“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 19 de agosto de 2012

Um desejo

         Felizmente, conhecemos alguma coisa do actual cinema japonês, e o que dele conhecemos permite-nos dizer que tem cineastas e filmes muito bons. Os meus preferidos são, neste momento, Kyioshi Kurosawa e Hirozaku Koreeda, qualquer deles com filmes muito interessantes realizados até agora - isto além de Takeshi Kitano, um dos grandes mestres do cinema contemporâneo, e de Hayao Miyazaki, o mestre incontestado da animação. A estreia  de "O Meu Maior Desejo"/"Kiseki" (2011), o mais recente filme de Hirozaku Koreeda, permite mesmo perceber que não há sombra de ingenuidade num cineasta que sobre ela constrói o seu filme, sobre dois irmãos que vivem cada qual com um dos progenitores, e por isso separados, que acreditam poder operar o milagre de os reunir de novo se conseguirem ver cruzarem-se dois comboios de alta velocidade. É esse o seu maior desejo.
              Todavia, antes de aí chegar o cineasta leva-nos a acreditarmos, como espectadores, na ingénua fé das duas crianças, cada uma delas arrastando consigo alguns amigos, e para isso faz com que o filme descreva, com inteira credibilidade, o respectivo quotidiano, Koichi/Koki Maeda em casa da mãe e dos avós, Ryu/Ohshirô Maeda em casa do pai. É principalmente o primeiro, mais velho, que o filme segue, no seu dia a dia entre a casa e a escola, o que é motivo para uma recriação realista mas vista a partir dos olhos de Koichi, com apontamentos muito saborosos nomeadamente com o professor e com o avô que faz pão-de-ló - o momento em que se tenta definir o sabor deste é soberbo. Além dele, assumem relevo dois pequenos amigos, um deles com um cão, e uma rapariga mais velha que ambiciona ser actriz, o que a mãe não conseguiu ser por muito tempo.  
                    
             Deste modo, e sem darmos por isso, a partir de pequenos apontamentos entramos na vida de personagens comuns na actualidade, com numerosas referências ao passado, ao desejo de ver reunidos de novo os pais e ao futuro - os dois irmãos mantêm-se em contacto através do telemóvel. A descoberta de uma ideia salvadora, capaz de fazer cumprir os seus desejos, surge a pouco e pouco a Koichi, mas uma vez ela desenhada trata-se de com o irmão acertar os pormenores e fazer os preparativos.
           Hirozaku Koreeda consegue, com grande simplicidade e sem concessões fáceis nem mesmo ao melodrama, construir o aparecimento de um desejo que se torna um desígnio comum aos dois irmãos, segurando sempre o filme entre o quotidiano e a crença partilhada, o que consegue tanto melhor quanto nos convence daquilo que nos mostra, nos faz partilhar a fé infantil das duas crianças. Ora há algo de mágico nisto, pois não é facil nos dias de hoje fazer os espectadores partilharem, sem artifícios, os problemas e os anseios dos mais novos, tornados inteiramente verosímeis e dignos de que neles se acredite. Para tal contribui a "mise en scène" do cineasta, muito boa e bem dominada em todos os momentos, mas também a não ingenuidade, pelo menos total, das próprias personagens, em especial das crianças. 
                    
             O que se torna digno de maior apreço no filme é que as crianças, em especial Koichi mas também Ryu, vão mudando a pouco e pouco, sob a influência do que vão vivendo, do que e daqueles que os rodeiam, e de tal maneira vão mudando que quando chega o momento decisivo, muito bem preparado e muito bem dado em si mesmo em termos visuais, o desejo que cada um deles vai formular vai ser, afinal, um outro desejo, entretanto surgido e tornado mais forte. Este simples facto, a mudança de desejo, muito bem dado com recurso a actores infantis e adultos de grande qualidade por uma realização sagaz, faz com que acreditemos mais e melhor no filme e na ingénua fé infantil que ele apresenta, recria e constrói. Sim, eles acreditam que daquele cruzamento de dois comboios de alta velocidade pode surgir o cumprimento do seu maior desejo, mas este, que inicialmente era um, a nova reunião dos pais, no final vem a ser outro.
              A ingenuidade, em especial a ingenuidade infantil, é algo por vezes difícil de descobrir e de construir precisamente por isso, porque nunca é inteiramente ingénua. Preservá-la em personagens em evolução, cujos desejos mudam com o aumento do que vão aprendendo sobre o mundo e do que descobrem dele desconhecer, é no fim de contas o segredo deste excelente filme e o segredo da verdadeira ingenuidade, que para ser plena nunca o é em termos absolutos, como os verdadeiros ingénuos sabem, porque há sempre mais coisas desconhecidas que despertam a curiosidade. Assim, "O Meu Maior Desejo" dá uma continuação inteiramente à altura a uma obra assinalada nomeadamente por "Ninguém Sabe"/"Dare mo shiranai" (2004) e "Andando"/"Aruitemo aruitemo" (2008), dois filmes muito bons que também eles encenam universos em que as crianças e o convívio de gerações são, como aqui, fundamentais.            

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