“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Nas trevas interiores


           O húngaro Béla Tarr é um cineasta único, dos mais importantes do cinema contemporâneo, pelo que a estreia do seu último filme “O Cavalo de Turim”/”A Torinói ló” (2011), co-Agnés Hranitzky, é um verdadeiro acontecimento. Senhor de um estilo radical único, ele tem criado filmes prodigiosos de exigência e rigor estético, que levam a um ponto extremo a proposta de trabalhar com base em planos longos, o que torna cada um dos seus filmes uma aposta extremamente arriscada mas até hoje sempre ganha. Deste “Sátántangó” (1994) que assim tem sido, sem retrocessos nem progressos visíveis (esse continua a ser o seu melhor filme) mas com uma insistência que, aliada á variação dos assuntos, faz com que ele avance sempre e consigo nos continue a arrastar.
           Muita gente não gostará de se ver metida num filme com escassa acção, com pouquíssimas personagens, com raros diálogos e uma voz-off narrativa que em vez de esclarecer às vezes mais parece complicar. Apesar disso, e com isso, “O Cavalo de Turim” é um filme luminoso na obscuridade aparente do seu preto e branco, que sucede a “O Homem de Londres”/”A Londoni férfi” (2007), baseado no romance de Georges Simenon e que é o mais inesperado dos filmes a partir da obra do grande escritor belga – que já foi considerado o mais importante escritor existencialista. Não quero usar lugares comuns, mas devo dizer que o uso do plano-sequência nestes dois filmes leva o cineasta e o cinema para um plano de metafísica da forma, que faz com que se coloque a questão, mais do que daquilo que o olhar pode suportar em plano longo, daquilo que só no plano longo pode ser bem expresso, mostrado e dito no cinema.
                                               
            Não sou, nem penso que se deva ser, um defensor acérrimo do plano-sequência no cinema, mas conhecendo como conheço outros usos que dele têm sido feitos no cinema contemporâneo não terei dúvidas em afirmar que o caso de Béla Tarr é único e exemplar na sua intransigência criativa, na perseguição de alguma coisa que em cada filme só dessa forma pode ser captado, formulado e transmitido. Neste caso o trajecto do filme é verdadeiramente exemplar, pois partindo de um momento fundamental (e final) da vida de Friedrich Nietzsche, narrado em voz-off sobre fundo negro sem ser mostrado, em que o filósofo tenta proteger com o seu corpo um cavalo que está a ser chicoteado, ele vai na outra direcção, a do cavalo e do seu cocheiro, para os seguir nos caminhos de veredas e trevas que vão percorrer em seis dias.
            Ora ao fazê-lo poderá admitir-se que o cineasta está a falar do pensamento do próprio Nietzsche, que a partir daí se deteve pois em seguida ele perdeu o uso da razão, para dele fazer uma interpretação fria e desapiedada que vai levar as suas personagens, o filme e os espectadores a um impasse: o impasse que veio a ser o século XX. Nesse sentido, há o monólogo sobre vencedores e vencidos no final do segundo dia, a visita inesperada e indesejada dos ciganos no final do terceiro dia, o poço tapado no início do quarto, que vai concluir-se sobre a partida e o regresso de pai, filha e cavalo no mesmo plano fixo, os dois últimos dias de andar às cegas no escuro, enquanto como nos dias anteriores pai e filha se afastam ou se aproximam da câmara.
                    
              Só que isto dito não se disse nada, pois o filme se estrutura todo ele sobre os corpos, os movimentos das suas personagens centrais (e quase únicas), pai e filha, de tal modo que os podemos entender como corpos e seres primordiais que se debatem no seu isolamento e na sua solidão absolutamente sem saída, mas que ao fazê-lo no quadro de planos longos, normalmente com profundidade de campo sobre os interiores ou sobre o exterior desértico, nos transmitem a sensação de estarmos a ver corpos humanos em movimento, deitados, sentados, de pé, inclinados pela primeira vez, como que movidos por um motivo que lhes escapa e nos escapa a nós também.
              Talvez seja por isso mesmo, pela exposição de movimentos amplos ou ínfimos do corpo humano no tempo, que “O Cavalo de Turim” na senda dos filmes anteriores do cineasta não aponta para um realismo imediato, a que tem sido tradicionalmente associado o plano-sequência com profundidade de campo, mas parece antes enveredar por uma espécie de abstracção dos corpos, dos seres e dos movimentos que como que se desenrolam no vazio, no nada das suas trevas interiores - a que correspondem as trevas exteriores -, sem motivações próximas ou distantes que não sejam aquelas que, secretas, encontram em si próprios, no seu ser, existir no nada. E nem sequer se trata de um abjeccionismo, como poderia acontecer com outro cineasta, já que tudo decorre dentro de limites muito apertados em que apenas é dado às personagens existirem, sem porquê nem para quê.
                      Miniatura
           Talvez por isso, há quem refira a propósito de Béla Tarr um expressionismo do plano-sequência, em que ganham forma seres quase inexistentes, suspensos entre o ser e o não- ser, na fronteira do ser e do absoluto não-ser, auto-movidos de um modo simples, conturbado e sem razão aparente, de tal modo que os torna comoventes no seu ser dobrados sobre si próprios que é um ser dobrado sobre o seu tudo, o seu todo, e o nada dos outros, nos limites de uma indizível solidão existencial que os torna como que os últimos e os únicos habitantes daquele universo (1). E de facto tudo se transforma e transtorna no quadro de planos longos com profundidade de campo, ocasionalmente mitigada, em que os seres assumem um estatuto de ser consigo próprios e um com o outro em pura sobrevivência aos pequenos e maiores acontecimentos do quotidiano, assim tornado poético no seu vazio sem remissão.
            A poética do plano-sequência que aqui se impõe como pertinente é assim a do vazio preenchido por sombras, sombras de sombras sombrias, para as quais a questão que se coloca é a de recomeçar no dia seguinte, como acontece no final do quinto dia perante a impossibilidade de acender uma simples luz que ilumine a noite. Mas não são estes seres, sombrios e únicos na sua solidão, uma réplica perfeita de cada um de nós? Não é o horizonte deles o nosso próprio horizonte existencial? Só que nós, invadidos e rodeados pelos estímulos de toda a ordem que nos vêm do exterior, e dos quais fazemos por participar, não damos ou não queremos dar por isso, no final do século XIX como no início do século XXI, impotentes para criar ou meramente condicionar o que quer que seja em nossa volta. É que a luz que as personagens não conseguem acender no fim do quinto dia é precisamente a “pequenina luz bruxuleante” de que falava Jorge de Sena, um poeta conhecedor do ofício de trevas, uma luz que faltou a Nietzsche naquele dia 3 de Janeiro de 1889 em Turim e que a nós nos falta todas as noites, sem embargo do que devemos tentar acendê-la no dia seguinte, sob pena de continuarmos máscaras baças que dia a dia traficam a passagem ao dia seguinte ("Depuz a mascara, e tornei a pol-a./Assim é melhor./Assim sou a mascara.//E volto à normalidade como a um terminus de linha." - Álvaro de Campos)
                      Despedida de Béla Tarr
            Ora é essa redução ao essencial, que rejeitamos e não queremos reconhecer, que “O Cavalo de Turim” à semelhança dos outros filmes do cineasta nos aponta e sugere, sem qualquer sombra de compadecimento mas também sem qualquer réstea de comprazimento. A seco tudo é mais claro, mais puro, mais reduzido ao osso e sempre sem saída alguma, no que continua a residir o génio único de Béla Tarr, um cineasta que é preciso conhecer e amar, até porque já serviu de inspiração para outros, como é o caso de Gus Van Sant, que admitiu ser influenciado por ele pelo menos desde “Gerry” (2002) – o que só vem demonstrar que também os grandes cineastas sabem escolher as suas influências. Aliás, o uso que este cineasta húngaro faz do plano-sequência pode ser considerado como inspirado nos filmes do seu compatriota Miklos Jancsó, grande cineasta do plano-sequência ele também, embora os seus filmes fossem muito diferentes dos de Tarr. 
             Béla Tarr diz que este será o seu último filme. Espero bem que seja uma despedida como a de Ingmar Bergman foi em 1982, e que para nosso encantamento, inquietação e muito proveito ele regresse, regresse sempre ao cinema, de que é uma figura maior.

Nota
(1) Sobre a separação entre a "vida" e o "todo" na modernidade, ver João Barrento, "O Género Intranquilo" - anatomia do ensaio e do fragmento", Assírio & Alvim, Lisboa, 2010, pág. 25, com citação de Robert Musil.

1 comentário:

  1. O que me impressionou muito no filme de B.T. é a inevitabilidade quem é miserável mais miserável se vai tornando. Uma espiral mostrada de diversos ângulos, sempre o mesmo desamparo a partir do eixo, que é a desilusão de quem tem quase nada. Um lento definhar, uma escuridão anunciada, um vento que não liberta mas que obriga a recolher, para ficarmos de dentro dos vidros a ver a poeira do mundo, nada mais.

    António Júlio Rebelo

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