/"Crash", de Paul Haggis (2004), o de um acidente simultâneo com diversos intervenientes, apenas com a originalidade de colocar o acidente no final do filme e de não haver relação aparente entre todos os envolvidos
                      
     Ao descrever os onze minutos finais de cada um deles, o cineasta joga com a simultaneidade de diferentes circunstâncias pessoais com o ponto comum da passagem de um avião e de um ponto não revelado no espaço para alguns deles. Mesmo assim, aqueles breves minutos dilatam-se graças à montagem e acabam por nos interessar por cada uma das personagens, que desconhecem todas elas o que num brevíssimo lapso de tempo as espera.
    Para quem conhece o talento deste contemporâneo de Roman Polanski, que como ele procurou os caminhos do exílio do seu país nos anos 60 para a ele regressar mais recentemente e onde fez "Quatro Noites com Ana"/"Cztery nori z Anna" (2008) seguido do mais internacional "Essential Killing - Matar para Viver"/"Essential Killing" (2010), à primeira vista a presente é uma obra a atribuir a simples divertimento e prova de engenho como um "exercício de estilo".     
                     
        Se se entender "11 Minutos" como tal, penso que ele pode ser visto como uma fantasia sagaz de quem quer manter-se em actividade. E nessa medida é um exercício de estilo inteligente e conseguido. Mas também se lhe pode chamar mestria, considerando especialmente que é também um filme sobre o cinema, sobre o olhar e a sonegação de ver, e que Jerzy Skolimovski continua a ser argumentista dos seus próprios filmes que realiza um a um com apuro técnico e grande pertinência narrativa e estética. Ou de como um pequeno filme pode ser tão importante como qualquer outro bom filme.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Uma boa equipa

     Com os filmes anteriores datados de 1996 (Brian De Palma), 2000 (John Woo), 2006 (J. J. Abrams) e 2011 (Brad Bird), "Missão Impossível: Nação Secreta"/"Mission: Impossible - Rogue Nation", de Christopher McQuarrie (2015), o mais recente desta série, devolve-nos Ethan Hunt/Tom Cruise e a sua equipa em plena acção perigosa, permanentemente à beira da catástrofe.    
                      mission impossible rogue nation rebecca ferguson review Mission: Impossible   Rogue Nation Review
     Desta vez é o seu chefe que afinal liderava a força inimiga, denominada Syndicate, e a equipa percorre um triângulo geográfico, entre Viena, Marrocos e Londres, cada um dos locais marcado por acção intensa: a ópera em que se representa "Turandot" de Giacomo Puccini, os subterrâneos e subaquáticos segredos e a perseguição de automóvel e de mota, o desenlace que envolve o primeiro-ministro inglês.
     Está tudo muito bem concebido e conseguido num filme em que o realizador é também autor da história, com Drew Pearce (a partir da série televisiva criada por Bruce Geller), e argumentista, actividade pela qual é mais conhecido - esta é apenas a terceira experiência na realização Christopher McQuarrie e sai-se muito bem. Mas rapidamente percebemos estar perante um lugar comum do filme de espionagem - cada um dos agentes secretos  do cinema enfrentou ou vai enfrentar situações semelhantes -, muito embora a ideia da equipa, do team seja original  e esteja bem aproveitada narrativa e filmicamente, como é hábito .
                      Mission: Impossible - Rogue Nation (2015) by The Critical Movie Critics
       O humor e o amor vêm condimentar este "Missão Impossível: Nação Secreta", com a equipa completa: Jeremy Renner como Brandt, Simon Pegg como Benji, Ving Rhames como Luther funcionam bem em conjunto, uns com os outros e com Ethan Hunt. Alan HunleyAlec Baldwin como director da CIA e Ilsa Faust/Rebecca Ferguson como espia inglesa por quem passa um equilíbrio difícil e a resolução de situações decisivas, Lane/Sean Harris como supervilão fazem o resto.
      Percebendo embora o interesse deste tipo de filmes, sou invadido por algum cansaço e alguma saturação perante eles, que acabam por se citar uns aos outros, como se seguindo todos um itinerário muito definido para o filme de espionagem. Mas gostei especialmente da fotografia de Robert Elswit e da sequência na ópera. E anuncia-se o sexto filme. Louve-se a iniciativa de Tom Cruise como produtor e o seu carisma pessoal como actor, aqui especialmente bem aproveitado.