“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 9 de março de 2014

Como artista

    No âmbito de "Harvard na Gulbenkian - diálogos sobre o cinema português e o cinema do mundo" (ver Cinema capital", 24 de Novembro de 2013), foi exibido na passada sexta-feira no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian o último e muito aguardado filme de Albert Serra "Història de la meva mort" (2013). Conhecendo os filmes anteriores do catalão que estrearam em Portugal, "Honra de Cavalaria"/"Honor de cavalleria" (2006) e "O Canto dos Pássaros"/"El cant dels ocells" (2008), e gostando muito deles, fiquei decididamente entusiasmado com esta sua mais recente obra.
                     Història de la meva mort
    Trabalhando como artista, num cruzamento perfeitamente insólito ele agarra nas figuras míticas do Casanova e do Drácula por forma a trabalhá-las desse mesmo lado mítico mas integrando-as no seu universo pessoal, que aqui assume um bestiário próprio. Com a primeira parte, situada na Suíça, com Casanova, vai ser na segunda parte, passada nos Cárpatos, que as duas personagens vão coabitar num mesmo espaço, cada uma delas possuídora do seu espírto anti-religioso, anti-clerical, anti-critianismo e com a sua própria visão superior do mundo, aristocrática e impiedosa, o que estava já muito presente nos excelentes diálogos filosóficos de Casanova na Suíça.  
    Contudo, o retrato de Casanova, visual e auditivo, traçado na primeira parte apresenta traços caricaturais muito curiosos e saborosos, fazendo-o acompanhar pelo seu servo tipo Sancho Pança, de nome Pompeu, e a dupla mantém-se na segunda parte em que, primeiro a partir da árvore que sangra, mas sobretudo a partir da carcaça de porco que acaba por se metamorfosear em carcaça humana o filme assume uma qualidade vertiginosa, visual e auditiva - e o trabalho do cineasta com os ruídos e sobretudo com a música mostra-se excepcional. Alguma coisa da imagem e do bestiário dessa segunda parte fez-me lembrar Goya, enquanto a recorrente presença de mulheres belas e inquietas, em vez de pacificar introduz elementos de perturbação num filme sobre o prazer concreto e o desejo concreto como contrapontos polémicos do racionalismo do Século XVIII - e nosso.
                      Història de la meva mort   
   Mas o que sobretudo chocará o mais desprevenido são as constantes liberdades que, libertinamente são tomadas com as personagens, numa desumanização que na segunda parte se torna muito claro surge em possível réplica da desumanização do mundo actual. Nada nos satisfaz, nada nos serve neste mundo oco e vão em que vivemos, pelo que a apresentação de um Casanova desinibido, de um Dracula devorador, de uma moral aristocrática não têm nada de especialmente estranho, contrariamente ao que se possa pensar, e haverá quem ainda pense, do que resulta precisamente o impacto do filme.
      Agora Albert Serra trabalha a imagem como um artista do cinema, com permanente alusão ao fora de campo, com um requinte visual, nomeadamente de iluminação, precioso, que nos deixa abismados não apenas perante as imagens mas perante as personagens que elas incluem. E se em certos momentos a luz se torna escassa e a imagem sombria, noutros a luz, a claridade não falta, mas falta alguém. Colocando-nos num presente situado no passado, o cineasta olha sobretudo para as suas personagens com um olhar inquieto e inquietante, nessa medida profundamente político e mesmo desafiador de piedosas crenças que possam ainda subsistir.
                      Història de la meva mort
      Ao reinventar Casanova e Drácula em "Història de la meva mort", um filme que prolonga por caminhos inesperados e muito bons, em nada relacionados com o realismo, antes plenos de artifício poético e fantasia, o que conheço da sua obra anterior de uma forma inteligente e consistente, o cineasta catalão, também autor dos diálogos além de realizador, reinventa-se e reinventa o cinema em termos narrativos, de criação de personagens e discursiva, e em termos de construção fílmica.
      Nos seus curadores, Haden Guest e Joaquim Sapinho, saúdo aqui os responsáveis por este "Harvard na Gulbenkian" pelos resultados inequivocamente positivos desta iniciativa, fazendo votos para que ela regresse em breve numa inteiramnte justificada segunda parte.

Sem comentários:

Enviar um comentário