“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Outra dimensão

    Olivier Assayas começou como redactor dos "Cahiers du Cinéma", fez curtas-metragens e foi argumentista, nomeadamente para André Téchiné, antes de realizar a sua primeira longa-metragem, "Desordem"/"Désordre" (1986). Como os outros cineastas surgidos em França nos anos 80 (Jean-Jacques Beineix, Luc Besson, Leos Carax) ele nunca reuniu, felizmente, um consenso à volta dos seus filmes. Pela minha parte, que prefiro as divergências aos falsos consensos, devo dizer que, até agora, nenhum dos seus filmes me desiludiu.
                     Après Mai: una scena del film
     Depois de "Carlos", filme e mini-série (2010) que sob a aparência de biografia de uma personagem verídica e controversa era um percuciente estudo de biopolítica de uma época (e quem não viu isso não viu o filme todo), dele surge agora "Depois de Maio"/"Après mai" (2012), baseado nas suas memórias pós-Maio 68 e por isso largamente autobiográfico. Na recuperação de uma época (o filme situa-se em 1971) e na reconstituição a que dela procede o cineasta revela-se feliz e convincente, com um notável apuro técnico, visual e sonoro, que decorre da distância dos acontecimentos e conduz a um certo distanciamento temporal.
       As citações de textos que são lidas, os livros que são mostrados, os filmes de que passam excertos, os cenários, as discussões no interior da mesma geração e com os mais velhos, as questões que se colocam às personagens e as que elas colocam ao próprio cinema trazem inteira a marca de uma época, revisitada com inteligência sobre uma memória que preserva a integridade da juventude. Sem querer dar lições a ninguém, Olivier Assayas tira muito bem proveito do contraste entre os tempos que retrata e a actualidade, em que a generalidade da juventude, embora influenciada por eles já não fala ou pensa naqueles termos, o que torna mesmo o seu filme um filme de época.
                    
     Com actores muito novos e desconhecidos, a que os mais velhos dão a réplica ajustada, todos mas em especial os primeiros a darem muito bem conta de si, "Depois de Maio" apresenta-se, assim, como um segundo filme em que o autor estuda em termos biopolíticos uma época bem definida, de que expõe elementos particularmente relevantes que permitem situá-la justamente no tempo. Sem ir tão longe e tão largo como a longa duração e a natureza da própria personagem permitiam e exigiam em "Carlos", este é um filme que pode ser visto como uma sua sequela menos escaldante mas igualmente bem caracterizada em termos narrativos e fílmicos, em que muito apropriadamente, como no filme anterior, a discussão da integridade das personagens  permite ver melhor além delas.
    Olivier Assayas continua a ser, com Leos Carax (ver "Por Carax: as versões", 18 de Fevereiro de 2012, e "O regresso de Carax", 24 de Dezembro de 2012), o cineasta mais interessante revelado em França nos anos 80, tirando largo benefício da sua intuição e dos efeitos do estilo que lhe é próprio como autor não ingénuo que sobre o passado do próprio cinema, que conhece bem, constrói as linhas mestras do quadro visual do plano, por vezes com citações expressas como a de "Passeio ao Campo"/"Partie de campagne", de Jean Renoir (1936) neste filme. Aliás, ele é um realizador que sabe também como escolher e utilizar uma banda sonora musical apropriada, que enriquece o filme da melhor e mais eclética maneira. A comparação com Philippe Garrel - "Os Amantes Regulares"/"Les amants réguliers" (2005) - é precipitada, pois estão em causa dois estilos e dois propósitos muito diferentes, um assente numa subjectividade radical enquanto o outro prefere criar a distância certa e um quadro de época que se ajustam melhor aos seus objectivos, que incluem, gostemos ou não, um lado decorativo, mesmo vistoso que lhes é próprio.
                     204641861 [Crítica] Depois de Maio
      No "excesso" de perfeição de "Depois de Maio", como no de "Carlos", passa alguma coisa de fundamental sobre um tempo e a integridade daqueles que o viveram intensamente, com todas as referências de época pertinentes de modo a permitir, para além das personagens mas a partir delas, uma boa leitura biopolítica, com recurso aos quase-clichés com a noção de que como tal os está a utilizar e da finalidade, que inclui a credibilidade de época, que eles servem.
      Para que não restem confusões ou equívocos, Philippe Garrel é, com Jean Eustache, o único herdeiro da nouvelle vague francesa que excedeu a herança dela e um dos maiores cineastas contemporâneos, enquanto Olivier Assayas pertence a uma outra linha expressiva e estética que, sem ignorar a nouvelle vague, não se fica por ela, tendo mesmo criado laços especiais com o cinema novo de Taiwan dos anos 80, que foi dos primeiros a descobrir e a que dedicou um filme, "HHH - Un portrait de Hou Hsiao-Hsien", para a série "Cinéma de notre temps" (1997), uma ligação a que o seu próprio cinema não é de modo nenhum alheio.

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