“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 17 de março de 2013

Vamos ao teatro

      Por uma destas perfeitas casualidades do quotidiano, a que todos estamos sujeitos, tenho-me cruzado nos últimos meses no espaço público com o Luís Miguel Cintra, encenador e actor de teatro, actor de cinema e, fundamentalmente, um grande homem de teatro. Estes encontros inesperados fizeram-me despertar duas questões, uma pessoal a outra não.
       A questão pessoal é que há muitos anos não vou ao teatro, nem sequer ao Teatro da Cornucópia, a cujos primeiros espectáculos, "O Misantropo", de Molière, e "A Ilha dos Escravos", de Marivaux, assisti em 1973 (1), e que continuei a acompanhar nos anos seguintes. E não vou ao teatro há muito tempo porque, pura e simplesmente, não tenho tempo. Contudo, sei o que tenho perdido nas diferentes companhias de teatro portuguesas, que têm, de uma maneira geral, feito um trabalho muito importante na encenação de autores antigos e modernos, portugueses e estrangeiros. Para citar mais uma outra companhia que aprecio, menciono o Teatro Aberto, também em Lisboa. Mas, quanto a isso, o melhor que tenho a fazer é nem sequer pensar no que tenho perdido e continuar em frente.
                     
       Mas a questão pessoal, embora muito embaraçosa para mim não é em si mesma importante, uma vez que apenas me afecta a mim, e não é por causa dela que aqui venho. O que é importante é o alerta lançado pelo próprio Luís Miguel Cintra aquando da comemoração dos 40 anos do Teatro de Cornucópia, que admitia a possibilidade de acabar. Ora, se isto acontecesse, seria muito grave e muito mau não só para o teatro mas para a própria cultura portuguesa.
      O Teatro da Cornucópia é conhecido, direi mesmo famoso, pela exigência da sua programação, pela qualidade dos seus textos, das suas encenações, cenografias, iluminações, figurinos e actores, ou seja, por ser notável em todas as questões fundamentais no teatro, e estas qualidades são permanentemente acompanhadas por uma efectiva independência, intransigentemente afirmada e defendida por uma companhia que foi uma das pioneiras do teatro moderno em Portugal. Não me parece que uma companhia de teatro com as características desta, que, além do mais, ocupa há muitos anos o mesmo espaço, no Teatro do Bairro Alto, possa sequer colocar a possibilidade de acabar.
       Num espaço próximo funciona, desde o ano passado, o Teatro da Politécnica, onde trabalham os Artistas Unidos do Jorge Silva Melo, co-fundador com o Luís Miguel do Teatro da Cornucópia, e esse é um factor novo e muito positivo, pois corresponde (finalmente) ao esforço e à persistência de um outro grande senhor do teatro português, também realizador e actor de cinema, que em vez de concorrência vem trazer um maior enriquecimento ao teatro em Portugal.
                    
       Vamos, pois, todos ao teatro, uma arte antiga, milenar, que nos tem dado do melhor em textos e encenações, que nos diverte e faz pensar por meios próprios, com desassombro e inteligência, mesmo, e direi até que especialmente quando nos inquieta e desafia. Quanto ao cinema, talvez que o senhor Antoine Lumière, pai dos irmãos Louis e Auguste Lumière, tivesse, afinal, razão ao considerá-lo, no final da sua primeira sessão pública com entradas pagas (28 de Dezembro de 1895), como um invento sem futuro. Sem ironizar, recordo mesmo que Jacques Rivette defendeu que a verdade do cinema está no teatro, o que Manoel de Oliveira viria reiterar de modo enfático. Vamos todos ao teatro, que não estamos em tempo de acabarem grandes companhias de teatro, como o Teatro da Cornucópia indubitavelmente é.
        Não esperem pelos sapatos de mais este defunto, porque se a Cornucópia acabasse todos morreríamos descalços. Quanto ao Luís Miguel Cintra, que trabalhou, entre muitos outros, em filmes de João César Monteiro, Paulo Rocha e Manoel de Oliveira, sempre em grande nível como actor, conferindo a cada personagem interpretada o seu inconfundível tom pessoal, a sua arte de que faz parte uma voz com a qual faz o que quer, espero poder continuar a vê-lo no cinema, para bem do próprio cinema, e desejo sinceramente que não esmoreça no seu excelente trabalho na Cornucópia, que é um ponto de referência imprescindível do teatro e da cultura portuguesa. Ao Teatro do Bairro Alto - ainda para mais situado numa zona de Lisboa a que me ligam profundas raízes pessoais, familiares e afectivas, e que talvez por isso considero ainda hoje muito bonita (2) - eu regressarei, pela minha parte, e em continuidade, logo que possível.

Nota
(1) Estes dois primeiros espectáculos encenados pela Teatro da Cornucópia decorreram no espaço do antigo Cinema Rex, na Rua da Palma, em Lisboa, sala em que vi pela primeira vez, por exemplo, "O Último Ano em Marienbad", de Alain Resnais. Mas isso são contos largos, de um tempo em que me sobrava o que há mais de 20 anos me escasseia: tempo livre.
(2) Lembro-me, por exemplo, de num Café da Rua da Escola Politécnica, em frente da Faculdade de Ciências e do Jardim Botânico de Lisboa, ter lido no "Diário de Lisboa" uma crítica severa do exigente crítico teatral Carlos Porto (1930-2008) a uma das primeiras encenações do Teatro da Cornucópia.

Sem comentários:

Enviar um comentário