“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O longe e o perto

   O mais recente filme do italiano Matteo Garrone, "Reality" (2012), permite-nos retomar contacto com o autor de "Gomorra" (ver "A simples realidade", 18 de Janeiro de 2012) num patamar diferente, mas compatível. Na verdade, ao seguir um candidato a um reality show muito conhecido o cineasta continua muito próximo da realidade, mas desta feita próximo daquilo que uma realidade fabricada significa para um homem simples e comum.                       
                          
    Por muito que se considere desprezível este novo tipo de programas televisivos ao vivo que conduzem a uma fama factícia e fabricada, compreendo que, indefeso perante as suas promessas, qualquer um se julgue fadado para por seu intermédio aceder a uma fama e a uma fortuna que o tornem reconhecido por todos. É o que acontece com o protagonista deste filme admirável por duas razões.
    Em primeiro lugar porque Luciano/Aniello Arena, perseguindo um lugar em Il Grande Fratello, se vê finalmente rejeitado e com essa situação, o trauma que para ele ela significa, têm de lidar ele e a sua família e amigos, em especial a sua mulher, Maria/Loredana Simioli. Em segundo lugar porque Matteo Garrone sabe habilmente partir do distante, a admirável panorâmica aérea do início, para se aproximar progressivamente e sempre que necessário ir até ao gande-plano do seu herói, que acompanha detida e demoradamente de muito perto em momentos cruciais, sempre para o voltar a inscrever no seu meio, no seu cenário urbano próprio.
                    "Reality" di Matteo Garrone
   Com uma câmara extremamente móvel, alguma coisa passa neste filme sobre esse homem simples, diríamos mesmo simplório e tonto, que se torna paranóico, alguma coisa que nos toca e comove, porque entre o longe e o perto nos é permitido perceber os seus anseios e frustrações, a sua ansiedade e a dos seus por chegar àquele objectivo que lhe surge como muito desejável e ao seu alcance, depois o seu acabrunhado mutismo. O inebriamento pela sociedade do espectáculo entre gente simples passa por aqui de uma maneira muito clara e feliz, remetendo para o irrisório sem iludir a fascinação reality show e das suas promessas.
    Sem se fazer, ele próprio, com "Reality" ao grande espectáculo, Matteo Garrone agarra-o por onde ele é mais facil mas também mais seriamente abordável, o lado de fascínio para o homem comum que nada tem a perder e julga tudo ter a ganhar. Seria estultícia passar ao lado deste filme despretensioso e comovente sobretudo nas pequenas coisas, nos pequenos apontamentos e detalhes das suas diversas personagens, que contradizem, justamente, o grande espectáculo em função do qual é construído.

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