“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 17 de junho de 2012

Godard, o passado e o presente

        Um novo filme de Jean-Luc Godard é sempre um acontecimnto muito aguardado, o que voltou a acontecer com "Filme Socialismo"/"Film Socialisme" (2010), a sua primeira longa-metragem de ficção desde "A Nossa Música"/"Notre musique" (2004). Na sua construção, este é um filme que faz lembrar "História(s) do Cinema"/"Histoire(s) du Cinéma" (1988-1998), o filme em quatro partes em que fez a sua história do cinema e, para a fazer, fez a história do século XX, o século do cinema. A diferença é que agora faz a história do século XX e, para isso, recorre de novo à história do cinema. Em ambos os casos, contudo, o que está em causa, mais do que um filme de ficção, de que "Filme Socialismo" tem excertos, é o conceito de filme-ensaio.
                      
         De facto, logo na sua construção "narrativa" verifica-se que o cineasta recorre a textos de um grande número de autores muito variados, com os quais procede em modo de colagem que lhe permita pensar o passado, nomeadamente o século XX, mas também o presente da Europa (e do mundo). Ora a simples ideia de pensar no cinema vem colocar este filme fora da moda actual, que privilegia um cinema de evasão e de alta tecnologia, que faça esquecer os problemas do dia a dia com o recurso aos mais recentes avanços tecnológicos. Daqui Godard apenas guarda o suporte digital, de que aliás retira o melhor partido na imagem (e também no som) durante a primeira parte, "Des choses comme ça", passada a bordo de um navio de passageiros e sob o signo de "La porte étroite", de André Gide, quer do ponto de vista da iluminação ofuscante, com desfocagens e contrastes, em interiores, quer do ponto de vista do tratamento da geometria e das cores em exteriores, no convés, guardando planos separados para o mar revolto e para o horizonte marítimo com o sol ao fundo.
        O filme começa com uma reflexão sobre o dinheiro e acaba com uma reflexão sobre a justiça, no culminar da sua terceira parte, "Humanité", em que se desloca para um passado mais antigo, em busca das raízes de uma civilização. Na segunda parte, "Quo vadis Europa", sob o signo de "Illusions perdues", de Balzac, tal como a primeira muito concentrada, desta feita numa estação de serviço cujos donos se vão candidatar a uma eleição, motivo pelo qual são visitados por uma equipa de televisão, somos confrontados com o presente, a actualidade em França, e brindados com uma construção visual e sonora que de novo faz lembrar o melhor de Godard. Isto significa que neste filme o cineasta prossegue, em estilo de filme-ensaio, uma rigorosa e intransigente criação audiovisual, no sentido de visual e auditiva, um rumo pelo qual enveredou sobretudo desde os anos 80 do século passado. Mas isto do ponto de vista formal, que nele é sempre muto importante, pois do ponto de vista das ideias, do pensamento, o que aqui impressiona são as aproximações fulgurantes de palavras e de imagens, por vezes mais do que um motivo na mesma imagem, como a jornalista contra uma parede sobre a qual se projectam as sombras das pás em movimento de um moinho de vento.
                         Film socialisme  
        Se no tema que o título, "Filme Socialismo", implica está subjacente a revisitação dessa ideia no percurso que fez ao longo do século XX, esse é sobretudo o objecto da primeira parte, com as suas referências à Guerra Civil de Espanha, à II Guerra Mundial e a Israel.  Mas mesmo aí surge como indispensável e fundamental a referência aos judeus, nomeadamente os que fundaram Hollywood, e portanto ao cinema, que segundo se diz, e bem, no filme pôs toda a gente a olhar para o mesmo lado na sala de projecção. Mas sintomaticamente o que vai estar recorrentemente em causa vai ser o destino do ouro, do Banco de Espanha ou do Banco da Palestina, o que remete para as fissuras dos grandes sonhos do século do cinema - na primeira parte o velho senhor chama-se Goldberg e no início da terceira parte será questão do ouro do Sudão.
         A terceira parte do filme, em busca das origens de uma civilização, sucede-se à cena da noite dos tempos, com que encerra a segunda, e vai deter-se primeiro nos vestígios egípcios, depois nas origens da guerra civil, nascida do casamento da democracia com a tragédia, e também nas do cinema, o que vai ser pretexto para revisitar na actualidade a famosa escadaria de Odessa, celebrizada na sequência que aí tem lugar de "O Couraçado Potemkine"/"Bronenosetz Potiomkine", de Sergei Eisenstein (1925), de que mostra excertos, depois de outros de filmes de Charles Chaplin, John Ford e Vsevolod Pudovkine, o que vem dar a essa parte final um carácter vertiginoso do ponto de vista visual. Aliás, essas citações cinematográficas, que não são as únicas, vêm juntar-se a outras, literárias, pictóricas e musicais, o que permite melhor compreender o carácter citacional de todo o filme. Mas o que marca verdadeiramente "Filme Socialismo" é tentar fazer a história de uma ideia e colocá-la como questão para a actualidade, para o presente.                     
                        
         Mas para o fazer o cineasta recorre a uma construção audiovisual brilhante, com grande recurso ao fora de campo visual e sonoro, de modo que permite dizer que aqui ele trata as imagens como imagens e os ruídos, as palavras e a música como sons, o que origina, com largo recurso à não sincronização, uma percuciente composição audiovisual. Desse modo um filme brilhante em termos fílmicos é também um filme político que vai tão longe quanto um grande cineasta de 80 anos entendeu dever ir - é preciso mostrar, não falar do invisível mas mostrá-lo, diz-se na segunda parte às repórteres da televisão, e esse é um programa que o filme defende para si próprio, no seu jogo de luz e sombra sobre a história.
          Claro que, mais uma vez, Jean-Luc Godard faz o seu filme, não aquele que seria esperado que fizesse, em que fala do que foi importante no século XX e no cinema, e fá-lo com um enorme brio audiovisual e com uma enorme sabedoria das ideias e da história, no que faz inteiramente justiça quer ao cinema quer à história, encarados ambos como desafios para o presente. E se nas raízes distantes de uma civilização vai até ao Egipto e à Grécia Antiga, nas suas origens próximas vai até à Resistência francesa durante a Ocupação, no decurso da II Guerra Mundial, o que deixa perfeitamente claro o seu pensamento sobre esta questão. O mito, esse deixa-o do lado dos ditadores, já que essa é, de facto, outra história, que sendo-o não deixa de fazer parte da mesma história e deve por isso ser questionada também, em simultâneo com ela.
                         O cineasta Jean-Luc Godard durante debate sobre seu filme "Film Socialisme", em Paris (França)
        Tudo acaba por ser muito rápido, como acontece nos filmes. "Filme Socialismo" serve, assim, para não esquecermos e para pensar - e pensar, mesmo no cinema, nunca fez mal a ninguém, e em especial com Godard torna-se estimulante, tanto mais quanto ele não pretende aqui dar lições de história mas colocar as interrogações da história, que procura iluminar, ciente, embora, de que nela permanecem largas manchas de sombra.

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