“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 22 de abril de 2012

Crónica poética do quotidiano


         Se o cinema foi e continua a ser uma arte maior é também por causa de Aki Kaurismäki, cineasta finlandês de uma inspiração superior que se tem afirmado como um cronista do quotidiano do seu país, o que agora alargou com sucesso à França contemporânea. De facto, “Le Havre” (2011) é um filme notável, na linha dos seus filmes anteriores mas situado naquela cidade francesa, na actualidade, a partir de uma dinâmica multicultural, multiracial mas sempre extremamente humana e quotidiana.               
       Situado entre gente comum e situando-se com as melhores intenções não apenas em superfície mas em profundidade, estruturalmente, o filme lida com franceses comuns sujeitos aos problemas comuns da França e da Europa na actualidade, sem outro heroísmo que não seja o do quotidiano – lição maior do cinema do pós-guerra. Há um casal comum, um jovem africano em fuga, em busca de melhor destino, uma comunidade de proximidade em que toda a gente se conhece, uma mulher gravemente doente. É a vida da gente comum numa cidade portuária.
        
          Só que ao criá-lo em filme Aki Kaurismäki introduz a verdadeira, a original magia do cinema, e transfigura os pequenos acontecimentos do quotidiano em momentos especiais, que ficam a pairar diante de nós, espectadores, como a possível essência da vida, pela qual todos passámos sem nos apercebermos disso. Ora é ao tornar especial, especialmente notável o banal quotidiano que o cineasta finlandês, na esteira dos seus filmes anteriores torna este “Le Havre” um filme notável, superior, que se degusta com espanto enquanto a ele se assiste, levados de curiosidade em surpresa, de angústia em desespero, por fim em satisfação inesperada. E como aquele Marcel Marx/André Wilms, aquela Arletty/Kati Outinen, aquele pequeno Idrissa/Blondin Miguel, mesmo aquele Monet/Jean-Pierre Darroussin são eu, tu e todos nós nos seus pequenos e grandes gestos, no seu quotidiano aflito em que porém uns aos outros se compreendem e ajudam – como devia acontecer, e se calhar não acontece sempre na vida real.
           É mesmo por isso que Aki Kaurismaki, detentor de um segredo comezinho mas universal, se reafirma aqui como o grande cineasta da gente comum dos nossos dias, sem outras ilusões para além daquelas que ele para as suas personagens, como cada um de nós para si próprio pode criar. Não há, como não deve haver, ilusão que se deva alimentar. Não há, como não deve haver, sonho que não se deva, apesar de tudo e mesmo se improvável manter e alimentar. O que é preciso é entender a vida como a única oportunidade que temos de sentir, criar, amar e recriar no tempo, mesmo em desilusão, mesmo em perda, porque é aquilo de que dispomos e porque algures, para alguém em algum momento tudo virá a fazer sentido - aquele que tiver tido para nós.
                
          Pessoalmente, sou particularmente sensível ao trabalho de Aki Kaurismäki com os actores, em geral, com Kati Outinen, que está para ele como Liv Ullman esteve para Ingmar Bergman, em especial – há coisas, pontos fílmicos e humanos que nos filmes dele só são possíveis com ela, beleza estranha, doce, diáfana.
         Por trás do quotidiano deste finlandês muito especial está, contudo, a ideia de uma responsabilidade, que é comum, partilhada por ser pessoal, que torna especialmente importantes os seus filmes e as suas personagens, que apresentam de filme para filme uma coerência notável, ao sabor da sua própria inspiração, responsabilidade essa que vai dar a cada pequeno gesto o seu grande sentido.
           Além disso, muito kaurismakiano embora, o filme tem apontamentos que são piscar de olhos ao cinema francês: Pierre Étaix e Jean-Pierre Léaud em pequenos papéis, o primeiro na pele de um médico que se chama Becker (como o grande Jacques), o segundo como o denunciante; a localização do filme no Havre, cidade que recorda “O Atalante”/”L’Atalante”, o mítico e fundamentel derradeiro filme do jovem Jean Vigo (1934), cujo espírito (e até a letra) atravessa este filme – uma lição que o cinema francês parece ter esquecido.
                          
         Mas o que em última análise faz a grandeza de “Le Havre” como filme é a construção paralela e em elipses fulgurantes das histórias de Arletty Marx e do pequeno Idrissa, que seguem em crescendo, com citação de Kafka e autocitação de Aki Kaurismäki – o espectáculo de rock e os seus artistas – até às conclusões inesperadas, portentosamente dadas em termos fílmicos, de ambas as linhas narrativas.
       Como se terá notado pelo que antecede, Aki Kaurismäki é um dos poucos cineastas absolutamente indispensáveis da actualidade, com o qual o cinema é uma arte que ainda vale a pena para nos restaurar em crenças e gestos primitivos, primordiais, que nos restituem a nós próprios, mesmo se cépticos e incrédulos. Aqui o cinema volta a ser, em plenitude, le plaisir des yeux, para retomar a expressão de François Truffaut.
            E a mãe espera em Londres o pequeno Idrissa, enquanto Arletty vai preparar o jantar para Marcel, fechando em elipse o que com elipse e fora de campo começara. Isto é o grande cinema, a grande arte de um grande cineasta que tem atrás de si a vida de todos nós, a história e a linguagem do cinema nos seus pontos essenciais.
           Fundamental!

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