“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 30 de setembro de 2012

O vício do passado

      Edgar Pêra é um cineasta que, no seu melhor, trabalha o cinema de modo experimental, o que cria o maior atractivo dos seus filmes. Ele não corre, assim, com a maioria do cinema português, de ficção ou documental na sua maioria, preferindo antes uma espécie de margem em que lhe é permitido experimentar o meio, fazer com ele as coisas que nos outros filmes ninguém arrisca fazer.
       O seu último filme, "O Barão" (2011), livremente inspirado em obra de Branquinho da Fonseca (1), é um filme admirável precisamente pela experimentação a que o cineasta se dedica. Assumindo-se como filme americano da série B feito nos anos 40 em Portugal, o filme tem muito interesse na sua narrativa, com argumento de Luísa Costa Gomes e do próprio Edgar Pêra, mas onde atinge um plano superior é na experimentação a que, com muito sucesso, o cineasta se dedica na montagem. Deste modo, se a narrativa visual assume pontos de contacto com o filme de terror americano dos anos 30 e 40, a expressividade da montagem faz lembrar mais as vanguardas europeias dos anos 20, no final do cinema mudo. 
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        Falso clássico, "O Barão" de Edgar Pêra é, pois, um verdadeiro filme moderno, modernista, pelo arriscado mas conseguido trabalho a que o cineasta se dedica para desdobrar os pontos de vista, para abarcar o mesmo espaço (a sala) num único plano e em planos separados e sobretudo para, em sobreimpressão, dar campo e contracampo no mesmo plano, um trabalho notável e ainda hoje moderno e vanguardista, ainda para mais num filme que foi rodado em 16mm a cores e passado a um preto e branco muito sugestivo no laboratório (2).
       Dito isto muito sucintamente, quem quiser assistir ao filme por causa da narrativa não fica decepcionado e recebe como bónus uma obra visualmente surpreendente, a preto e branco com uma surpresa no fim, com música e canções em cenas muito bem resolvidas em termos fílmicos, a última das quais depois do genérico de fim. A personagem do Barão é central pelas melhores razões, por si próprio e pelo que suscita nos outros, nomeadamente no kafkiano inspector em inspecção à escola primária nesta kafkiana história portuguesa, e os actores estão todos muito bem porque se oferecem à câmara de Pêra em plena disponibilidade - destaque para Nuno Melo, notável, Marcos Barbosa e Leonor Keil.
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        "O Barão" de Edgar Pêra é, pois, um filme muito interessante em termos narrativos, pela maneira como desenvolve a sua própria parábola a partir de personagens sólidas e esquivas, mas sobretudo muito interessante pelo seu expressivo e experimental trabalho sobre a imagem e o som. O cineasta atingiu aqui a plena maturidade de um estilo que não se deixa envelhecer nem ultrapassar, sempre em reinvenção. Além disso, este é um filme que tem o mérito suplementar de chamar a atenção para um dos maiores escritores portugueses do século XX, Branquinho da Fonseca, cuja leitura continua a ser um manancial de ensinamentos e um verdadeiro prazer (3).

Notas
(1) As "Obras Completas de Branquinho da Fonseca" estão editadas pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda em 3 volumes, com edição de António Manuel Santos Ferreira (2010), e aí "O Barão" figura no segundo volume. Mas a mesma editora fez uma edição especial de "O Barão", comemorativa da estreia deste filme de Edgar Pêra, com Prefácio do cineasta e fotografias de Luís Branquinho da Fonseca Soares de Oliveira, que foi Director de Fotografia do filme e é neto do escritor. 
(2) Na introdução que faz à edição comemorativa mencionada na segunda parte da nota anterior, "A Vida é Devorar - Prólogo de um Fotógrafo Privilegiado", Luís Branquinho esclarece que se inspirou para a fotografia de "O Barão" de Edgar Pêra no livro do seu avô ilustrado por Júlio Pomar, nos quadros de Francis Bacon, nos filmes de luz expressionista, na sua própria ideia da pessoa do seu avô e na sua imaginação do que seria "...a sua visão, o seu imaginário fotográfico do conto."
(3) Sobre esta obra em concreto, tem muito interesse "O Barão de Branquinho da Fonseca - De sua fortuna crítica a um estudo temático comparativo", de José Maria Rodrigues Filho, em 2 volumes, também editado pela IN-CM (2008).

1 comentário:

  1. Caro Carlos Ferreira, queria apenas informar que as candidaturas para os TCN Blog Awards 2012 já estão abertas. Mais info em http://cinemanotebook.blogspot.pt/2012/10/tcn-blog-awards-2012-candidaturas.html .

    Cumprimentos cinéfilos!

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