“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Uma questão familiar


         “Uma Separação”/”Jodaeiye Nader az Simin” é a quinta longa-metragem de Asghar Farhadi, realizador, produtor e argumentista, mais um filme iraniano muito bom - recebeu este ano o Óscar para o melhor filme estrangeiro - que vem chamar a atenção para uma cinematografia importante que nunca se resumiu a Abbas Kiarostami, e hoje menos do que nunca. Conhecem-se mesmo os problemas de cineastas iranianos com o actual regime de Teerão, que levaram à prisão de alguns deles, o que suscitou um vasto movimento internacional de indignação, solidariedade e protesto.
         O filme começa por um argumento muito bem imaginado a partir do quotidiano de um casal em vias de separação, Simin/Leila Hatami e Nader/Peyman Moadi, de que nos é dado mais o ponto de vista dele, um casal dividido pela atitude face ao futuro: emigrar, como por causa da filha, Termeh/Sarina Farhadi, pretende Simin, ou ficar, como pretende Nader por causa do pai doente e de idade avançada. A situação torna-se melindrosa e equívoca quando a empregada contratada para tomar conta do idoso dependente, Razieh/Sareh Bayat, é acusada de incúria e acusa Nader de, ao empurrá-la, a ter feito cair e perder o filho de que estava grávida.
                      
       Quando a acção do filme passa para a audição por um inquiridor, tendente a apurar responsabilidades e tentar, por isso, saber o que de facto aconteceu, o drama leva a que se confrontem duas famílias, já que Hodjat/Shahab Hosseini, o marido de Razieh, resolve intervir para pedir satisfações, sem que o espectador saiba do que aconteceu senão a parte que lhe foi mostrada – e a reconstituição com os intervenientes do que aconteceu, e vimos, é muito bem dada. Momento forte, decisivo, vai ser, contudo, aquele em que Razieh recusa jurar que as coisas se passaram como ela diz, momento muito bem tratado em termos fílmicos, que põe à prova as crenças religiosas arreigadas da personagem.
           Ora esta trama, muito bem urdida a nível de argumento, é muito bem encenada a nível de realização, que constrói muito bem o filme em termos de exploração dos espaços e do trabalho dos actores. E é mesmo a realização superior, que inscreve as personagens no espaço para depois delas questionar o que sabemos, que transforma “Uma Separação” num filme que excede as suas simples premissas narrativas e acaba por ser um muito interessante questionamento sobre a verdade e a mentira, as melhores intenções à parte. De facto, com meios escassos e em espaços limitados Asghar Farhadi consegue apresentar as personagens e os conflitos de maneira inteiramente convincente e sustentada em termos fílmicos, o que torna o filme num pequeno-grande achado, perfeito em termos dramáticos e em termos formais, com uma resolução plena de interesse, novidade e frescura, segundo a qual nem tudo o que parece é como parece ser, porque os indivíduos são, em si mesmos, seres complexos e não os simples desenhos  convencionais que querem aparentar ser. Por isso a verdade advém da parte da única personagem que, em toda a sua complexidade, a podia fazer aparecer, posto o que a última palavra do filme caberá à filha do casal em separação.
                     
            Deste modo, trabalhando sobre o cliché e contra o cliché, “Uma Separação” cumpre com um brio inesperado, invulgar, um programa narrativo simples, com uma realização superior sem arrebiques e actores notáveis mas com um segundo grau de leitura muito importante, já que encena de modo muito feliz as diferentes concepções da vida das diferentes personagens, representativas de diferentes atitudes relevantes presentes numa sociedade fechada como é na actualidade a iraniana, o que merece especial atenção e torna este filme ainda mais interessante e recomendável. Assim se demonstra mais uma vez como o cinema pode ser, tal como a arte, a consciência de uma sociedade, a consciência do mundo e do tempo.

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