“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 22 de abril de 2012

O tempo outra vez


          Sob a aparência do inquérito ao passado de que é encarregado o jornalista em “Millennium 1 – Os Homens Que Odeiam as Mulheres”/”The Girl with the Dragoon Tattoo”, de David Fincher (2011), o que volta a estar em causa é o presente.
         De facto, nesta adaptação americana do primeiro volume da trilogia do sueco Stig Larsson (1954-2004), famoso depois da sua morte – à semelhança do que aconteceu com W. G. Sebald e Roberto Bolaño -, Mikael Blomkvist/Daniel Craig parte à procura do autor de um crime que é suposto ter ocorrido em 1966 e ao fim de um prolongado e difícil trabalho, para que é decisiva a ajuda de Lisbeth Salander/Rooney Mara, não só acaba por descobrir o que aconteceu como vem a saber – vem ela a descobrir – as ramificações de um lucrativo negócio que ele começara por denunciar em vão.
          O livro já tinha tido uma adaptação cinematográfica, feita na Suécia pelo dinamarquês Niels Arden Oplev em 2009, mas neste filme de Fincher é muito interessante o ar de miúdo perdido que o James Bond de serviço tem, a maior parte do tempo à deriva, ao sabor dos contactos que estabelece e dos acontecimentos que desencadeia, do que acaba por ser retirado e salvo pela sua inquisitiva e muito inteligente ajudante. É evidente que o que eles procuram descobrir se situa no passado de uma família da grande indústria sueca, os Vanger, de que o patriarca, Henrik/Christopher Plummer, encomenda a Blomkvist o inquérito, e que as alusões ao passado da família, nomeadamente no tempo da II Guerra Mundial, são muito interessantes por permitirem estabelecer as ligações necessárias.
                     
           Mas se durante a maior parte do tempo o jornalista parece, de facto, um miúdo perdido na investigação do passado da família, cujos membros parecem entreter-se a empurrá-lo de uns para os outros, é Lisbeth quem tem a iniciativa e toma a direcção do inquérito em momentos decisivos, para dizer-lhe o que fazer e como concluir, em vez de ser ele a servir-se da ajuda dela. Esse lado do filme, muito bem dado com os decisivos contributos de um Daniel Craig em estado de inteira disponibilidade e de uma excelente Rooney Mara, que consegue transmitir todas as nuances de Lisbeth, vai ocupar a maior parte do tempo, que vai aparecer, assim, um pouco como distracção e tempo perdido, não se dera o caso de permitir que, no final, venha a ser descoberto o que de facto aconteceu – e não aconteceu – e por culpa de quem. E vai ser ela quem, depois disso e em conclusão, vai mexer-se para chegar a quem e ao que ele não pudera chegar, apesar do prometido apoio de Henrik, oferecido como contrapartida do seu trabalho.
        Foi estabelecida a relação entre o(s) crime(s) deste “Millennium 1 – Os Homens Que Odeiam as Mulheres” e os dos seus anteriores “7 Pecados Mortais”/Seven” (1995), pelo lado das citações bíblicas, e “Zodiac” (2007), pelo lado da reabertura de um inquérito sobre um serial killer, mas como não ver que já nesses filmes David Fincher, ao aludir a crimes do passado, sobretudo no segundo caso lançava um olhar crítico e céptico sobre o presente? Como não perceber que ao procurar no passado, ao fazer história, se começa e acaba a falar do tempo a partir do qual se olha, se escreve? De facto, é depois de um necessário percurso sobre o passado que chegamos onde queríamos chegar no presente, na actualidade, a nível de descoberta e de compreensão do que somos e do que nos rodeia, como acontece, aliás sem que ele o saiba ou premedite, com o Mikael Blomkvist deste filme. Porque é no presente que está a chave do passado, que é preciso conhecer e por sua vez explica o presente, que interessa por si próprio: quando olhamos para o passado também o passado que nos olha, e em qualquer caso o olhar do outro é fundamental para compreendermos, para descobrirmos - mesmo para nos compreendermos a nós próprios. Como escreve muito lucidamente João Barrento, é preciso "não tanto perguntar para onde vamos, como sobretudo tentar entender onde estamos" (1).
                       
          Torna-se, para isso, necessário que Lisbeth cumpra, com os seus métodos de hacker, a parte decisiva que ele não pode nem sabe cumprir, movido como é por objectivos próximos e claros, como é próprio de um jornalista, mesmo se muito apto na sua profissão. Para ver longe e provocar a descoberta é preciso alguém com o passado difícil e escuso que ela tem, com a energia e o espírito de iniciativa que ele está a perder, rumo a um conformismo social que é próprio e que a vai deixar para trás, na encruzilhada dos amores perdidos, mais uma a juntar-se a outras encruzilhadas anteriores, que como elas, que lhe ensinaram que a vida é para sofrer, ela saberá resolver.
        Haverá ainda a referir que uma certa velocidade, uma certa rapidez deste filme vem do anterior “A Rede Social”/”The Social Network” (2010), em que David Fincher dá uma lição de cinema e de visão da actualidade com grande engenho fílmico e narrativo, o que aqui prossegue com uma estrutura narrativa mais simples e experimentada mas conservando o interesse, o encanto e o lado perturbador do seu ponto de partida literário.
            Se me perguntarem qual dos dois filmes, o sueco ou o americano, é melhor neste caso, a minha resposta é que são muito diferentes - é mesmo essa a riqueza do cinema, adoptar o mesmo ponto de partida para chegar a resultados diferentes - e que o melhor é ver os dois.

Nota
(1) Cf. João Barrento, in " O mundo está cheio de deuses - Crise e crítica do contemporâneo", Assírio & Alvim, Lisboa, pág. 62.

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