“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 6 de outubro de 2013

Grandeza de Kiarostami

          Agora que ainda estão em sala dois filmes fundamentais de Yasujiro Ozu, com Kenji Mizoguchi, Mikio Nause e Akira Kurosawa o grande nome do cinema clássico japonês, estreou "Like Someone in Love" (2012), o mais recente filme de Abbas Kiarostami, um cineasta muito importante, dos maiores da actualidade, filmado justamente no Japão. O local, Tóquio e seus arredores, foi obviamente procurado, as ligações de Kiarostami com Ozu, explicitadas em "Five Dedicated to Ozu" (2003), aprofundadas mas de maneira inesperada e original.
        A serenidade ds últimos filmes do mestre japonês é inteiramente evitada, mesmo contrariada, de modo que a relação de uma mulher muito nova com um homem velho surge não como pacificadora mas ameaçada na sua possível inocência, enquanto a figura de estilo explorada por Kiarostami praticamente desde o início da sua obra, o plano-sequência com profundidade de campo, ainda presente no anterior, "Cópia Certificada"/"Copie conforme", 2009 (ver "Uma tarde na Toscânia", 14 de Janeiro de 2012), é completamente abandonada em favor de uma planificação clássica, com justo aproveitamento do espaço e tratamento do tempo.
                    Like Someone In Love (2013)
        Ora isto significa que, para surpresa de todos - surpresa grata, acrescente-se -, o cineasta voltou ao princípio, ou mudou de rumo, continuando a manter-nos presos da sua arte, da sua narrativa e das suas personagens. A certa altura o velho professor, Takashi/Tadashi Okuno, adormece enquanto conduz e isso é sintomático da idade e de uma certa serenidade que precisamente a relação com a jovem mulher, Akiko/Rin Takanashi, uma estudante que à se prostitui, lhe vem negar, numa eventual falsa pista muito bem contrariada pelo final.
      A intromissão do namorado de Akiko entre ela e o velho professor Takashi vem, afinal, demonstrar que quem poderá estar a mais, embora mal compreendido, é este, que assim se torna centro das atenções, o que próximo do fim do filme é muito bem explicado pela conversa da sua vizinha com a sua "neta". Esta tinha sido central no início, antes de chegar a ele, e então pudéramos dar-nos conta das suas hesitações e perplexidades ainda antes de lhe conhecermos o namorado - e crucial vai ser o enconto dos dois, o velho professor e o namorado dela à porta da universidade, momento em que se vai iniciar a (falsa) interpretação de ele seja "avô" dela, e é este jogo com as gerações que é ainda, embora cripticamente, típico Ozu. 
                   
       Mas se olharmos a partir da relação "neta"-"avô", que pode ser encarada como a mais autêntica porque mais próxima da verdade sem convenções de cada um deles, então poderemos perceber que quem está a mais, o "intruso" é o namoradao dela, como o perturbador e não pacificado final vem confirmar.      
         E aqui julgo que devo sublinhar a ousadia de Abbas Kiarostami em não nos dar "mais do mesmo" e se reinventar contra as expectativas dos seus incondicionais admiradores. Na idade dele e com a obra que ele tem atrás de si, mudar de rumo e enveredar pelo inesperado, contra toda a sinalização deixada atrás de si, significa inconformismo e manter à distância os que, dando-o precipitadamente por acabado, lhe queriam erigir um monumento definitivo em vida. Contudo, e se bem nos lembrarmos e repararmos, ele foi sempre, mesmo na sua obra anterior a "Dez"/"Ten" (2002), um cineasta inquieto, em cujos filmes a pacificação, quando aparecia, era após um árduo percurso, como em "Através das Oliveiras"/"Zire darakhatan zeyton" (1994), o que em "O Vento Levar-nos-á"/"Bad ma ra khahad bord" (1999) já só acontecia de maneira muito problemática.    
                    Abbas Kiarostami Discusses the Mysteries of 'Like Someone in Love'
         Sei de quem tenha ficado decepcionado, o que compreendo mas não é o meu caso. Quanto menos previsível e menos feito a um lugar na história mais eu gosto dele e o aprecio. Não é de cineastas ou artistas pacificados que eu gosto, mas dos que se rebelam contra si próprios com novas propostas que não sabemos, como eles não sabem onde os vão conduzir. É com inconformismo consciente que um grande cineasta como Kiarostami se reinventa e do mesmo passo reinventa o cinema.

2 comentários:

  1. Os três mundos, em Like someone in Love


    São três os mundos por onde Like Someone in Love, o último filme de Kiarostami, cresce e se desenvolve: o bar Rizzo, o carro, seja o táxi que transporta Akiko (Rin Takanashi), ou seja a viatura do velho professor de literatura, Takashi Watanabe (Tadashi Okuno), e a casa deste último. E refiro-me a eles como mundos, porque são lugares onde o que acontece é demasiado identitário e marcante para a construção do filme.
    Com o bar Rizzo, correspondendo ao primeiro mundo apresentado pelo realizador iraniano, a palavra encontra-se perdida e nós também: ouvimos uma suposta conversa, mas não achamos na imagem quem a profere; em frente estão mesas com pessoas juntas e nelas procuramos, sem sucesso, quem fala. De repente, uma personagem, Hiroshi (Denden), diante de nós e da câmara, olhando para além desta, faz uma sinalética para alguém que está inevitavelmente por detrás de tudo, é justamente aí que nos apercebemos onde está quem fala, a jovem prostituta Akiko sustentando um diálogo absurdo pelo telemóvel. Depois, o que acontece, é novamente o jogo do gato e do rato entre a imagem e a palavra: a jovem quando fala está desaparecida da nossa visão, voltamos, por isso, a ver as outras pessoas em convivência diante de nós; a jovem quando escuta quem com ela fala, vemo-la e, nas suas costas, vemos pessoas em corrupio a entrar e a sair do bar, em trânsito, atravessando um mundo que afinal não é de reunião, mas só de passagem. A encerrar este mundo mostrado, uma imagem branca, de um fantasma: trata-se da projecção, a partir do exterior, no vidro do bar, do corpo do patrão de Akiko a falar ao telemóvel - sempre o telemóvel no caminho das comunicações -, cobrindo a jovem que parece estar de saída de cena, indiciando a mudança para o mundo seguinte que Kiarostami tem para nos revelar.
    O segundo mundo é o carro, presença habitual como contexto vivencial na filmografia do realizador iraniano. Lembremo-nos, por exemplo, de O Saber da Cereja de Dez ou de Cópia Certificada, para reconhecermos que este mundo fechado, pequeno, sujeito ao perigo e ao acidente, ora em pausa, ora em movimento é um sítio reservado, feito de segredos, um excelente motivo para relatarmos a nossa intimidade, ou, como dizia Léo Ferré, relatarmos os nossos “problemas de melancolia”. Mas o carro aqui desdobra-se em dois, o táxi e a viatura do professor Watanabe. O primeiro preenche a noite e é lugar, não de conversa, mas de mensagens recebidas de telemóvel, as quais são, em rigor, verdadeiramente mensagens por serem tão certeiras: afectam, entristecem, mas igualmente criam um sentimento de retorno ao aconchego, à tranquilidade originária. As mensagens que a jovem Akiko escuta no táxi são apelos sofridos da sua avó. Uma vez mais a mensagem é a voz, pura e sem artefactos, a palavra dita com a ausência de uma imagem correspondente, acabando por transfigurar o rosto da jovem fazendo-a chorar, ocorrência que cria uma imagem alternativa e verdadeira. O segundo carro, a viatura do professor Watanabe, é o lugar para uma “melancolia” racionalizada. Por isso, este somente circula de dia e aborda as emoções e os sentimentos embrulhados em estereótipos, preconceitos e medos sociais. Disso apercebemo-nos, por exemplo, no diálogo entre o professor e o namorado da jovem, Noriaki (Ryo Kase), um mecânico de automóveis, que perspectiva uma visão de vida conjugal demasiado conservadora. Nesse diálogo entre o ancião e o jovem flutua a ideia de que as relações humanas se debatem entre o mecanismo e a espontaneidade, o maquinal calculado e o risco da vertigem. Aliás, nem de propósito, é no desenrolar desse diálogo que, no carro em movimento - esse mundo que acolhe essa “melancolia” racionalizada e a faz desabafar -, é detectada uma avaria que exige reparação, precipitando-se, a partir desse acto de intervenção mecânica realizado na oficina do namorado da jovem prostituta, todo o desfecho violento que virá a consumar-se no final do filme.
    1/2

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  2. Por fim, o terceiro mundo, a casa do velho professor de literatura. Nesse lugar, uma vez mais somos confrontados com a presença da voz surgida do aparelho técnico. Não é o telemóvel, mas o gravador de chamadas que constantemente persiste em emitir mensagens. Novamente a voz solta, perdida, sem um corpo imagético que a habite. E é tal o embaraço, tal o incómodo, que Watanake, acolhendo Akiko, se vê na contingência de desligar os telefones e os acessórios destes para garantir o sossego da jovem. Naquele mundo, a “melancolia” é traduzida tão-somente por ternura, agora não expressa nas palavras proferidas pela avó e escutadas no voice mail, no segundo mundo atrás referido, mas nos gestos e nos cuidados de um falso avó que, para além de desejar uma companhia autenticamente humana, aspira a ser também humano para com quem se exibe frágil e tem uma vida pela frente.
    Por esta forma de fazer cinema, que nos proporciona entrar na ilusão e a pensar nela com uma enorme liberdade interpretativa, que outra conclusão poderíamos nós tirar deste último filme de Kiarostami a não ser reconhecer que estamos perante um exercício notável e irrepreensível de comunicação afectiva, assinalando-se com isso mais uma etapa feliz da história do cinema.




    António Júlio Rebelo
    Estremoz, Outubro de 2013

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