"Não"/"No" (2012) encerra a trilogia que o chileno Pablo Larrain dedicou à ditadura que governou o seu país após o golpe de estado militar que, em 11 de Setembro de 1973, depôs o presidente eleito, Salvador Allende. Os filmes anteriores são "Tony Manero" (2008) e "Post Mortem" (2010). Um país que viveu tal circunstância precisa de sobre ela reflectir mesmo depois de ela ter terminado, e foi esse o empreendimento que o cineasta se propôs e a que aqui põe termo.
Começando por olhar para a trilogia como um todo, aquilo que nela pessoalmente mais me impressiona é o retrato do quotidiano de um país deprimido, submetido a um reino de arbitrariedade e de terror, que de uma maneira muito directa e feliz atravessa os filmes anteriores e aqui vem culminar num clima de luta e de esperança. Essa vivência do dia a dia é muito importante para que se perceba o que uma ditadura como a de Pinochet significou para aqueles que a ela estiveram submetidos nos aspectos mais comezinhos, como ela os atingiu individualmente, como seres humanos integrados numa sociedade.
E é porque tal está presente de uma maneira clara nos três filmes que eles podem funcionar de um modo político eficaz, em que por trás de personagens aparentemente comuns desponta a sombra do regime de terror, suspeita e violência responsável pelos piores crimes, e de que neste último filme é mostrado o final. É evidente que o processo só por si é muito feliz e funciona muito bem, com cada filme apontando para fantasmas específicos que a sociedade chilena foi levada a criar e com que teve de conviver.
Durante a ditadura foram muito importantes os filmes de Patricio Guzmán, nomeadamente o documentário em três partes "La batalla de Chile" (1975, 1976, 1979), por terem permitido passar para o exterior a história social, económica e sobretudo política que precedeu o golpe militar de 1973 contra Allende, e este cineasta prosseguiu mesmo depois do termo da ditadura o estudo documental do seu país. Mas esse trabalho, embora indispensável e muito útil não substitui a necessidade de olhar para a ditadura e para a sociedade do lado dos espíritos e do imaginário, inevitavelmente atingidos, o que o documentário cumpre de forma menos satisfatória e só a ficção permite plenamente atingir. Ora é a esse trabalho sobre as mentes e a imaginação que nesta trilogia Pablo Larrain se dedica de maneira muito segura, também sombria, um trabalho analítico que inclui o simbólico que de forma inteligente e sugestiva exemplarmente cumpre.
O clima mais sombrio dos anos da ditadura estava muito bem dado, de maneira precisa e sem concessões, nos primeiros filmes da trilogia, com um lado expansivo que não escondia uma profunda tristeza no primeiro, um lado necrófilo, mais concentracionário, no segundo. Para encerrar, Pablo Larrain escolheu acompanhar a campanha que, em 1988, apoiou o Não no referendo organizado pelo regime, e o seu melhor trunfo é escolher o ponto de vista do consultor da campanha, o publicitário René Saavedra/Gael Garcia Bernal, em confronto com o seu opositor, Lucho Guzmán/Alfredo Castro - este último o excelente actor que protagonizara os dois filmes anteriores. O argumento baseia-se em peça de Antonio Skármeta, que por sua vez parte de factos reais, e permite que o filme funcione muito bem porque o cineasta acompanha René, mesmo na sua vida privada colocada em perigo sob a ameaça dos seus opositores, transformando-o assim num puro e simples herói tranquilo que luta com as armas publicitárias mas também políticas que o confronto exige - e Garcia Bernal está muito bem num registo contido mas expressivo.
Sem meias-tintas, e ciente de estar a contar uma história muito importante para o presente e para o futuro, Pablo Larrain mantém sempre a distância justa, não hesitando na proximidade do grande-plano e na justeza do plano médio e do plano geral, nem recusando as imagens da própria época que reconstitui, que integra de forma apropriada e feliz, o que confere ao filme uma vivacidade superior à dos filmes anteriores, propositadamente mais lentos e mortiços no seu percurso analítico do negrume exterior e interior das suas personagens, que se justifica pela dinâmica da perspectiva mobilizadora que em "Não" existe de pôr fim à ditadura pelos meios democráticos que ela nunca antes permitira e então só relutantemente admitiu. "Já caiu! Já caiu!", grita-se no fim, depois da vitória do Não.
Em vários casos, os próprios que viveram os acontecimentos interpretam o seu próprio papel e a fotografia de Sergio Armstrong consegue ser fortemente evocativa, o que confere a "Não" uma autenticidade especial, num tom que não dispensa o humor que alivia a tensão sem ocultar o jogo sujo do ditador e dos seus sequazes e beneficia o filme.
Um país como o Chile tem neste momento um cinema à altura do seu tempo, do presente, capaz de lidar com a memória do passado com fidelidade e desassombro, conservando o lado mais acabrunhante e terrífico da ditadura, que existiu mesmo e foi assim até ter terminado. Terminar esta notável trilogia com um filme categórico e muito bom sobre a vitória do povo e a recusa da ditadura fica muito bem a Pablo Larrain.
Um país como o Chile tem neste momento um cinema à altura do seu tempo, do presente, capaz de lidar com a memória do passado com fidelidade e desassombro, conservando o lado mais acabrunhante e terrífico da ditadura, que existiu mesmo e foi assim até ter terminado. Terminar esta notável trilogia com um filme categórico e muito bom sobre a vitória do povo e a recusa da ditadura fica muito bem a Pablo Larrain.
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