Se o cinema foi
e continua a ser uma arte maior é também por causa de Aki Kaurismäki, cineasta
finlandês de uma inspiração superior que se tem afirmado como um cronista do
quotidiano do seu país, o que agora alargou com sucesso à França contemporânea.
De facto, “Le Havre” (2011) é um filme notável, na linha dos seus filmes
anteriores mas situado naquela cidade francesa, na actualidade, a partir de uma
dinâmica multicultural, multiracial mas sempre extremamente humana e
quotidiana.
Situado entre
gente comum e situando-se com as melhores intenções não apenas em superfície
mas em profundidade, estruturalmente, o filme lida com franceses comuns
sujeitos aos problemas comuns da França e da Europa na actualidade, sem outro
heroísmo que não seja o do quotidiano – lição maior do cinema do pós-guerra. Há um casal comum, um jovem africano em fuga, em busca
de melhor destino, uma comunidade de proximidade em que toda a gente se
conhece, uma mulher gravemente doente. É a vida da gente comum numa cidade portuária.
Só que ao criá-lo em filme Aki Kaurismäki
introduz a verdadeira, a original magia do cinema, e transfigura os pequenos acontecimentos do quotidiano em momentos
especiais, que ficam a pairar diante de nós, espectadores, como a possível essência da
vida, pela qual todos passámos sem nos apercebermos disso. Ora é ao tornar especial,
especialmente notável o banal quotidiano que o cineasta finlandês, na esteira
dos seus filmes anteriores torna este “Le Havre” um filme notável, superior, que se degusta com espanto enquanto a ele se assiste, levados de curiosidade
em surpresa, de angústia em desespero, por fim em satisfação inesperada. E como
aquele Marcel Marx/André Wilms, aquela Arletty/Kati Outinen, aquele pequeno
Idrissa/Blondin Miguel, mesmo aquele Monet/Jean-Pierre Darroussin são eu, tu e todos
nós nos seus pequenos e grandes gestos, no seu quotidiano aflito em que porém
uns aos outros se compreendem e ajudam – como devia acontecer, e se calhar não acontece
sempre na vida real.
É mesmo por isso que Aki Kaurismaki,
detentor de um segredo comezinho mas universal, se reafirma aqui como o grande
cineasta da gente comum dos nossos dias, sem outras ilusões para além daquelas
que ele para as suas personagens, como cada um de nós para si próprio pode criar. Não há, como não deve haver, ilusão
que se deva alimentar. Não há, como não deve haver, sonho que não se deva,
apesar de tudo e mesmo se improvável manter e alimentar. O que é preciso é entender a vida como a única oportunidade que temos de sentir, criar, amar e recriar no tempo, mesmo em desilusão, mesmo em perda, porque é aquilo de que dispomos e porque algures,
para alguém em algum momento tudo virá a fazer sentido - aquele que tiver tido para nós.
Pessoalmente, sou particularmente
sensível ao trabalho de Aki Kaurismäki com os actores, em geral, com Kati
Outinen, que está para ele como Liv Ullman esteve para Ingmar Bergman, em especial – há
coisas, pontos fílmicos e humanos que nos filmes dele só são possíveis com ela,
beleza estranha, doce, diáfana.
Por trás do
quotidiano deste finlandês muito especial está, contudo, a ideia de uma responsabilidade,
que é comum, partilhada por ser pessoal, que torna especialmente importantes os
seus filmes e as suas personagens, que apresentam de filme para filme uma coerência
notável, ao sabor da sua própria inspiração, responsabilidade essa que vai dar a
cada pequeno gesto o seu grande sentido.
Além disso, muito kaurismakiano
embora, o filme tem apontamentos que são piscar de olhos ao cinema francês:
Pierre Étaix e Jean-Pierre Léaud em pequenos papéis, o primeiro na pele de um
médico que se chama Becker (como o grande Jacques), o segundo como o denunciante; a localização do filme no
Havre, cidade que recorda “O Atalante”/”L’Atalante”, o mítico e fundamentel
derradeiro filme do jovem Jean Vigo (1934), cujo espírito (e até a letra)
atravessa este filme – uma lição que o cinema francês parece ter esquecido.