“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Elogio do sensível

       "João Queiroz, pintura" é uma das quatro curtas-metragens de "4", de João Botelho, ainda em finalização, sobre quatro grandes artistas portugueses contemporâneos, e é por si mesmo, nos seus 25 minutos de duração, um filme admirável.
        Fiel a uma inspiração straubiana, que aqui converge com "Cézanne" (1989) e "Une visite au Louvre" (2003), de Jean-Marie Straub e Daniéle Huillet, o cineasta entrega-se a um exercício criativo, mais que a um exercício de estilo, ao filmar a pessoa, as palavras e os quadros do pintor, que parte de uma relação sensível com a natureza, com os objectos, com a vida para a sua criação, e não apenas de conceitos, que em vez de premissas, apesar de surgirem antes no filme são pontos de chegada. Para captar a percepção que está nas próprias coisas, na sua natureza sensível e perceptível, João Queiroz aconselha o contacto táctil, sensorial, com o que vai pintar, para que essa sensação passe para o que vai representar pictoricamente. "Pintar do natural não é copiar o objectivo, é dar forma a sensações." (1). Sabendo embora que o motivo fundamental não é, por isso mesmo, visível na representação visual.
                     
          Além de ser, e de maneira deliberada, uma lição de pintura, este filme é também uma lição de cinema, sobre o modo de filmar palavras e aquele que as diz, gente viva, quadros, conceitos. Com uma música que culmina, empolgante, em Wagner, o filme filma o rosto dos que dizem, repetindo-as, as palavras das lições de pintura, filma o próprio pintor a caminhar, silencioso, na Serra o Caramulo, filma as premissas dos conceitos, das lições, filma a natureza e o contacto táctil com ela (uma folha, verde), filma os quadros concluídos, parcial e dispersamente, como é inevitável. Ao fazê-lo como o faz, dando todo o destaque às palavras, ao contacto sensível, aos conceitos assim mediados, João Botelho pratica uma poética do sensível que vem da pintura (Cézanne, que precedeu o nascimento do cinema) e vem do próprio cinema (Straub/Huillet, nomeadamente nos filmes acima mencionados).
        Mas mostra também o pintor a pintar, a estabelecer o traço e a cor do que vai preencher a tela, primitivamente em branco, com o que filma o que é filmável do momento da criação, do acto de criação assim tornado perceptível, visível e partilhável quanto o pode ser na duração duma curta-metragem. Que eu saiba, ninguém no cinema português foi tão longe nesta questão como Botelho aqui vai.
                      
         Como um sopro, passa por esta curta-metragem a partilha do sensível de Jacques Rancière e a materialização do acto de criação como ninguém (salvo Henri-Georges Clouzot em "Le mystère Picasso", 1956, e Victor Erice em "O Sonho da Luz, o Sol do Marmeleiro"/"El Sol del membrillo", 1992) jamais o filmou. Tal como é, este filme é perfeitamente consistente com a obra do cineasta, nomeadamente com a sequência da «Marcha fúnebre para o Rei Luiz Segundo da Baviera» do "Filme do Desassossego", a sua última longa-metragem (2010) que com variantes e precisão prolonga e comenta. Talvez "João Queiroz, pintura" seja mesmo a obra-prima de João Botelho, de quem apenas não conheço os outros documentários que tem feito nos últimos anos.

Notas
(1) Paul Cézanne em carta a Émile Bernard em 21/10/1904, citado em "Paul Cézanne", de Élie Faure - edição portuguesa «"Paul Cézanne" por Élie Faure, seguido de "O que ele me disse..." por Joachim Gasquet», Sistema Solar, Lisboa, 2012, com a especial curiosidade de ter sido do segundo que Jean-Marie Straub e Danièle Huillet partiram para os seus dois excelentes filmes "Cézanne" e "Une visite au Louvre", que terão influenciado João Botelho nesta sua curta-metra

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