“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

sábado, 14 de setembro de 2013

A construção da memória

        Alain Cavalier foi outro dos cineastas que, contemporâneos da nouvelle vague francesa, nunca tiveram nada a ver com ela (ver "Duro de roer", 10 de Junho de 2013). Tendo enveredado por um tipo de filme mais pessoal, subjectivo mesmo, já neste século, a partir de "Le filmeur" (2005), chega a um seu pleno desenvolvimento em "Pater" (2011), embora "Irène" (2009) seja o melhor dos seus últimos filmes.
         De facto, é aí que, a solo, ele se entrega a um exercício sobre a memória de Irène Tunc que, muito mais nova do que ele, muito nova morreu na sequência de um acidente de viação em 1972. O que torna este filme superior aos outros é nele o cineasta, ao abrir a memória, abrir as agendas em que escreveu um diário da vida comum de ambos entre 1970 e 1972, e, ao filmar e ler o que então aí escreveu, ir desdobrando as suas memórias mais pessoais e íntimas de uma personagem há muito desaparecida para as comentar na actualidade.
                     
        Para fazer tudo como deve ser e como ele quis, Alain Cavalier fez aí tudo sozinho, captação da imagem, do som, voz-off, mostrando-se mesmo a si próprio, primeiro partes do corpo, depois o rosto, a seguir à sua queda nas escadas de uma estação de Metro de Paris. Foi um risco muito grande, o de uma exposição completa, mas um risco que se justificava porque a sua subjectividade o exigia e que o levou a criar um filme em que reverbera a presença actual de uma morta querida.
        Em "Irène" assume plena dimensão o cinema como arquivo de memória mas também, e até sobretudo, como construtor dela - da própria Irène surgem escassas fotografias já próximo do final, por vezes o cineasta parece dirigir-se a uma fotografia de Sophie Marceau sobre uma parede e num determinado momento surge uma outra mulher muito nova que, na actualidade, ele encara como podendo vir a interpretar Irène num filme. De resto, são as imagens dos locais em que ela viveu, em que eles os dois viveram juntos, as palavras em dois tempos: as escritas em vida dela, as ditas na actualidade do filme pelo cineasta (a palavra lisível, lida, e a palavra dita, acrescentada), imagens novas que mostram o que ele diz - espantosa a sequência da melancia - e o regresso de diferentes pontos de vista ao local de que ele a viu partir pela última vez, que assinala a culpa que ainda sente por naquele dia a ter deixado partir sozinha.
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       Posto isto, em que só vendo se acredita como Alain Cavalier acreditou, "Irène" é, depois de "Teresa"/"Thérèse" (1986), a verdadeira obra-prima do cineasta, em que ele faz o que mais ninguém fez daquela maneira, que é simultaneamente a mais verdadeira e a mais difícil, levando até ao fim a sua própria subjectividade e criando com ela. Em "Pater" há já uma ideia muito consciente de mise en scène de se próprio numa relação pai-filho, mestre-discípulo enunciada em termos políticos, que por muito que possa dizer aos franceses a mim me deixa frio, quase indiferente como exercício de estilo narcísico, pese embora a reflexão que apesar de tudo proporciona.

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