“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Um cineasta de culto

   Jim Jarmusch inaugurou em 1980 um novo cinema independente americano com o seu filme de estreia, "Sempre em Férias"/"Permanent Vacation", e com o subsequente desenvolvimento da sua obra como independente adquiriu o estatuto de cineasta de culto, que desde cedo impôs o seu reconhecimento no meio da arte contemporânea (1). Inicialmente influenciado pelo cinema europeu, nomeadamente pelos primeiros filmes de Wim Wenders, ele soube a pouco e pouco construir uma obra pessoal e diversificada, em que cada filme, nos diferentes géneros que, subvertendo-os, tratou, traz a sua inequívoca marca pessoal.  
                     Only Lovers Left Alive3 
   "Só os Amantes Sobrevivem"/"Only Lovers Left Alive" (2013), a sua mais recente longa-metragem, é a sua primeira de incursão no filme de vampiros numa modalidade sui generis, que não tem que ver directamente com o filme de terror tal como ele é correntemente entendido. Partindo de Tãnger, onde encontrara e deixara Marlowe/John Hurt, Eva/Tilda Swinton vai ter com o marido, o músico inconformista Adam/Tom Hiddleston, a Detroit, e só durante a viagem de avião temos uma primeira amostra visual de que o sangue é com ela. Em Detroit, com a visita inesperada de Ava/Mia Wasikowska, irmã de Eva, as coisas tornam-se mais claras, até à noite de todos no local nocturno comum.
   Decisiva, a sala de Adam tem as paredes revestidas com fotografias de personalidades históricas (é uma questão de identificar quem ali é quem), e uma sempre fascinante Tilda Swinton conduz o baile com a sua figura inconfundível e extremamente atraente, que o cineasta aproveita e trabalha muito bem ao ponto de conseguir, graças a ela, evitar que o filme caia na monotonia.
                                          
    A dominante decadentista, muito bem explorada por uma narrativa rarefeita numa cidade excêntrica, vai transferir-se para o segmento final, decisivo, de novo com Eva em Tãnger mas acompanhada por Adam. Aí ela reeencontra Marlowe e com Adam - depois de um breve número musical, estrategicamente situado, em que, sem chocar, o cineasta cede ao espectáculo e à "cor local" - cada um define a sua presa.
     Embora possa parecer que Jim Jarmusch já fez melhor, na sua sobriedade minimalista e nas suas múltiplas referências cultas en passant "Só os Amantes Sobrevivem" é um belo pedaço de cinema intransigentemente independente e de autor, em que a fotografia escura dá o tom para a decadência, que a música alimenta e comenta. Um filme que, como outros, ganhará com a passagem do tempo, e o regresso do cineasta de uma forma especialmente sugestiva deve ser aqui assinalado e saudado.                        
                     Only Lovers Left Alive
    O culto da decadência num filme de vampiros inspirado e inteligente de um cineasta de culto, sempre argumentista dos seus próprios filmes e um dos nomes mais universais e incontroversos do cinema contemporâneo, é por certo um acontecimento, tanto mais importante quanto inesperado. 

Nota
(1) Ver, em português, "Aventuras no Mundo da Arte", de Alexandre Melo (Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, pág. 267).

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