“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 22 de abril de 2012

A invenção dos sonhos


              O mais recente filme de Martin Scorsese, “A Invenção de Hugo”/”Hugo” (2011), é uma obra muito interessante e sugestiva sobre o próprio cinema, já que nos leva a recordar, através de uma personagem, Georges Méliès/Ben Kingsley, um dos maiores pioneiros e inventores do cinema, os inícios deste. Para o argumento, o cineasta baseia-se no romance gráfico de Brian Selznick "The Invention of Hugo Cabret" (2007).                       
            Situado em 1930, o filme centra-se na personagem de uma criança, Hugo Cabret/Asa Butterfield, que após a morte do pai (Jude Law) é perseguida na estação ferroviária de Paris, onde passa a habitar, pelo respectivo inspector (Sacha Baron Cohen), que quer mandar para o orfanato aqueles que se encontram na sua situação. Entretanto, Hugo dedica-se a regular o mecanismo do relógio da gare, trava conhecimento com a herança do pai, de que consta de um misterioso autómato, e com um misterioso Monsieur Georges, proprietário de uma loja situada na mesma gare. Na perseguição deste, que lhe ficara com um caderno de desenhos, Hugo chega a Isabelle/Chloë Grace Moretz, neta daquele, com quem vai partir à descoberta de Paris e do cinema, de que o pai lhe falava e a que o tinha levado em mais pequeno, mas que ela nunca vira.
                                                  
            Se conto isto com algum detalhe é porque me parece interessante perceber o percurso enviesado que, no filme, vai permitir chegar a um nome mítico dos primórdios do cinema, à época dado como morto durante a I Guerra Mundial. De facto, as ideias de mecanismo e de autómato, primeiro, de orfandade e de clandestinidade, depois, mais tarde o sonho e o sonho dentro do sonho de Hugo remetem irresistivelmente para esse invento, então ainda recente, do cinema, o que vai permitir a Martin Scorsese mostrar pequenos excertos de filmes mudos, reconstituir a primeira sessão do cinematógrafo dos irmãos Lumière, mostrar e mesmo reconstituir a filmagem de partes de filmes do próprio Georges Méliès. Ora nada disto é acidental dado o interesse do cineasta pela história do cinema, manifestado em dois filmes, “A Personal Journey with Martin Scorsese Through American Movies” (1995) e "Il mio viaggio in Italia"/“My Voyage to Italy” (1999), em que respectivamente percorre a história do cinema americano e a do cinema italiano, e na criação da The Film Foundation em 1990 (www.film-foundation.org/) e da World Cinema Foundation em 2007 (worldcinemafoundation.org/), através das quais visa a preservação e a recuperação do património cinematográfico menos conhecido.
          Assim, não apenas Martin Scorsese é um dos mais importantes cineastas vivos, como também alguém que conhece muito bem a história do cinema, cujo conhecimento, estudo e divulgação pretende assegurar. Por tudo isto, “A Invenção de Hugo” é um filme que faz todo o sentido que tenha sido feito por ele e que adquire todo o seu alcance e brio fílmico por ter sido feito por ele, um cineasta não acidental, revelado como realizador no contexto da Nova Hollywood e com a actividade colateral de produtor, em especial desde 1990.
                                  
             Entende-se perfeitamente que este filme se embale e nos embale com a revisitação da história do próprio cinema, que aborda de forma muito feliz e encantatória, deixando-nos enlevados na memória dos primórdios de uma arte que terá sido a mais importante do século XX e que ainda hoje mantém o vigor e a importância que todos lhe reconhecem. 
             Senhor de um conhecimento profundo da linguagem cinematográfica, de todos os seus mecanismos e processos de elaboração e funcionamento, Martin Scorsese faz deste “A Invenção de Hugo” um brilhante exercício de ficção que é também um interessantíssimo ensaio e uma experimentação sobre o próprio cinema. Por isso começa pelos espectadores do cinema, pelo pequenos espectadores que assistem furtivamente aos filmes, o que remete para o carácter voyeurista da experiência do espectador ao olhar para as imagens do cinema, com o seu lado de espreitadela do desconhecido e interdito, para passar em seguida à descoberta de um dos primeiros criadores de filmes, tido por morto, para terminar com as recordações deste sobre a feitura dos seus filmes e a época respectiva, para o que se vai servir da personagem do investigador, René Tabard/Michael Stuhlbarg, que em miúdo chegara a conhecer o grande mago, que tinha visto trabalhar, e com a homenagem que lhe é prestada em vida, depois de o pequeno protagonista se ter exposto à ameaça de concretização do seu sonho, de que é salvo no último instante pelo seu adversário, após o que põe ao serviço dele os seus talentos de inventor mecânico  - o inspector da gare tem uma prótese numa perna e o titular do cargo de regular o relógio da estação é encontrado morto no rio, o que completa o quadro do lado claudicante e mórbido mas também redentor do cinema. 
                                         
            Percebe-se o que terá atraído Martin Scorsese no romance gráfico de que partiu, tal como se percebe que tenha feito questão em fazê-lo em 3D, até porque com este surge como mais contrastada, percuciente e vistosa a homenagem do cinema actual aos pioneiros do cinema, passados mais de 100 anos. Além disso, todos os cenários digitais adquirem um novo significado e relevo em 3D, embora se perceba que a narrativa do filme funciona como uma fábula de encanto e proveito sobre o próprio cinema e que como tal, mesmo com personagens reduzidas a esboços (e por isso mesmo) vale por si própria. Com o recurso a cenários digitais, que enfatizam um tom de época e de sonho que nos leva até ao coração do misterioso nascimento do filme e do não menos misterioso contacto do espectador com ele, onde o cineasta dá  largas à sua criatividade e ao seu talento em amplos e muito elaborados movimentos de câmara, e também com a alusão a toda a história do cinema que a presença de Christopher Lee na figura do guarda da biblioteca do cinema permite e impõe, em suma, com recurso a uma nova tecnologia do cinema sabiamente utilizada e a todo o seu talento e saber do cinema, Martin Scorsese olha melhor - e faz-nos olhar melhor - para o passado da sua arte.
         Por tudo isto, “A Invenção de Hugo” é um filme soberbo e perfeito, que significa um momento de perfeição e acabamento superior na obra vasta e diversificado do seu autor.

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