“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 10 de março de 2013

Jogo fatal

       Steven Soderbergh está de regresso com "Efeitos Secundários"/"Side Effects" (2013), um filme surpreendente por começar como um estudo psicológico das suas principais personagens, evoluir para uma crítica implícita do sistema e se resolver como filme negro, em que as responsabilidades de quem é responsável por um jogo duplo acabam por ser descobertas e reveladas.
        Adoptando um estilo sóbrio e seguro, elíptico e veloz, como costuma fazer no seu melhor, e responsabilizando-se pessoalmente, sob pseudónimo, pela direcção de fotografia e pela montagem, o cineasta parte de um argumento de Scott Z. Burns com contornos actuais e originais para fazer mais uma obra pessoal, em que tudo se joga no desenrolar duma narrativa fílmica intrigante, em que pouco a pouco se vai descobrindo que o que parecia ser uma coisa era, afinal, uma outra, muito diferente. Por momentos, esse lado de falso do filme faz pensar em Orson Welles, mas só por momentos, já que o que nele está em causa é puro Soderbergh no seu melhor.
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       "Efeitos Secundários" assume, desse modo, um lado de jogo, de jogo perigoso, mesmo mortal, mas apesar de tudo de jogo, que permite que se estabeleça como filme que se define sobre os géneros para depois sobre eles introduzir e fazer operar todas as variações originais. Assim, uma jovem mulher deprimida e sob tratamento, que mata o marido numa crise, eventualmente sem consciência do que faz, revela-se como sendo outra coisa, tal como sucede com a médica que a tinha tratado antes, e o jogo entre a aparência, a encenação e a realidade está muito bem dado em termos fílmicos e de trabalho dos actores, todos notáveis, com destaque para Rooney Mara, muito bem como Emily Taylor, Channing Tatum como Martin Taylor, Jude Law como Jonathan Banks e Catherine Zeta-Jones como Victoria Siebert. 
      Por si mesma, surge como interessante a questão da possibilidade da intenção sem consciência, o que anoto de passagem por ser episodicamente importante em "Efeitos Secundários".   
                     
         Há momentos em que o filme, para estabelecer e firmar a sua credibilidade narrativa, parece rondar um estatismo institucional, que contudo serve para proporcionar um quadro seguro ao desenrolar da intriga, transmitindo ao espectador elementos de reconhecimento sólidos e credíveis, tanto mais necessários quanto o comportamento da protagonista se apresenta como para além das barreiras da normalidade clínica. Ao descobrir-se o que se escondia sob as aparências clínicas - e o percurso até aí ocupa a parte mais extensa e importante do filme, então clarificada -, pode, contudo, verificar-se como a saída da normalidade pode ser aproveitada para os mais escabrosos e lucrativos negócios, maiores e menores, mas também suspeitar-se que Em pode estar, de facto, do lado da pura psicopatia, o que tudo permite ao cineasta remeter para filmes que trataram expressamente a loucura e o asilo psiquiátrico, como "Shock Corridor", de Sam Fuller (1963), ou "Shutter Island", de Martin Scorsese (2010), fazendo embora obra pessoal e muito interessante.
        Depois de "Magic Mike" (2012), Steven Spoderbergh está, pois, de regresso ao seu melhor nível, mesmo de ambiguidade, para que o final deste notável "Efeitos Secundários" remete. Ele é, indiscutivelmente, um dos melhores cineastas americanos da actualidade, o que neste filme, em que a uma sociedade lúdica e hedonista oferece o negro da culpa e o cinzento da suspeita e da dúvida, se percebe melhor, devido à complexidade e subtileza narrativa e ao correspondente apuro fílmico.

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