“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Duro de roer

     Grego de nascimento, mas naturalizado francês, Constantin Costa-Gavras, que nunca teve nada que ver com a "nouvelle vague" francesa e o seu bando, realizou a sua primeira longa-metragem, "Compartiment tueurs", um bom policial, em 1965. Como esse filme anunciava e os seguintes confirmaram, ele estava mais do lado do cinema americano, nomeadamente nos seus filmes mais políticos - e quase todos o foram, pelo menos no início: "Z - A Orgia do Poder"/"Z" (1969), com argumento de Jorge Semprún, "A Confissão"/"L'aveu" (1970), com adaptação e diálogos do mesmo Semprún, "Estado de Sítio"/"État de siège" (1972), com argumento de Costa-Gavras e Franco Solinas, "Secção Especial"/"Section spéciale" (1975), com argumento de Costa-Gavras e Semprún, "Missing´- Desaparecido"/"Missing" (1982), com Costa-Gavras como co-argumentista, "O Enigma da Caixa de Música"/"Music Box" (1989), com argumento de Joe Eszterhas, para só referir os principais. Mas se há um cinema político na Europa da segunda metade do Século XX é o dos seus filmes.
                     Photo du film Le Capital (Gad Elmaleh)
       Por isso não surpreende que ele regresse agora com "O Capital"/"Le capital" (2012), um filme em que, ao nível do seu melhor, aborda frontalmente as origens da crise financeira em que o mundo mergulhou em 2008. Baseado em romance de Stéphane Osmont e com Costa-Gavras como co-argumentista, o filme segue o percurso de Marc Tourneuil/Gad Elmaleh desde a sua subida à direcção de um grande banco de investimento europeu, o Phoenix Bank, para substituir o anterior presidente, Jack Marmande/Daniel Mesguich, que adoece, até à resolução do grave problema em que a sua contraparte americana, dirigida por Dittmar Rigule/Gabriel Byrne, o fizera mergulhar.
     Poderia pensar-se que, com este tema, era possível construir um amável melodrama, bem intencionado e inóquo, mas essa não é a escolha do cineasta. Agarrando o tema pelo seu lado mais difícil, o dos responsáveis pela crise financeira, Costa-Gavras faz-nos acompanhar desde o início a voz-off narrativa de Marc Tourneuil e este mesmo, dando-nos desse modo o seu ponto de vista, comprometido e implacável, como o meio em que se move, interna e externamente, lhe exige. Ora isso faz com que este não seja o filme inofensivo que poderia ser, antes o filme contundente que efectivamente é.
                       
        Cineasta de grandes causas e boas causas políticas, Costa-Gavras não vacila em momento algum no seu retrato directo, implacável e lúcido do meio que dirige o sistema nos tempos cruciais que precederam o desencadear da crise financeira. Sem piedosas intenções, que passariam por colocar frente a Marc um antagonista credível, deixa essa função, além de Dittmar, a personagens secundárias de aparecimento ocasional: o tio de Marc, Bruno/Jean-Marie Frin, Maud Baron/Céline Sallette, no final à própria mulher de Marc, Diane Tourneuil/Natacha Régnier. Por elas e pelo conflito interior do próprio protagonista passa, contudo, o suficiente para que a capacidade de julgamento seja devolvida, intacta, ao espectador.
       Há, assim, alguma coisa de langiano e premingeriano que aqui surge na raiz da inspiração cinematográfica de Costa-Gavras, que com este filme se torna um nome absolutamente indispensável do cinema político deste início do século XXI, agora e por este motivo confirmado como nome maior do cinema político tout-court pela pertinência, a argúcia e a penetrância da sua observação, que em momento algum se afasta para o lado filosófico, antes se mantém permanentemente ao nível das personagens, das situações e das questões envolvidas. Além disso, e não despiciendo, há um rigor, mesmo um brio na construção cinematográfica que não é costume associar a este tipo de filmes, embora caracterize o cineasta desde o seu início.
                     Céline Sallette comédienne actrice actress : Rôle de Maud Baron - LE CAPITAL - Costa-Gavras
           Que não haja, pois, confusões: "O Capital" é um grande filme de um cineasta honesto, generoso e muito bom, que é preciso ver. Aí ele procura o lugar-comum, acena mesmo ao melodrama, colocando-os, contudo, ao serviço das personagens e da narrativa exemplar do seu filme. Que Marc Tourneuil acabe por se tornar um possível "herói" dos nossos tempos será sempre um sibilino sinal de alarme, a que até a actualidade noticiosa confere contornos perfeitamente reconhecíveis. Se o filme for ignorado ou minimizado será, obviamente, sinal de que incomoda.

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