“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Poética de Chaplin

      Passam agora 100 anos sobre o início da actividade de Charles Chaplin no cinema. Por ele ter sido um dos nomes mais importantes de toda a história do cinema, aqui recordo mais alguns dos traços memoráveis que o tornaram perene (ver "Génio de Chaplin", 7 de Fevereiro de 2014).
                                       
   Desde os seus inícios, Charlot foi uma personagem tímida mas atrevida, que, sempre interpretada por ele, o seu criador, quando em situação de inferioridade reagia de forma inesperada, quando em situação de superioridade dessa mesma situação abusava, como era suposto acontecer, quando colocada em situação de perda reagia emocionado, quando enamorado ousava, quando batido revoltava-se... ou rendia-se. Embora sempre em termos muito expressivos, tudo feito na maior inocência e simplicidade.                                
   De uma simplicidade ingénua, Charlot não era, contudo, pueril, antes elaborava o seu comportamento e a sua resposta como qualquer um o poderia fazer, mas indo sempre um pouco mais longe do que esperado. E nesse pequeno excesso, em que residia a sua originalidade, dava forma e voz ao inconsciente, que desconhecemos, e ao subconsciente, que não dominamos - nem permitimos que se expressem a não ser involuntariamente, quando por si próprios se impõem. Se pode dizer-se que ele foi cada um de nós é precisamente por causa desse excesso que, sendo devido, surgia como ousadia pouco habitual.   
                       
    Por causa dele, desse pequeno excesso, suscitava reacções também elas inesperadas, embora muitas vezes previsíveis, com as quais tinha que se haver. Na dinâmica daí resultante, em que intervinha o imprevisto calculado, suscitava o gag cómico no seu desenvolvimento lógico, embora também ele, e até sobretudo ele inesperado, e fazia proliferar os excessos, o que gerava o equilíbrio fundamental de cada um dos seus filmes. Ele não era nem melhor nem pior do que nós somos, limitava-se apenas a fazer o que geralmente não fazemos, utilizando o que recalcamos ou calamos por timidez, receio das conveniências ou hábito social que em nós atrofiam forças e energias que não nos atrevemos a utilizar mas que, quando despertas ou não mutiladas, falam por nós.
      Vagabundo, Charlot não tinha destino, não tinha horizonte, limitava-se a caminhar, embora por vezes acompanhado, rumo ao infinito, no seu típico andar desajeitado que, juntamente com o vestuário, a bengala e o bigode, jogava bem com o seu comportamento, fazia parte da sua personagem, que também exprimia: sempre em equilíbrio precário, embora com um centro de gravidade bem definido que o fazia equilibrar-se ou recuperar o equilíbrio em todas as situações.
                     Charles Chaplin in Lichter der Großstadt            
    E note-se que o auge da arte de Chaplin se situou no cinema mudo, até "Luzes da Cidade"/"City Lights" (1931), o que se explica pelo carácter essencialmente físico, corporal dos seus filmes e dos respectivos processos buslescos, essencialmente visuais, facto que o torna um dos grandes fundadores do cinema, da sua linguagem e da sua arte em termos absolutos. 
     A partir de "Luzes da Cidade", adoptados o melodrama e o som Chaplin tornou-se mais sentimental mas também mais directamente crítico, e o excesso sentimetal decorreu, ele também, de um pequeno excesso (a cega naquele filme) tal como a crítica decorreu de um pequeno excesso expressivo, o que fazia as personagens e os filmes falarem por si próprios, com Charlot ou já sem ele, embora conservando as suas marcas e os seus traços. Mas com o som modificou-se a pura expressão física que ele tinha nos seus filmes mudos, embora a música, sempre composta por Chaplin, e os diálogos, sempre seus, touxessem também uma nova expressividade aos filmes - da sociedade mecanizada, maquinizada e indiferente de "Tempos Modernos"/"Modern Times" (1936) até ao discurso final de "O Ditador/"The Great Dictator" (1940), às digressões produtivas de "Monsieur Verdoux" (1947), ao momento final de "Luzes da Ribalta"/"Limelight" (1953), ao regresso triunfal de "Um Rei em Nova Iorque"/"A King in New York" (1957) e ao pequeno momento de génio, justamente sobre o equilíbrio físico e como tentar mantê-lo, de "A Condessa de Hong-Kong"/The Countess from Hong-Kong" (1967).
                     Tempos Modernos : Foto Charles Chaplin
      Por tudo isto Charles Chaplin, que foi a criatura que criou e os filmes que fez, em cuja criação cinematográfica avulta, especialmente na figura de Charlot, o pequeno excesso que faz transvazar e esclarece como poética própria, foi nas suas obras satíricas e críticas, e por causa delas, não só a figura mais importante do cinema como uma das personalidades mais importantes de todo o Século XX, em nome do qual, mesmo em filmes, em diversas situações muito difíceis falou. Ele foi, em suma, alguém cuja obra urge conhecer e divulgar, sobretudo na presente efeméride.

Sem comentários:

Enviar um comentário