“Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei porquê.” Luís de Camões

"Na dor lida sentem bem,/Não as duas que êle teve,/Mas só a que êles não têm." Fernando Pessoa

"Lividos astros,/Soidões lacustres.../Lemes e mastros.../E os alabastros/Dos balaustres!" Camilo Pessanha

"E eu estou feliz ainda./Mas faz-se tarde/e sei que é tempo de continuar." Helder Macedo

"Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos..." Camilo Pessanha

“Vem, vagamente,/Vem, levemente,/Vem sozinha, solene, com as mãos caídas/Ao teu lado, vem” Álvaro de Campos

"Chove nela graça tanta/que dá graça à fermosura;/vai fermosa, e não segura." Luís de Camões

domingo, 29 de junho de 2014

Uma aldeia na Calábria

    É um filme belíssimo, de uma beleza hoje em dia invulgar, a segunda longa-metragem de Michelangelo Frammartino, "As Quatro Voltas"/"Le quattro volte" (2010). Filmado numa aldeia da Calábria, em Itália, sem palavras audíveis identificáveis e com pouca música, desenvolve-se numa primeira parte entre um velho pastor e o seu rebanho, com passagem repetida por uma encruzilhada em que decorre o episódio mais movimentado, construído como gag cómico em plano longo.
                      site 28 rand 1316934033 le quattro 627 600x337 As Quatro Voltas é puro cinema, em que tudo é imagem
   Só nessa sua primeira parte o filme assume uma dimensão humana e natural muito apreciável, dando-nos a solidão e a velhice do pastor e o abandono do rebanho, que não se sabe se depende dele se, com o cão, toma conta dele. Com todas as ligações certas até o pastor "adormecer", alarga-se depois sobre a aldeia e o meio, que já antes acompanhara, com maior atenção aos mais novos, em festa e em trabalho. Abandonando a encruzilhada física, "As Quatro Voltas" dá-se mais tempo para olhar em volta e mostrar.
  Sem verdadeiros antecedentes no cinema italiano, este filme de Michelangelo Frammartino constrói-se sobre o aparentemente insignificante de uma forma cinematograficamente muito rica, com grande variação de escala de planos mas de modo que cada plano é sempre justo, distribuindo a sua atenção pelos humanos, salvo o velho pastor nunca completamente identificados, pelo rebanho, pela aldeia e o espaço envolvente, com a presença constante dos ruídos e acolhendo uma importante dimensão documental de que a natureza, a terra próxima e as montanhas ao fundo, a festa e o trabalho, mas também a própria aldeia e os seus habitantes fazem parte integrante. 
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    Além de uma discreta emoção, uma vaga e fina ironia atravessa "As Quatro Voltas" a partir do olhar do cineasta, como se convidando-nos a reflectir sobre a persistência daquele espaço intacto, com aquelas personagens e características, perdido no tempo, no nosso tempo. A lentidão aliada à falta de diálogos audíveis permite a Michelangelo Frammartino abismar-se na beleza, uma beleza invulgar, mas também convida à reflexão.

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